O Sentido da Revolta

De repente, o Brasil mudou. De repente? A dialética nos ensina que podem ocorrer saltos de qualidade, que por momentos aturdem aqueles que apenas percebem pequenas mudanças quantitativas. O Brasil, onde milhões de pessoas ganharam as ruas para protestar, para externar sua revolta e descontentamento, deixou de ser o mesmo.  Foram manifestações que ocorreram de norte a sul, leste a oeste, com focos múltiplos e que dispensaram a liderança de partidos políticos tradicionais, de sindicatos e outros mecanismos formais de representação.

Confundir a Revolta das ruas com o fascismo é no mínimo miopia. Ela exprime um repúdio por um estilo de política que deixou de representa-la, e não pelos valores democráticos que consideram a democracia como o poder que emana do povo, exercidos em nome do mesmo e em seu interesse.

Cabe à esquerda democrática reciclar-se rapidamente, reaprender com toda essa revolta; cabe à democracia recapacitar-se na realização da tessitura e da urdidura da representação social, abarcando sem medo as reivindicações do povo na rua e auxiliando-o a encaminhar adequadamente seu protesto. Para isso é necessário que o papel de revoltados, que um dia muitos de nós cumprimos, e que hoje tantos criticam, abra-se para esse novo momento, em que “espíritos livres” surgem sem pedir licença a uma democracia formal que se esclerosou.

Mas falemos um pouco sobre a Revolta Histórica.

Muitas vezes nos esquecemos de que a revolta constitui uma das dimensões essenciais do homem, que o revoltado é, antes de tudo, aquele que diz não. Mas ao dizê-lo, ele se recusa a  renunciar aos seus direitos efetivos. Ele quer vivenciar uma nova realidade. Portanto, a revolta se legitima quando se crê que se tem razão, com a invocação tácita de valores de cidadania. Portanto, partindo de uma aparência negativa, ela é, na sua essência positiva, à medida que revela o que no homem deve ser sempre defendido: a sua liberdade, a possibilidade de ação, ou aquilo que é seu corolário: a vontade ativa e a possibilidade de iniciar algo novo.

Existem características que são marcantes num movimento de revolta e os jovens revoltados das ruas os expressam muito bem. Por exemplo, a revolta não é egoísta; o homem se revolta tanto contra a mentira quanto contra a opressão. Quando o revoltado exige para si respeito, o faz na medida em que se identifica com uma comunidade. É na revolta que um homem se transcende no outro, e, desse ponto de vista, a solidariedade humana aflora. Trata-se desse mesmo tipo de solidariedade que nasce nas prisões, nas masmorras, nos campos de extermínio, mas também nas ruas, nos enfrentamentos com as forças repressivas. Solidariedade que somente aqueles que atravessaram momentos da tensão humana maior são capazes de sentir em sua plenitude.

E a solidariedade que se fundamenta no movimento de revolta só encontra justificativa numa estreita cumplicidade. É quando o revoltado ganha a consciência do ser coletivo e a aventura passa a ser compartilhada por todos. A revolta, que retira o homem de sua solidão, fundamenta-se em um valor maior: “eu me revolto, logo, existo, e existo em comunidade!” O jovem deixa de ser somente um indivíduo consumista, um filho do mercado: em seu êxtase de revolta, ele torna-se também cidadão, filho da democracia!

Nos dias de hoje o espírito de revolta em todo o Mundo prolifera em grupos nos quais uma igualdade teórica encobre grandes desigualdades de fato. A revolta torna-se o ato do homem informado, cônscio de seus direitos. E ele se insurge contra um mundo fragmentado para reclamar unidade, contrapõe o princípio de justiça que dentro do revoltado existe, ao de injustiça que vê no mundo real. Essa revolta é como um “fantasma” a assustar todo o Capitalismo Globalizado.

É o revoltado, ao levantar-se diante do opressor, que defende a causa da vida, luta contra a servidão, a mentira e o medo. São estes três flagelos que fazem reinar o silêncio entre os homens, obscurecendo-os e impedindo-os que se reencontrem no único valor que pode salvá-los do niilismo: a longa cumplicidade, cujo limite é precisamente o poder de revolta.

