Stalin sentenciou Mandelstam, autor de “Epigrama a Stalin”:“Isolar, mas não liquidar”!

Pouco antes de ser encarcerado por ordem pessoal de Stalin, Ossip Mandelstam escreveu: “Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso”!

Ossip Mandelstam foi personagem central tanto na poesia russa quanto no movimento modernista mundial. No seu próprio dizer, ele era um instigador crucial da “revolução da palavra”.

Nasceu em Varsóvia em 1891, filho de uma família judia culta e abastada, estabelecida em Petersburgo. Antes de 1905, sua revolta política levara-o a aliar-se aos socialistas-revolucionários e somente a intervenção paterna enviando-o para a Alemanha e França, impediu que Ossip participasse da onda de atentados terroristas que se espalhou pelas principais cidades do Império Czarista.

Desde jovem suas reflexões pessoais convergem para a identificação do “sentido da história e do ser histórico nela inserido”, por isso para ele “construir significa lutar contra o vazio, hipnotizar o espaço”.

Mandelstam foi um dos fundadores de uma corrente literária que defendia a “claridade apolínea” em contraposição ao “delírio dionisíaco” dos poetas simbolistas russos. Esse movimento intelectual surgia, no dizer de Mandelstam como “um anseio de cultura mundial… uma forma de modernismo”.

Objetivava aportar certo espírito à poesia, em contrapartida a outras tendências vanguardistas demolidoras da linguagem tradicional, posicionando-se a favor do linguajar simples, claro e usual.

Em 1916, na Alemanha, Ossip foi militante antibelicista e, em 1917, de volta à Rússia, apoiou com certa relutância a Revolução Socialista. O poeta via “nos crepúsculos da liberdade” a regeneração e transfiguração do mundo: “Glorifiquemos, irmãos, os crepúsculos da liberdade…”, escrito em 1918.

Como para tantos intelectuais de sua geração, a Revolução significava a possibilidade de tornar o homem mais coletivista e solidário, capaz de abrir mão de sua individualidade por algo maior e mais humano. “Sempre me pareceu que alguma coisa muito esplêndida e muito solene estava para acontecer em Petersburgo”, escreveu em 1925, referindo-se ao período revolucionário do ano de 1917.

Mandelstam, embora polonês de nascimento, adotara como sua Petersburgo; na verdade identificara sempre a si próprio com o centro da modernidade russa, numa relação tão profunda e complexa quanto a de Dostoiévski, trinta anos atrás.

Quando a cidade sufocava pela fome, cercada pelos exércitos inimigos durante a guerra civil em 1919, ele escreveu:

“Um fogo errante num morro terrível, será uma estrela a brilhar assim? Estrela transparente, fogo errante, seu irmão, Petersburgo está morrendo.”

Os anos de 1920 foram um tempo de trabalho literário intensivo e diversificado. Criou as coletâneas poéticas “Tristia”, “O Segundo Livro” e a terceira edição de “A Pedra”, em 1923. Mais tarde, o livro de ensaios autobiográficos “O Rumor do Tempo”, também uma coletânea de artigos crítico-literários “Sobre a Poesia” e a importante novela “O Selo Egípcio”. Também desenvolveu diversos livros de contos infanto-juvenis.

A pesar de sua contrariedade com os rumos da Revolução, em 1922, Mandelstam teve a oportunidade, mas recusou-se a emigrar, preferindo ser um revoltado dentro da própria revolução. E ainda com espírito de dedicação e auto sacrifício, exaltava os artistas russos, pois “ninguém no mundo é mais altivo que nós, sem lágrimas, e puros”.

Em “O Selo Egípcio”, de 1925, o artista capta o drama e a angústia do homem comum pós-revolução: “É terrível pensar que nossa vida é um conto sem trama ou herói, feito de vidro e de desolação, do murmúrio febril de digressões constantes, do delírio da febre de Petersburgo.”

Parnok, o personagem-herói, observa a rua em movimento, ela está desumanizando as pessoas que ai se encontram, dando uma oportunidade de se desumanizarem a si próprias, pois “faces e pessoas são desumanizadas na terrível ordem que as funde numa turba.” Parnok tenta, então, desesperadamente, avisar as autoridades sobre o que se passava. Pega um telefone e liga para todos os lados. Não é atendido, porque os responsáveis, os burocratas, preferem o sono. Surge certo Capitão, um arquétipo do repressor do homem comum das ruas de Petersburgo dos tempos do czarismo. Ele que deveria ter sido banido pela Revolução de Fevereiro, mas se escondera num buraco e ressurgira com pendores democráticos. Depois da Revolução de Outubro, o Capitão rouba as roupas de Parnok, o homem comum, e se hospeda em Moscou, num hotel denominado “Seleto”, onde se transforma em apparatchik, um burocrata do novo sistema que dá ordens.

