A Revolta, em “Os Irmãos Karamazovi”, ou “devolvam-me o bilhete de entrada nesse mundo”.

A Revolta é o décimo quinto capítulo do romance de Dostoiévski, que antecede e prepara o leitor para o próximo, “O Grande Inquisidor”. O longo colóquio entre os dois irmãos Karamazovi, Ivan, o livre pensador e Aliocha, o seminarista, foi considerado, por Sigmund Freud, como uma das maiores conquistas da literatura mundial. Nessa resenha nos manteremos apenas na primeira parte do diálogo, a da “Revolta”.

A revolta de Ivan vai ao encontro de um mundo que se desfaz em injustiças e violência.  Primeiramente ele avança contra o preceito cristão do “amais-vos uns aos outros”. “Jamais pude compreender como se possa amar o próximo. Não se pode amar o próximo, a não ser que ele esteja distante; para que se possa amar alguém é preciso que ele esteja oculto (ou na multidão, ou no coletivo), pois desde que ele se mostra, o laço se desfaz… O amor de Cristo pelos homens é uma espécie de milagre impossível na terra, pois nós não somos deuses… Pode-se, isso sim, amar as crianças de perto, mesmo sujas, mesmo feias, aliás, eu nunca as acho feias. Já os adultos, esses comeram o fruto proibido, discerniram o bem do mal, tornaram-se semelhantes aos deuses. Mas as criancinhas não, são inocentes”.

Deve-se notar que Dostoiévski, em todo o seu romance, chama a todos os irmãos Karamasovi ora de crianças, ora de homens.

Prossegue Ivan dizendo que comparar a crueldade humana com a dos animais silvestres seria uma enorme injustiça para com esses, pois as feras jamais atingiriam os refinamentos do homem na maldade. “Se o diabo não existe e foi criado pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem e semelhança.”

Ivan Karamazov conta ao irmão cinco pequenas “histórias” ilustrativas da maldade a que pode chegar o homem:

Episódio 1. A história trata de um adolescente de nome Richard, que, em Genebra, converteu-se ao cristianismo antes de morrer. Havia sido “dado”, aos seis anos de idade, por seus pais a uns pastores que o “educaram” para o trabalho, ou seja, para ser um escravo. Richard crescera como um pequeno selvagem, faminto, sem roupas, a pastorear no inverno, desde os sete anos de idade. A fome levava-o a comer até mesmo a lavagem que era dada aos porcos; quando a comia e era pego, batiam-lhe sem piedade.

Ao tornar-se jovem, ele passou a roubar e chegou mesmo ao assassinato. Na prisão, por ter  menos de dezesseis anos, cercou-o uma multidão de almas caridosas, pastores calvinistas  e senhoras da sociedade. Ensinaram-no a ler e a escrever, assim como todo o Evangelho. Catequizaram-no e, em decorrência da fé adquirida, ele confessou o seu crime ao Tribunal dizendo-se um monstro, mas que Deus o esclarecera de toda a sua maldade. Toda Genebra filantrópica e pia emocionou-se com o caso. “Deves morrer porque derramaste sangue; além do mais és ladrão, pois roubaste aos porcos, mesmo que não seja por tua culpa, já que ignoravas a Deus”. Julgado culpado, no dia da execução, Richard chorava e repetia que aquele era o dia mais lindo de sua vida, pois iria arrependido até Deus. Toda a sociedade genebrina segue a carreta que o conduz ao cadafalso. “Morre irmão, morre no Senhor”, gritavam. E, coberto de beijos, Richard sobe ao cadafalso e a sua cabeça rola com a graça divina.

Episódio 2. “Entre nós, torturar batendo constitui uma tradição histórica, um gozo pronto e imediato”.  O poeta Nekrassov relata como um mujique bate com seu chicote nos olhos de um cavalo que não consegue atravessar um lamaçal. “É um bom russo. Quem já não viu isso? Ele bate encarniçadamente, sem saber muito bem o que faz e os golpes chovem numa espécie de embriaguez. A besta sem defesa se debate desesperadamente enquanto seu dono açoita seus olhos doces, de onde rolam lágrimas… Mas por que as pessoas se chocariam com o caso? Não se trata apenas de um cavalo que Deus criou para ser chicoteado? Afinal, os tártaros nos legaram o chicote para quê?  Para isso.”

