O triângulo amoroso entre Ariadne, Teseu e Baco, foi analisado por Nietzsche em “Zaratustra”, em “Ecce Homo” e em “A Vontade de Poder”. Ele introduz perspectivas interessantíssimas de serem por nós visualizadas.
No mito, Ariadne começa odiando seu meio irmão Minotauro- Baco; depois apaixona-se por Teseu, viajor que recém aporta a ilha de Creta, e lhe entrega o novelo que o levará ao labirinto e o conduzirá para fora do mesmo. Somente esse fio condutor permite que o amante sacrifique o filho de Minos.
Teseu é o herói ateniense, hábil em decifrar enigmas, viajar por vingança, adentrar ao labirinto do palácio e abater o Touro. Para Nietzsche ele caracteriza o homem sublime, o homem superior, “o feiticeiro”. Tem por isso mesmo o espírito grave, aprecia carregar fardos, despreza a terra, sendo, por outro lado, incapaz de rir, de brincar, de gozar a vida. Cumpre missões.Para ele é real tudo aquilo que pesa, que deva carregar pelos labirintos do destino.
Como símbolo da teoria do “homem superior”, Teseu é uma denúncia da mistificação do humanismo. Ele pretende levar a humanidade à perfeição do que ele mesmo considera perfeito, superando as alienações, realizando o homem total e colocando-o no lugar de Deus, constituindo “uma potência que afirma e que se afirma”. Para Teseu é real tudo o que pesa, tudo aquilo que carrega consigo. Os emblemas naturais do “homem superior”, como não poderia deixar de ser, são o asno e o camelo. O touro é uma antípoda.
Se o touro em luta no labirinto da vida é vencido pelo “homem superior”, essa constitui uma vitória parcial, de Pirro, pois o filho de Minos lhe é superior. O Minotauro é um ser com o selo de autenticidade, enquanto o “homem sublime” é uma máscara, uma “personna”. “Deveria fazer como o touro, e sua felicidade deveria ser cheirar a terra e não o desprezo por ela.” O “homem superior ou sublime” por desprezo busca submeter, dominar a natureza. É verdade que ele vence os monstros, expõe os enigmas, mas da mesma forma que Teseu e Édipo, eles ignoram o enigma e o monstro que eles próprios o são!
Eles não sabem que afirmar não é carregar, atrelar-se, assumir o que é, mas pelo contrário, afirmar-se é se desatrelar, livrar-se, descarregar o que se leva pela vida. Criar valores novos que façam a vida leve e afirmativa. Teseu não compreende que o Minotauro possui a única superioridade verdadeira: prodigiosa besta-fera no fundo do labirinto, mas que se sente igualmente à vontade nas alturas, besta que desatrela e afirma vida.
O homem superior evoca o conhecimento e por isso pretende explorar o labirinto que é a floresta do conhecer. Mas o conhecimento é somente o disfarce para a moralidade, pois “o fio no labirinto é o fio moral”. A moral, por sua vez, é em si mesma um labirinto, disfarce do ideal ascético e religioso, sendo que o que se persegue é sempre matar o touro, isto é, negar a vida, reduzi-la sob as forças reativas. O “homem sublime” é um falsário em sua ansiedade por negar a vida.
Voltemos a Ariadne. Enquanto ama Teseu ela participa desse empreendimento de negação da vida. Teseu é o Espírito da negação, “o grande escroque” e Ariadne, parceira, Ânima, a alma que é reativa, no seu ódio ao irmão Minotauro, ela encarna a alma do ressentimento.
Alerta-nos Deleuze: “Toda a obra de Nietzsche é atravessada por um aviso: desconfiem das irmãs” (e ele tinha razão em seu caso particular; após a morte de Nietzsche, sua irmã tentou manipular a obra do filósofo para o desfrute do nazismo e do anti-semitismo). Ariadne, a irmã, é quem segura o fio do labirinto, o fio da moralidade.
