A atitude do ser humano perante a morte ao invés da morte em si não seria a busca de um mistério primordial? Talvez seja preciso descortinar as paixões profundas perante a morte, considerar o mito da morte em toda a sua humanidade, para somente depois visualizar a morte nua, desumanizada, em sua simples realidade biológica; ela, que não possui essência alguma, pois que é simplesmente o nada, um nada que encerra uma tremenda realidade. Ou seja, no dizer de Morin, “a morte é a mais vazia das ideias vazias, com seu conteúdo impensável, inexplorável, e a ideia da mesma é traumática por excelência”.
La Rochefoucauld, ao refletir sobre a incapacidade de o ser humano encarar a morte, escreveu: “nem o sol nem a morte podem ser vistos de frente”. Encará-la pode tanto nos cegar sobre seus mistérios como também nos fazer olhar no poço de nossa existência, que é um poço sem fundo, onde apenas veremos a imagem de nosso eu refletida, tão só, tão terrivelmente só, como diria Mann.
Não existiu nenhum grupo, por mais arcaico que fosse que abandonava os seus mortos, ou o fizesse sem os ritos preliminares. As pedras funerárias estão ali para proteger o morto contra os animais e assegurar-lhe alguma maneira de sobrevivência. O antropólogo Fraser insiste em um importante aspecto da universalidade da crença na imortalidade “como um prolongamento da vida por um período de tempo indefinido, não necessariamente eterno. A crença na imortalidade faria desta uma metáfora da vida”. Dialeticamente, a consciência da morte causa um trauma, que necessita da imortalidade como contraponto. Segundo Freud, “no fundo ninguém acredita em sua própria morte, ou o que dá no mesmo, em seu inconsciente cada um está persuadido de sua própria individualidade”.
No entanto, a dor pela morte só ocorre se o morto for próximo e tiver reconhecida sua individualidade, como ser único, insubstituível, daí a emoção-choque, o terror, a dor, o sentimento de ruptura, o trauma. Temos a consciência de um vazio, de um nada, que se abre onde havia plenitude individual. O traumatismo da morte é, então, um fato não menos fundamental que a consciência do fato da morte e na crença na imortalidade. Quanto mais o homem descobre a perda da individualidade por traz do cadáver, mais ele é afetado pela morte, mais descobre que ela é a perda irreparável da individualidade. Goethe afirmou que “a morte de um ser próximo é sempre incrível e paradoxal, uma impossibilidade que se transforma em realidade. Esta aparece como um castigo, um erro, uma irrealidade.”
Caso o morto não seja alguém próximo, a dor simplesmente não existe; e se algo dela existir será uma espécie de solidariedade distante.
A “quarentena do luto” é muito antiga e, segundo Morin, corresponderia ao tempo da decomposição, “quando o contágio pela morte estaria superado”. Para abreviar esse tempo do horror sentido pelos vivos, surgiram ideias para se apressar a decomposição e encurtar o ritual da dor. Muitas alternativas, não necessariamente excludentes, foram utilizadas no tempo: o canibalismo, o embalsamamento, a cremação, o afastamento do defunto do convívio próximo aos vivos, colocando-o em locais distantes, como covas, grutas e, finalmente, nas “casas de repouso”, os cemitérios.
Shopenhauer ensinou-nos que “o animal vive sem conhecer a morte; só tendo consciência de si como um ser sem fim”. A morte e a perda de individualidade afeta o animal quando a ordem da espécie foi alterada pela domesticação: ela o liberta da tirania vital e o individualiza; ao enterrarmos um animal, nós o humanizamos. Se no inconsciente humano se misturam a cegueira animal da morte e o desejo de imortalidade, a consciência humana da morte não supõe apenas a consciência daquilo que era inconsciente no animal, e sim, uma ruptura na relação indivíduo – espécie, um aprofundamento da individualidade em relação à espécie, uma decadência da espécie em relação à individualidade.
Não é somente o avanço de doença e a velhice que destroem o indivíduo, que fazem com que o medo da morte e a consciência da mesma se dissipem, mas, principalmente, quando se enfraquece no ser humano “o músculo da afirmação de si mesmo”.
