A poetiza maior Tzvietáieva e sua tragédia familiar, em tempos de União Soviética.

Genial e terrena, intensamente livre, Marina Tzvietáieva foi ao lado de Pasternak, Maiakovski, Mandelstam, Babel, Ivan Búnin, Andrei Biéle, Khlébnikov e Ana Akhamatova, um dos mais importantes expoentes da geração modernista de artistas e intelectuais nascida nos anos 1890, que tanto influenciaria e seria influenciada pelos rumos da Revolução Soviética de 1917.

Seu poema “À Vida” é como o arauto de uma alma inquebrantável, um temperamento arrebatado e inquieto que rompe os limites do próprio tempo.

“Não roubarás minha cor

Vermelha, de rio que estua.

Sou recusa: és caçador!

Persegues: eu sou a fuga.

Não te dou minha alma cativa!

Colhido em pleno disparo

Curvo o pescoço e o cabelo,

E abro a veia da vida”.

Marina, filha de um filólogo e de uma aristocrata, teve formação intelectual esmerada. Criança precoce escreveu poesias desde os seis anos. Aos dezesseis estudava na Sorbonne em Paris, e começou a escrever poesias em francês e alemão. Seu primeiro livro foi publicado aos dezoito anos de idade.

Já adulta, Marina falava, lia e escrevia em russo, francês e italiano; suas cartas ao maior poeta alemão modernista, de quem se tornaria grande amiga, Rainer Maria Rilke, foram escritas, desde logo, em alemão.

No tempo da Revolução de 1917 ela vivia em Moscou e era casada com Sierguei Efron, oficial do exército czarista. Durante a guerra civil, Efron tornou-se um oficial branco e separou-se da família. Com a derrota da contrarrevolução, Efron emigrou.

Estando absolutamente só em Moscou com duas filhas, Marina viu morrer a mais nova de fome. Ao final da guerra civil a situação era terrível, tudo faltava a praticamente todos. A poetiza, entre um poema e outro, que anotava sempre em cadernos vermelhos, saia com Ariadne, a filha mais velha de sete anos pelas ruas em busca de qualquer alimento. Mesmo assim sua solidariedade obrigou-a sempre a repartir até mesmo batatas podres com outros desesperados como o poeta Balmont!

Até o falecimento de Lênin, não era difícil deixar a Rússia. Quem não gostasse do país dos sovietes que se mudasse para onde lhe aprouvesse, nada o impedia.

Para reunir-se ao marido e deixar a Rússia, Marina emigrou em 1922. Primeiro, Tchecoslováquia, depois Paris.

Embora admirada em círculos restritos, em Paris ela e o marido levaram uma vida de privações, miserável.

O capitalismo revelou-se com toda a sua crueza para o casal de emigrados. “Aquilo era a cidade das luzes? Onde estava a solidariedade humana?”

Pois bem, aquilo que os bolcheviques em seu país não haviam conseguido, a vida o fez, conduzindo o casal para as ideias socialistas e abjurando o passado reacionário.

Quando em 1930, Maiakovski suicidou-se, ela poetou “A Vladmir Maiakovski”:

“Acima das cruzes e nas alturas,

Arcanjo sólido, passo firme,

Batizado a fumaça e a fogo –

Salve, pelos séculos, Vladmir!

Ele é dois: a lei e a exceção,

Ele é dois: cavalo e cavaleiro.

Toma fôlego, cospe nas mãos:

Resiste, triunfo carreteiro.

Escura altivez, soberba tosca,

Tribuno dos prodígios da praça,

Que trocou pela pedra mais fosca

O diamante lavrado e sem jaça.

Saúdo-te, trovão pedregoso!

Boceja, cumprimenta – e, ligeiro,

Toma o timão, rema no teu voo

Áspero de arcanjo carreteiro”.