Mas ela é abandonada por Teseu após o mesmo abater o touro. O “niilismo é vencido por si mesmo”. À alma resta enforcar-se e diz Nietzsche para Ariadne, pela boca de Teseu: “Enforcai-vos com esse fio”. É quando Ariadne sente a aproximação de Baco. Baco- Touro é a afirmação pura e múltipla, a afirmação verdadeira da vontade. Ele nada carrega, não se responsabiliza por nada, mas torna leve a vida, pois sabe fazer aquilo que o “homem superior” desaprendeu: sorrir, brincar, dançar, gozar, isto é, “afirmar a vida”. Baco está além do herói, em outra coisa que já não é o próprio homem.
Era necessário que Teseu a abandonasse: “É esse com efeito o segredo da Alma, somente depois que o herói a deixou, dela se acerca, em sonho, o além-do-heroi”. A Alma que era tão pesada quando Teseu, sob Baco é Leve, adelgaçada, aspira à natureza, ao céu. Sabe que aquilo que antes desejava nada mais era que vingança, ressentimento e o que acreditava ser uma afirmação não passava de disfarce.
Ariadne compreende sua decepção: Teseu nem era mesmo “um verdadeiro grego”, “ele era muito mais um alemão”. Mas ela desperta para Baco, para um verdadeiro grego e a Alma torna-se ativa e ela torna-se o Espírito que diz Sim. E Baco acrescenta à canção de Ânima- Ariadne uma nova estrofe, que se torna um diritambo:
“Sê prudente Ariadne!…
Tens pequenas orelhas, tens minhas orelhas:
Pode aí uma palavra sensata!
Não é preciso primeiro nos odiar se devemos nos amar?…
Sou teu labirinto…”
Baco tem necessidade de uma noiva e nessa canção de solidão ele a reclama. Sendo Baco a afirmação do Ser, Ariadne é a afirmação da afirmação. “É a mim que tu queres? Somente a mim- totalmente?” O labirinto já não é o caminho da moral e do conhecimento, o caminho de quem irá matar o Touro. O labirinto tornou-se Baco, o próprio Toro Branco, Baco e Ariadne precisam ter orelhas iguais, labirínticas, para responder a afirmação ao próprio ouvido de Baco.
Com Baco, Ariadne adquiriu pequenas orelhas, as orelhas do Eterno Retorno, pois o labirinto transmutou-se. Não mais é um pedaço de terra, mas é sonoro e musical.
É Nietzsche se separando do velho falsário e “feiticeiro”, Wagner. A música torna-se o leve, ausência pura de gravidade. A história de Ariadne foge da saga dos nibelungos, estando muito mais próxima da musicalidade de um Offenbach e de um Strauss.
Entretanto, no lado oposto, o de Teseu e de Apolo, também existe música. Mas essa música é um canto de trabalho, da marcha militar de uma Valquíria; mas também canto de repouso, de ninar bebê.
Mas é a música de Baco que liberta, que abala os alicerces e de onde se depreende um poderoso canto da Terra, da Natureza a dançar. É como um diritambo que se espraia sobre a Terra inteira. O labirinto sonoro, o próprio canto da Terra, o Eterno Retorno em pessoa.
Somente Baco- Touro, o artista criador, atinge as potências das metamorfoses que fazem o devir, dando testemunho de uma vida que jorra. São vis ou baixos os Teseus que só sabem disfarçar-se, travestir-se, isto é, tomar uma forma, que é sempre a mesma.
Para Ariadne, passar de Teseu para Baco é uma questão de saúde, de cura. Para Baco também, pois ele precisa da Alma, de Ariadne. Baco é a afirmação pura, Ariadne como Ânima, a afirmação redobrada. É nesse sentido que o Eterno Retorno é o produto da união de Baco e Ariadne, e ele entende que esse pensamento é consolador, seletivo, e inseparável de uma transmutação, que somente se afirma e transforma em futuro o que é ativo. Nem as forças reativas e nem a vontade de negar retornarão, eliminadas pela transmutação, pelo Eterno retorno que impedirá a volta de um Teseu.
A orelha circular tanto simboliza o Eterno Retorno quanto o anel nupcial; o labirinto, que deixou de ser o lugar da perdição, transformou-se no Retorno e nesse modificar simboliza-se a Vida e o Ser na Natureza.
O “além- do herói” é o oposto do “ser superior”. É o homem que vive nos cumes dos morros e nas cavernas, a criança amada e concebida pela orelha, o filho de Ariadne e do Touro.