Mas não nos equivoquemos crendo que a verdadeira revolta histórica seja uma reivindicação por liberdade total; pelo contrário, ela ataca permanentemente a liberdade total, contesta o poder ilimitado que permite ao superior violar a fronteira proibida. Longe de reivindicar uma independência geral, o revoltado quer que se reconheça que a liberdade possui limites em qualquer lugar em que se encontre o ser humano, já que o limite é o seu poder de revolta. A liberdade que deseja para si é a mesma que reivindica para o outro. Sua lógica profunda não é a da destruição, mas a da construção.

A lógica da revolta é querer servir à justiça a fim de não aumentar a injusta condição humana, esforçando-se para não se aumentar a mentira universal e apostar, diante do sofrimento humano, na felicidade. Se a revolta pudesse criar uma filosofia, ela seria a dos limites, da ignorância calculada e do riso. Pois não há direito sem expressão do direito. Fazer com que o direito emudeça até que a justiça seja estabelecida é emudecê-lo para sempre. É confiar a justiça aos poderosos. Mesmo quando a justiça não é realizada, a liberdade preserva o poder de protesto e salva a comunicação.

O mesmo raciocínio aplica-se à violência que surge em protestos, na revolta quando explode. A não violência absoluta funda negativamente a servidão e as violências do poder, enquanto que a violência sistemática destrói a comunidade viva e a existência que dela recebemos. Para ser profícua, a violência deve encarar os seus limites. E o revoltado deve preservar seu caráter provisório de rompimento, sempre ligado, se não puder ser evitado, a uma responsabilidade pessoal, a um risco imediato.

O fim justifica os meios? É possível, mas quem justificará o FIM? A Revolta responde: os meios. A revolução, após 200 anos de experiências, perdeu seu prestígio de festa e muito produziu sobre o que se refletir.

A sociedade da produção, do “progresso” e do consumo é apenas consumista, não criadora. O mundo de hoje é, em sua realidade uno, mas sua unidade é a do niilismo dos “shopping centers”. A civilização só poderá opor-se à barbárie se, ao renunciar ao niilismo dos princípios formais e ao niilismo sem princípios, auxiliando o mundo a reencontrar o caminho da síntese criadora.

Sabemos hoje que a revolução sem outros limites, que não a eficácia histórica, significa escravidão ilimitada. Para escapar a esse destino, o espírito revolucionário, se quiser continuar vivo, deve voltar a retemperar-se na revolta, inspirando-se no único pensamento fiel a essas fontes, o pensamento dos limites. Se a Revolta quer uma revolução nas relações humanas, ela a quer a favor da vida, de baixo para cima. Longe de ser romântica, ela toma o caminho do verdadeiro realismo. Será a Comuna contra o Estado, a sociedade concreta contra a absolutista, a liberdade refletida contra a tirania racional e, finalmente, o individualismo altruísta contra a colonização das massas. Essas são as antinomias que traduzem o longo confronto entre a medida e a desmedida.

Ora, a medida não é o contrário da revolta. A revolta é a medida, é ela quem a exige, quem a defende e recria através da vida e dos seus distúrbios; a medida nascida na revolta só pode ser vivida pela revolta, pois a desmedida conservará sempre o seu lugar no coração do homem, no lugar da solidão. A revolta, a secular vontade de não ceder de que falava Barrès, ainda hoje está na base desse combate. Mãe das formas, fonte da vida verdadeira, ela nos sustenta no movimento selvagem e disforme da história.

Finalmente, a revolta é o próprio movimento da vida; por isso ela é amor e fecundidade ou ela não será nada. A “revolução” sem honra, que coloca o homem abstrato no lugar do de carne e osso, coloca o ressentimento no lugar do amor. A revolta quando se contamina pelo ressentimento, deixando suas origens generosas, nega a vida e corre para a destruição, fazendo sublevar a turba de pequenos escravos que se oferecem aos mercados da servidão e do enriquecimento.

Para além do niilismo e do conformismo, em meio aos escombros, preparemos um Renascimento. Mas devemos aprender a viver e a morrer, para sermos homens. E aqueles que virão após nós serão muito melhores do que já o fomos.

( Referenciado no existencialismo de Camus)

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