Por outro lado, seu marido Efron tornara-se militante do Partido Comunista Francês e, logo após, foi cooptado para o Serviço Secreto Soviético no exterior. Sob o comando de Pavel Sudoplatov, o homem de missões especiais da NKVD, Efron executou de uma série de ações, primeiramente em Paris, posteriormente na Suíça.

Com a glasnost surgiram indícios de que Efron tenha tido participação no assassinato por envenenamento, após apendicectomia, do filho de Trotsky, que era o mais atuante trotskista na Europa, Liev Sedov em 1936.

De toda forma, em 1937, ele é convocado para ir à Suíça e participar do assassinato do ex-agente Ignácio Reiss, que desertara do serviço secreto soviético. Acontece que Reiss deixara pistas que identificava a cilada para qual fora atraído por uma amiga de mais de vinte anos, onde fora emboscado e executado.

Em seu hotel a polícia encontrou um bilhete assinado pelo assassinado:

“Quem ainda se cala, torna-se cúmplice de Stalin e traidor da classe operária e do socialismo… Mas eu não posso mais; devolvo-me a liberdade e retorno a Lênin e a sua obra”.

A investigação das polícias suíça e francesa conduziu até Efron. Ele, entretanto, conseguiu fugir graças à diplomacia soviética e voltar à Rússia.

Independentemente do que sucedera com o pai, Ariadna Efron, já uma poetiza de primeira grandeza, resolvera retornar à sua Pátria, a União Soviética, convencida de que encontraria ali um país comprometido com a liberdade e a justiça social.

Por seu lado, a mãe, Marina, decidiu permanecer com os outros filhos em Paris, aparentemente sem conhecer o tipo de ações nas quais seu marido, como agente da NKVD, estava envolvido.

O casamento de Marina e de Efron sempre fora aberto, numa relação que duraria por toda a vida. As paixões da poetiza fora do casamento nunca duravam muito. Os amantes, regra geral, acabavam por fugir de suas exigências. Um único amor que não foi circunstancial e que criou uma sólida amizade foi o de Boris Pasternak, o qual muito a ajudou, assim como a sua filha Ariadna, e nos piores momentos.

Em visita a Paris para participar de um congresso antifascista em nome da III Internacional, Pasternak aconselhou a Marina a que não retornasse à Rússia. Ela correria riscos. Mas o esforço de Pasternak foi vão. Marina era voluntariosa e, dois anos após, em 1939, ela voltará à Pátria com seus outros filhos, em busca de Ariadna e do marido Efron.

Ariadna, por seu turno, em 1938, passara a viver na companhia do pai Efron nos arredores de Moscou. A vida parecia pela primeira vez estável, e ela era bem remunerada como tradutora e ilustradora. Foi quando conheceu Samuel Gurevicht, por quem se apaixonou.

Acontece que Gurevicht era o homem errado, na hora errada, simplesmente um agente da NKVD plantado na família de Efron. Chegaram até a marcar data para o casamento, mas antes dele Ariadna foi presa, suspeita de conspiração. Torturada, terminou mentindo e incriminou o próprio pai, por ações que ele tão pouco praticara.

Ariadna foi condenada a um campo de trabalho forçado siberiano de Kolimá, o qual somente seria autorizada a deixar oito anos após, em 1947.

Nesse ínterim, Marina retornara a Moscou disposta a reunir toda a família; profunda foi sua desilusão quando logo soube da prisão do marido Efron. Notícias da filha Ariadna, somente as obteve após mais de ano e meio.

Quando Efron foi fuzilado em 1941, por traição à Pátria, no princípio da Grande Guerra, Marina recebeu ordem de evacuação para a cidade de Ielabuga, no Tartaristão onde, em aparente desespero, enforcou-se.

Trinta anos após, no entanto, surgiram testemunhas de que ela havia sido assassinada por agentes do Estado.

Pouco antes da morte, aos 48 anos, Marina escrevera, coincidentemente, o “Poema do Fim”:

“Oh dupla coragem, sequidão-

Dos homens, onde está você,

Se em minha mão há lágrimas

E não chuva?

