A revolta e o renascimento da civilização, no centenário de Albert Camus

Todo revoltado, só pelo movimento que o soergue diante do opressor, defende a causa da vida, comprometendo-se a lutar contra a servidão, a mentira e o terror e afirmando, com a rapidez de um raio, que estes três flagelos fazem reinar o silêncio entre os homens, obscurecendo-os uns aos outros e impedindo que se reencontrem no único valor que pode salvá-los do niilismo: a longa cumplicidade cujo limite é precisamente o poder de revolta de dos homens em conflito com seu destino.

A revolta não é, de forma alguma, uma reivindicação de liberdade total; pelo contrário, ela ataca permanentemente a liberdade total, contesta o poder ilimitado que permite ao superior violar a fronteira proibida. Longe de reivindicar uma independência geral, o revoltado quer que se reconheça que a liberdade possui limites em qualquer lugar em que se encontre o ser humano, já que o limite é o seu poder de revolta.

Ele não humilha ninguém; a liberdade que quer é a mesma que reivindica para o outro, a que recusa a proíbe para todos. Sua lógica profunda não é a da destruição, mas a da construção. A lógica do revoltado é querer servir à justiça a fim de não aumentar a injusta condição humana, esforçar-se no sentido de uma linguagem clara para não aumentar a mentira universal e apostar, diante do sofrimento humano, na felicidade.

A história das revoluções mostra que quase sempre elas entram em conflito entre a justiça e a liberdade como se elas fossem inconciliáveis. A liberdade absoluta é o direito do mais forte dominar. Ela mantém os conflitos que beneficiam a injustiça. A justiça absoluta passa pela supressão de toda liberdade. A história em seu movimento puro, não fornece por si mesma nenhum valor. Um pensamento puramente histórico é niilista: ele aceita todo o mal da história, opondo-se nisso, à revolta. De nada adianta afirmar a racionalidade absoluta da história; ela só se completará ao fim da história, na cidade de Deus na terra.

O cinismo como atitude política só é lógico em função do pensamento absolutista, ou por um niilismo absoluto ou por racionalismo absoluto. Todo empreendimento histórico só pode ser uma aventura mais ou menos razoável e fundada. É risco, não justificando excessos ou posições absolutistas. Se a revolta pudesse criar uma filosofia seria a dos limites, da ignorância calculada e do riso. Aquele que não pode saber tudo não pode matar tudo. O revoltado não nega a história que o cerca, nela tenta firmar-se, mas ele se vê como o artista diante do real, ele a rejeita sem dela escapar.

Em sociedade, não há justiça e nem direitos naturais e civis que a fundamentem. Não há direito sem expressão do direito. Para conquistar a existência, é preciso partir do pouco de existência que descobrimos em nós, e não negá-la desde o início. Fazer com que o direito emudeça até que a justiça seja estabelecida é emudecê-lo para sempre. É confiar a justiça aos poderosos. Mesmo quando a justiça não é realizada, a liberdade preserva o poder de protesto e salva a comunicação.

O mesmo raciocínio aplica-se à violência. A não-violência absoluta funda negativamente a servidão e suas violências; a violência sistemática destrói positivamente a comunidade viva e a existência que dela recebemos. Para serem profícuas devem encontra os seus limites. Para o revoltado deve preservar seu caráter provisório de rompimento, sempre ligada, se não puder ser evitada, a uma responsabilidade pessoal, a um risco imediato.

O fim justifica os meios? É possível, mas quem justificará o FIM? A revolta responde: os meios. A revolução, após 200 anos de experiências, perdeu seu prestígio de festa e muito produziu sobre o que se refletir.

O espírito revolucionário se quiser continuar vivo, deve voltar a retemperar-se na revolta, inspirando-se no único pensamento fiel a essas fontes, o pensamento dos limites. As ideologias que orientaram o século XX nasceram nos tempos das grandezas científicas absolutas, hoje todas as certezas científicas são relativizadas.

Nem o real é inteiramente racional, nem o racional é totalmente real. Heráclito inventor do devir fixava um marco para esse processo contínuo. Esse limite era a Nemisis, deusa da medida, fatal para aqueles que cometem a desmedida, incorrendo na Hybris; a revolta deve também inspirar-se nessas divindades.

Em arte, a revolução só se completa e perpetua na verdadeira criação, não na crítica ou no comentário.  A revolução, por sua vez, só pode firmar-se numa civilização, não no terror, nem na tirania.  A criação e a revolução hoje são possíveis?  A resposta é única e diz respeito ao renascimento de uma civilização.

A sociedade capitalista escraviza o homem ao meio- produção industrial. Faz promessas em nome de princípios formais que ela é incapaz de gerar e que é negado pelos meios que ela emprega. A sociedade de produção, do “progresso” é apenas produtiva, não criadora. O mundo de hoje é, em sua realidade uno, mas sua unidade é a do niilismo. A civilização só será possível se, ao renunciar ao niilismo dos princípios formais e ao niilismo sem princípios, o mundo reencontrar o caminho da síntese criadora.