Em 1927, já sob o comando de Stalin no Partido Comunista, Mandelstam decide voltar a residir com sua mulher na querida Petersburgo, tão mais acolhedora que a fria e burocrática Moscou.

Entretanto, Petersburgo perdera quase dois terços de sua população devido à guerra civil e à fome; logo, a terra de tantos sonhadores tornara-se nada mais que isso, um sonho, o qual não seria permitido ao poeta sonhar. O que ocorrera em Petersburgo leva Parnok, no “Selo Egípcio” a dizer: “A incontável nuvem de gafanhotos humanos, sabe Deus de onde vieram, escureceu a margem do Fontanka, para onde correram a ver a morte de um homem”, pois a cidade “proclamara-se um Nero e estava tão repugnante como se estivesse a comer uma sopa de moscas esmagadas.”

Os escritores oficiais do Partido, entronizados na direção do Sindicato dos Escritores, que controlava não apenas o emprego, mas até mesmo o direito à residência, fizeram Mandelstam partir de Petersburgo, sob a alegação de que ele não era bem-vindo à cidade, agora sob o patronímico do falecido Lênin.

Obrigado a voltar a Moscou, o Ossip e Nadie, sua mulher, são recepcionados com um artigo publicado no Pravda com o título de “Sombras da velha Petersburgo”, o qual dizia que um típico esnobe pequeno-burguês, que usava uma linguagem extravagante e se recusava a reconhecer as realizações da nova ordem socialista, retornava expulso para Moscou.

Nesse clima, Mandelstam escreve: “À semelhança de muitos outros, eu me sinto devedor para com a revolução, e lhe ofereço algo de que ela, por enquanto, não está necessitando.”

O suicídio de Maiakovski, em 1930, ocorre ao mesmo tempo em que à desilusão com própria importância no processo político mescla-se a uma dose de desespero pessoal.

Mandelstam dita à sua esposa o ensaio panfletário “A quarta prosa”, unindo-se ao que Maiakovski denominara “a merda petrificada do presente”. Neste ensaio existe um capítulo inacabado, profético: “Destrua seu manuscrito, mas salve tudo o que escreveu na margem, por tédio e desamparo, de qualquer modo, durante um sonho. Essas criações de suas fantasias não se perderam no mundo, mas encontrarão algum lugar por trás dos palcos musicais sombrios…”

Pois a maior parte de “A quarta prosa” foi preservada graças à memória da Nadie, a esposa de Ossip, que gastou dias e mais dias para decorá-la, tal o risco de se guardar um manuscrito subversivo.

Como que em resposta a seu apelo, Mikhail Bulgákov em “O mestre e a Margarida”, numa sátira devastadora da vida intelectual sob o regime soviético, colocará na boca do diabo Wolland que “os manuscritos não ardem”, pois mesmo destruídos eles ainda têm a capacidade de se reproduzirem, o que, de certa forma, ocorreu sob a glanost, nos anos 1980.

No depósito de obras proibidas da rua Lubianka, a sede da KGB, o spietzkhan, foram resgatados mais de 300 mil títulos, mais de 500 mil revistas e acima de 1 milhão de jornais apreendido pelas autoridades ao longo de quase 60 anos de censura e perseguição intelectual.

Mandelstam em Moscou foi implacavelmente atacado pelos críticos-burocratas e pelos poetastros defensores da chamada “poesia proletária”. Artigos no Pravda, após a publicação de “Viagem à Armênia”, acusam-no de omissão frente à “nova realidade que floresce tempestuosamente e constrói alegremente o socialismo.”

A desgraça, que por algum tempo o espreita, terminará por abraça-lo quando em uma reunião entre cinco amigos, Ossip declamou um poema que jamais em sua curta vida seria publicado denominado de “O Epigrama de Stalin”. Estávamos em 1934.

“Vivemos sem sentir o chão nos pés,

A dez passos não se ouve a nossa voz.

Uma palavra a mais e o montanhês(1)

Do Kremlin vem: chegou a nossa vez.

Seus dedos grossos são vermes obesos.

Suas palavras caem como pesos.

Baratas, seus bigodes dão risotas;

Brilham como um espelho as suas botas.

Cercado de um magote subserviente,

Brinca de gato com essa sub gente.

Um mia, outro assobia, ainda outro geme.

Somente ele troveja e tudo treme.