A água é da fortuna

O que mais poderia querer?

Se teus olhos são diamantes

Que se vertem em minhas palmas,

Já não perco

Nada. Fim do fim.

Carícias, abraços

Eu acariciava tua face.

Assim somos orgulhosos.

Quando chove em minhas mãos

Olhos de águia:

Você chora? Meu amor,

Meu tudo: me perdoe!

Pedras de sal

Caem em minhas mãos.

Pranto de homem, veia,

Na cabeça recostada.

Gritos. Outra te devolverá

A vergonha que te fiz deixar.

Somos dois peixes

Dos meus, meu, seu, meu mar,

Duas conchas mortas

Lábio contra lábio.

Todas as lágrimas.

Sabor

Um oráculo

– O que acontecerá

Quando e se

Despertares?”

O filho mais velho de Marina, que com a mãe retornara à U.R.S.S., Mur Efron, foi incorporado como oficial ao Exército Vermelho logo após a morte da mãe, e morreu em combate em 1943.

Ariadna Efron, a filha, foi libertada da Sibéria em 1947, sendo proibida de residir em Moscou e em outras 39 cidades soviéticas. De todo modo, esse período da história é muito difícil de ser compreendido. Em carta a uma amiga, Ariadna confessa seus encontros fortuitos com o ex-marido, o mesmo que a espionara e a entregara à KGB e à tortura! Residia, então, em Riazan, ilustrando livros de arte.

Em 1949, ela voltou a ser detida e foi novamente enviada para um campo de trabalhos forçados, onde o inverno alcança temperaturas abaixo dos 50 graus negativos, do qual somente sairia em 1955, quando publicamente foi reabilitada pela União Soviética.

Em segredo, Ariadna foi a primeira pessoa a receber o original de “Doutor Jivago” das mãos de Pasternak e a criticá-lo. Anos após, o livro revisado por Ariadna, receberia o Prêmio Nobel de Literatura!

Finalmente reabilitada, ela trabalhou como arrumadeira e, depois, na Casa da Cultura. Escreveu a Pasternak: “De todas as minhas qualidades as mais evidentes são uma resistência de camelo e uma paciência mais que humana”.

Sua mãe, Marina Tzvietáieva, deixara uma obra poética enorme, que foi salva da destruição e do esquecimento graças à filha. Em liberdade, Ariadna ocupou todos seus momentos livres com os escritos deixados pela mãe, escondidos em um baú em casa de uma velha tia.

Voltou finalmente a ser tradutora e ingressou na União dos Escritores Proletários em 1965, quando conseguiu autorização para morar em Moscou.

É impressionante que com sua vida vivida, Ariadna jamais tenha perdido a confiança no Partido Comunista e em seus dirigentes. Confessa a Pasternak, em carta, sua admiração por Josef Stalin quando ainda vivia reclusa em Turukhansk, em 1952!

Tempos difíceis de serem interpretados com a visão do presente, após o desabar da União Soviética. No entanto, os abismos de abjeção, de ignomínia que a história nos revela, causam-nos perplexidade e horror, pois como se pode passar tão rapidamente do sublime da Revolução de 1917 ao mais mesquinho e ignóbil da natureza humana?

Ariadna foi a única, de toda a família de Efron e Marina, a falecer de morte natural, no ano de 1975.

Bibliografia:

1. Schnaiderman, Boris. Os escombros e o mito. Companhia das Letras, 1997.

2. Wilson, Edmund. O castelo de Axel. Editora Cultrix, 1993.

3. Berman, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Companhia das Letras, 2006.

4. Aron, Raymond. O ópio dos intelectuais. Editora Três Estrelas, 2016.

5. Berman Marshall. Aventuras no Marxismo. Companhia das Letras, 2001.

6. Tsvetaieva, Marina. Indícios flutuantes. Martins Editora.

7. Tsvetaieva, Marina. Confissões. Martins Fontes, 2008.

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