O suicídio coroa um ato de afirmação da individualidade, quando o horror da morte se enfraquece e o indivíduo sente esta afirmação mais verídica que o próprio horror. Para Dostoievsky assim como para Proust, o suicídio como negação do limite da espécie é o teste absoluto da liberdade humana. A sociedade é vencida, negada, incapaz de expulsar a morte. Este é o maior feito do suicida. A vitória extrema e o desastre irremediável. É a individualidade livre de todos os laços.
Spencer, em seu positivismo, dizia que “a possessão do indivíduo pelo Estado é o caráter do Estado social adaptado à guerra”. O título de herói foi banalizado nas guerras dos séculos XIX e XX, dado que se aplicava a todo combatente que morresse. O único conforto dado ao que iria morrer numa trincheira ou nos campos de combate era o posterior assassinato, a vingança, purgar a morte daquele que foi à luta no inimigo a abater. Esta atitude que podemos definir como mágica, sacrificial, é determinada por uma “regressão geral da consciência que determinava as guerras” de conquistas imperialistas, quando os serviços militares se tornaram obrigatórios. Tolstoi conceituava o recrutamento compulsório um crime de lesa-humanidade. Nesse paroxismo desaparece a consciência da morte e ela não apenas deixa de ser sentida traumaticamente, mas, até mesmo, de ser vista.
A. France incursionou, em tempos de Primeira Guerra Mundial, na mesma temática que Spencer. Mas para ele, “os exércitos são muito mais odiosos pela imbecilidade que os acompanha do que pelos assassinatos que provocam”. Os homens quando estão obcecados pela morte buscam o perigo; eles querem esquecer a morte com a morte.
Na antiga Atenas, enquanto a cidade vivia em função do cidadão, o indivíduo podia abdicar conscientemente de sua primazia em benefício da “polis”, pois esta representava todas as individualidades cívicas e nutria cada individualidade. A cidade que se apodera do cidadão lhe dá a glória eterna, o que significa exaltação individual e imortalidade social, e a busca da glória é a busca da felicidade. Fenômenos semelhantes ocorreram em outros momentos da História da humanidade, mas sem dúvida, um dos mais marcantes, aconteceu na luta contra o nazismo alemão, durante a chamada “Guerra Pátria”, travada pela antiga URSS. Com razão dizia Shopenhauer: “no espírito do que morre pela Pátria, seu próprio eu aparece em seus compatriotas, nos quais continua a viver, e nas vidas futuras pelas quais está agindo.”
Em seu desenvolvimento máximo o individualismo chega ao cosmopolitismo. Mas o cosmopolitismo, que na antiga ótica revolucionária era denominado internacionalismo, era o cosmopolitismo alargado à humanidade inteira, libertando-a de todos os preconceitos particulares. Outra vertente do cosmopolitismo é o isolamento da individualidade do mundo, o desprendimento de tudo, a solidão. Aí o individuo contesta uma sociedade que, estando à parte de sua vida, não pode fazê-lo esquecer a própria morte. Nada mais o prende a uma vida que ele mesmo sabe fadada à destruição. Assim, na deificação de si mesmo, nasce da angústia extrema da morte, novamente, a tentação do suicídio. Se “toda neurose é uma tentativa regressiva de reconciliação com o meio” (Freud), o suicídio como ruptura suprema, é a reconciliação desesperada com o mundo.
O assassinato quer se perpetue por fúria, latrocínio, loucura, por decisão fria ou de Estado, astucioso como a chave do fascismo, revela uma realidade exclusivamente humana. O assassinato é a satisfação de um desejo de matar que nada foi capaz de deter. Esta é sua face negativa; a positiva é a volúpia, o desprezo, o sadismo, o ódio, que traduzem uma libertação anárquica, mas verdadeira, das pulsões da individualidade em detrimento dos interesses da espécie. Em última análise, quando “in extremis”, a afirmação absoluta da própria individualidade provoca a destruição das outras.
A tortura da morte é uma espécie de síntese horrível do desejo de negar e de humilhar o outro, em que o torturador encontra o gozo conjugado do assassinato e da escravidão. A confissão que se busca arrancar por meio da tortura é o “tu és um rei, eu, um lixo”. E é o seu próprio nada que o torturado é forçado a reconhecer, reconhecendo assim a “divindade” absoluta de seu torturador. Dentro do instrumental freudiano, na tortura o Id se rebela pela dor sofrida e tenta sufocar o Eu. O que segura a humanidade do torturado é o Superego com seus valores. Mas quando este desaba, desabam o Ego e o próprio Id. Ao tratar de coisificar o torturado, o torturador entra na armadilha que ele preparou e se desumaniza, acanalha-se. Transforma-se em uma monstruosidade, corrompida até as últimas fímbrias de seu ser.