A arte e a sociedade devem, para tanto, reencontrar a origem da revolta, na qual recusa e consentimento, singularidade e universal, indivíduo e história se equilibram na tensão mais crítica.A revolta não é um elemento da civilização, mas ela precede toda a civilização. Diz Nietzsche: “EM VEZ DO JUIZ E DO REPRESSOR, O CRIADOR”. Toda criação nega em si mesma o mundo do senhor e dos escravos. Mas o fato de que a criação seja necessária, não quer dizer que ela seja possível. O objeto da arte estende-se da psicologia à condição humana.

Se a criação é impossível em meio a guerras e revoluções, não teremos criadores. O mito da produção indefinida traz em si a guerra, assim como a núvem, à tempestade. As oportunidades de malogro no século das destruições só podem ser compensadas pelo fator numérico, em que pelo menos um artista autêntico sobreviva, dentre centenas.

Se afinal, o mundo se curvasse à lei dos conquistadores, isso não provaria que a quantidade é soberana, e sim, que este mundo é um inferno. Mas o inferno só tem um tempo, a vida um dia recomeça. Talvez a história tenha um fim; nossa tarefa, no entanto, não é terminá-la, mas criá-la à imagem daquilo que sabemos verdadeiro. A arte nos ensina que o homem não se resume somente à história, que ele encontra também razão de ser na natureza. O grande Pã não morreu. Sua revolta mais instintiva, ao mesmo tempo em que afirma o valor e a dignidade comum a todos, reivindica obstinadamente, para com isto satisfazer sua fome de unidade, uma parte intacta do real cujo nome é beleza. Os revoltados que querem ignorar a natureza e a beleza estão condenados a banir da história que desejam construir  a dignidade do trabalho e da existência.

Ao manter a beleza, preparamos o dia do renascimento em que a civilização colocará no centro de sua reflexão, longe dos princípios formais e valores degradados da história, essa virtude viva que fundamenta a dignidade comum do mundo e do homem, e que agora devemos definir diante de um mundo que a insulta.

Se a revolta quer uma revolução, ela a quer a favor da vida, de baixo para cima. Longe de ser romântica, ela toma o caminho do verdadeiro realismo.

A Comuna contra o Estado, a sociedade concreta contra a absolutista, a liberdade refletida contra a tirania racional e, finalmente, o individualismo altruísta contra a colonização das massas: são as antinomias que traduzem o longo confronto entre a medida e a desmedida que anima a história do Ocidente desde o mundo antigo. A medida não é o contrário da revolta. A revolta é a medida, é ela quem a exige, quem a defende e recria através da vida e dos seus distúrbios; a medida nascida na revolta só pode ser vivida pela revolta, pois a desmedida conservará sempre o seu lugar no coração do homem, no lugar da solidão.

Todos  carregamos nossas masmorras, nossos crimes e nossas devastações em nosso espírito. A tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combatê-los dentro de nós próprios e nos outros. A revolta, a secular vontade de não ceder de que falava Barrès, ainda hoje está na base desse combate. Mãe das formas, fonte da vida verdadeira, ela nos sustenta no movimento selvagem e disforme da história. Nenhuma sabedoria atualmente pode pretender dar mais. A revolta confronta incansavelmente o mal, do qual só lhe resta tirar um novo ímpeto. O homem pode dominar em si tudo aquilo que deve ser dominado. Em seu maior esforço, o homem só pode propor-se uma diminuição aritmética do sofrimento do mundo. Mas a injustiça e o sofrimento permanecerão e não deixarão de ser um escândalo. O porquê de Karamasov continuará a ecoar: a arte e a revolta só morrerão com a morte do último homem.

Há vinte séculos, a soma total do mal não diminuiu no mundo. Nenhuma a parúsia, quer  a divina ou a revolucionária, se realizou. Aqueles que não encontram descanso nem em Deus, nem na história estão condenados a viver para aqueles que como eles não conseguem viver: os humilhados. Vale o grito de Ivan Karamasov: “se não forem salvos todos, de que serve a salvação de um só?”.

A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente. A revolta é o próprio movimento da vida; por isso ela é amor e fecundidade ou ela não é nada. A revolução sem honra, que coloca o homem abstrato no lugar do de carne e osso, coloca o ressentimento no lugar do amor. A revolta quando se contamina pelo ressentimento, deixando suas origens generosas, ela nega a vida e corre para a destruição, fazendo sublevar-se a turba de pequenos escravos que se oferecem aos mercados da servidão e do enriquecimento. Para além do niilismo, entretanto, em meio aos escombros, preparemos um renascimento. Poucos ainda sabem disso. Mas devemos aprendera viver e a morrer, para sermos homens, nos recusando o papel de deus.

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