Forja decretos como ferraduras:

Nos olhos! Nos quadris! Nas dentaduras!

Frui as sentenças como framboesas.

O amigo Urso abraça suas presas”.

Obs.: “o montanhês do Kremlin” é o próprio Stalin.

Alguém o anota e a NKVD, que a tudo escutava e sabia, levou-o ao conhecimento de Stalin. Este, então, liga para o mais famoso poeta do momento, Boris Pasternak. Deseja saber se Mandelstam era um mestre ou não. Ao ser informado de que era realmente um mestre, toma sua decisão e escreve no processo: “Isolar, mas não liquidar”!

A estratégia do Montanhês do Kremlin, filho das montanhas da Geórgia, era dobrar a vontade de Ossip Mandelstam até que este o glorificasse após a ofensa recebida. Ele pensava tal qual os antigos gregos, que a opinião que as gerações futuras fariam de sua figura dependeria muito do que os poetas dissessem a seu respeito. A morte física ficaria para depois.

Ossip é retirado à força de uma casa de repouso (passava por uma de suas recorrentes crises de pânico) e levado à prisão. Poucos meses após foi solto e um alívio temporário lhe é concedido.

Pressionado pela miséria e proibido de viver nas doze maiores cidades da URSS, ele termina por curvar-se ao burocratismo. Em poemas de baixíssima qualidade, como “Ode a Stalin”, passou a glorificar o líder. Neles, agora, Stalin aparece como alguém que “deslocou o eixo do mundo e removeu montanhas”, “o Povo-Homero, guia-pai de olhos poderosos e repassados de bondades…”.

O poema “Eu dei uma bofetada no poderoso e ele perdoou” permaneceu em posse de sua esposa Nadie sem vir a ser publicado. Após anos, ao torna-lo público, ela fez questão de dizer que Ossip, ao deixar Veronej, pedira que fosse destruído, mas ela não o fizera. “A existência bifurcada foi um fato real de nossa época e ninguém pode evitá-la.”

Mandelstam se sente seguro por algum tempo, crendo haver atravessado seu “Rubicon”. O período vivido em Vorónej tornou-se proveitoso: foram escritos noventa e oito poemas que, depois, compuseram o ciclo “Cadernos de Vorónej”, considerado uma das melhores obras líricas de todos os tempos. Nestes versos ecoa a solidão e são revividas sombrias visões, que se tornariam proféticas sobre o socialismo real.

Em 1937, deixou mais um verso, então impublicável, para a imortalidade:

“Se for preso pelos nossos inimigos,

Se as pessoas não falarem comigo,

Se de tudo e de todos for privado:

Do direito a respirar e abrir portas,

Do direito a afirmar que haverá vida…

Se me tratarem como animal,

Se me atirarem o que comer no chão,

A dor não me amordaçará, não me calarei…

Vou atrelar dez bois à minha voz

E nas profundezas da noite, noite alerta,

Olhos se acenderão para a terra fértil,

E, na hoste de olhos fraternos,

Com peso de toda a colheita eu cairei…

Como tempestade madura vai Lênin

Murmurar: não há putrefacção na terra,

Enquanto isso, Stalin assassina a razão e a vida”.

No início do Grande Expurgo, ainda em 1937, o poeta foi acusado novamente de abrigar visões antissoviéticas em seus trabalhos e, em maio de 1938, preso por “atividades contrarrevolucionárias”.

Quatro meses mais tarde, foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados, com internação no campo de trabalho de Vladivostok. No mesmo ano, aos 47 anos de idade, faminto e desesperançado, enquanto implorava para que a mulher conseguisse lhe enviar cobertores para o frio, o poeta foi vitimado por tifo e morreu sem agasalhos, sem obituário ou sepultura.

Pelos próximos vinte anos, o nome de Ossip Mandelstam foi proibido de ser pronunciado na U.R.S.S..

Somente em 1956 foi reabilitado e declarado livre das acusações feitas em 1938. Em outubro de 1987, durante o governo de Mikhail Gorbachev, Mandelstam foi, finalmente, inocentado das acusações de 1934 e, portanto, totalmente reabilitado.

Em 1977, o planeta 3461 descoberto pelo astrônomo soviético Nikolai Stepanovich Chernykh, recebeu o nome de Mandelstam, numa tardia homenagem do mundo das ciências ao intelectual destruído pela burocracia, que se apossou do Estado Soviético.

Em 1991, em Moscou, foi criada a Associação de Mandelstam, cujo objetivo é reunir, manter, estudar e popularizar a enorme e pouco conhecida herança criativa de um dos maiores poetas do século XX.

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