Episódio 3.  As pessoas também podem ser espancadas. Um senhor culto e sua mulher sentem prazer em açoitar com varas sua filhinha de sete anos. E o pai está feliz porque a vara tem espinhos. Há seres que se excitam a cada golpe, chegam, progressivamente, ao sadismo. Bate-se na criança um minuto, depois cinco, após dez…, sempre mais e mais forte. O caso torna-se escandaloso e chega ao Tribunal. Toma-se um advogado, mas “há muito tempo o povo russo chama ao advogado de uma consciência de aluguel”. Trata-se apenas de um caso em família, o rábula argumenta. E o júri absolve o marido e a mulher e o povo o aplaude.

Episódio 4. Existe um pendor especial, em muitos, para o prazer de açoitar crianças; essas mesmas pessoas em sociedade mostram-se amáveis e ternas, mas fazer as crianças sofrerem é sua forma de amá-las. A confiança angélica das criaturas sem defesa seduz os seres cruéis. Pois cada homem oculta em si um demônio: acesso de cólera, sadismo, paixões ignóbeis, doenças contraídas na devassidão. No caso, os pais eram instruídos, mas praticavam muitas sevícias numa pobre menina. Açoitavam-na e seu corpo vivia repleto de equimoses. Refinaram, então, sua crueldade: nas noites de inverno encerravam a menina na privada para que ela não perdesse tempo urinando na cama. Esfregavam os excrementos na pequena face e a mãe obrigava-a a comê-los. E essa mãe dormia tranquila, insensível aos gritos da pobre criança. E o pequeno ser, sem saber ao certo o que acontece, bate em seu pequeno peito, chamando o bom Deus em socorro! “Ora, toda a ciência do mundo não vale as lágrimas de uma criança”.

Episódio 5. No começo do século XIX, na época da servidão, um antigo general, rico proprietário, vivia em uma fazenda com mais de duas mil almas de servos. Tratava a todos com desdém, e tinha uma centena de capatazes e  matilhas  de cães amestrados. Um dia, um pequeno servo de oito anos acertou uma pedra em um de seus cães favoritos. O general ordenou arrancar a criança dos braços da mãe e jogou-a numa masmorra. No dia seguinte, ele, em uniforme de gala, montado para ir à caça e cercado por seus parasitas, reúne todas as almas “ que lhe pertenciam”, para “dar um exemplo”.

Trazem a mãe e o menino. “O general ordena que, na manhã fria, tire-se toda a roupa do garoto, que por sua vez, tremia de medo, sem dizer palavra”. “Façam-no correr, ordena”. Nisso ele açula a matilha e os cães estraçalham a criança diante de sua mãe.

Ao terminar de contar esses casos, Ivan conclui: “Aliocha, limitei-me às crianças. Nada disse sobre as lágrimas humanas, de que a terra está encharcada. Não compreendo esse estado de coisas. Os homens são os únicos culpados: tinham-lhes dado o paraíso, cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo dos céus, sabendo que seriam infelizes. Não merecem, pois, compaixão.” No entendimento de Camus, Dostoiévski aqui confessa o seu niilismo.

“Compreendo (no modo Cristão de ver) como estremecerá o universo quando céu e terra se unirem num grito de alegria, quando tudo quanto vive ou viveu proclamar: Tens razão, senhor, tuas vias nos são reveladas! Quando, então, o carrasco, a mãe e o menino se beijarem. Mas eis a dificuldade, pois não posso admitir tal solução. Recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Enquanto não se redimirem as lágrimas de uma criança não se poderá falar em harmonia”.

Os carrascos e torturadores sofrerão no inferno, tu me o dizes, Aliocha. Mas de que serve o castigo se as crianças já tiveram seus infernos? Aliás, de que vale essa harmonia que comporta um inferno?”

“Querer o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. Mas se o sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo que ela não vale tal preço. E se o direito de perdoar não existe que vem a ser a harmonia? Pelo amor pela humanidade é que eu não quero essa harmonia. Prefiro conservar a minha indignação persistente mesmo se não tiver razão. Aliás, deram excessivo valor a essa harmonia, cujo preço nos é demasiado caro. Entrego meu bilhete na entrada. Como homem de bem tenho o dever de entregá-lo o mais rápido possível. Não recuso admitir Deus, mas muito respeitosamente, devolvo-lhe o meu bilhete”.

Aliocha, o seminarista, retruca que tudo aquilo não é nada mais que revolta, revolta contra Deus.

Ivan contra argumenta: “Pode-se viver revoltado? Ora, eu quero viver. Imaginas que os destinos da humanidade estejam em tuas mãos e que para tornar as pessoas definitivamente felizes, seria necessário torturar um ser, um ser apenas, tu o consentirias?” Eu, jamais.

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