Se na guerra o soldado não crê na possibilidade da própria morte, as experiências de incontáveis presos políticos durante os regimes ditatoriais é o seu oposto. O preso político sabia muitas vezes que era um morto virtual, sendo imunizado do terror pelo próprio horror, imunizado contra o horror do cadáver pela proximidade cotidiana dos cadáveres ou daqueles outros que iriam ser triturados, e mesmo, assassinados.
Isso se repete ainda nos dias de hoje, quando corpos dos moradores da periferia, mortos ou vivos, não são nada mais que “coisas”, sem registro de prisão, sem nome próprio. No Rio de Janeiro em suas favelas, em São Paulo nas suas periferias, a morte se banaliza e, portanto, na consciência coletiva ela se apaga. “A morte ela é sempre uma ideia civil” (Morin). Um militar não mata, não provoca assassinatos, no seu consciente ele só faz destruir o inimigo interno. O inimigo que o afronta em sua prepotência ou contra o qual é enviado, pela rede de comando, a aniquilar.
Como fruto brutal do avanço imperialista, surgiu a “morte tecnológica”, que é a morte acionada por controle remoto. Mesmo que o assassino sentado à frente de um computador se divirta ao apertar um botão de videogame, ou que ele esteja realmente convencido de que as armas tipo “drones” sejam “inteligentes” e que somente matarão os “inimigos da civilização”, ele permanece sendo um assassino covarde, que nem ao menos corre o risco do combate. O assassino é socialmente incógnito, assim como não identificáveis serão os resultados de seus botões apertados. A guerra tecnológica constitui um passo gigantesco na banalização absoluta do mal de que nos falava Arendt, ainda que inimaginável até pelos brutais genocidas nazistas nos campos de concentração.
Embora o risco de morte também possa ocorrer por amor, êxtase, vaidade, masoquismo, loucura ou por simples felicidade, existe ainda a variante da morte por amor ao próprio risco. Ela não deixa de ser uma forma de usufruir a vida. No entanto, corre-se também o risco da morte por valores. Não apenas os valores cívicos provedores do heroísmo oficial; desde os séculos XIX e XX, os valores revolucionários foram incutidos nos cidadãos. Na luta revolucionária o espectro da morte só ronda ao longe. O revolucionário buscará no instinto um formidável protetor contra a morte, permitindo que a espécie a fareje e não o indivíduo. E a espécie conhece a morte melhor que o indivíduo consciente. Aqueles que sobreviveram à luta de guerrilhas devem-no em parte ao seu instinto farejador. Corre-se o risco de morte para não se renegar as próprias ideias e a dignidade. O grito pode ser o do eu coletivo, ou o berro isolado de tantos revolucionários agonizantes. Na consciência do guerreiro-mártir, esta morte que se afasta, voltará, um dia, sob a forma da liberdade coletiva.
O desenvolvimento histórico da sociedade está ligado de maneira mais estreita ao da individualidade. O progresso que a história humana exige é o desenvolvimento mútuo e recíproco da sociedade e do individuo. Segundo Benjamin: “não existe um só testemunho de cultura que também não o seja o da barbárie”.
Ninguém sabe qual será a face de sua própria morte. “A religião se especializa cada vez mais na canalização do traumatismo da morte e na manutenção do mito da imortalidade, dando-lhe forma e saúde. No entanto, se a consciência da imortalidade é plena, deveria restar apenas a consciência da morte como fato e o trauma deveria se esvair”(Morin).
Enquanto Marx ensinou-nos que “a religião é como o suspiro da criatura angustiada”, Freud definiu-a “como a neurose obsessiva da humanidade. Mas com um papel fundamental de refutação das verdades desesperadoras da morte”. O sereno equilíbrio do fiel se baseia no delírio patológico de sua religião. Não são os feiticeiros ou os sacerdotes que tornam a morte terrível; o que eles fazem é utilizarem-se do terror da morte. No entanto, se a religião é mórbida do ponto de vista social, ela pode operar curas importantes do ponto de vista individual. Afinal, quantos de nós somos capazes de olhar no poço sem fundo de nossa inexorável mortalidade?