Grandeza e decadência de uma ideia, a da tolerância.

Stefan Zweig ao escrever seu ensaio “Erasmo, grandeza e decadência de uma ideia”, em 1928, talvez pressentisse que já traçava, de certo modo, o seu perfil e o destino que iria cumprir.

Judeu austríaco, Zweig foi um intelectual pacifista e humanista, ensaísta, biógrafo, poeta, romancista e teatrólogo, tendo sido, antes da expansão nazifascista, o escritor mais lido em toda a Europa.

Cultivava muitas amizades nos mais diferentes países: íntimo de Rilke e de Freud (a quem amparou no leito de morte londrino e fez o discurso de seu “requiem”), amigo de Joyce, dos dois irmãos Mann, de Gorki, de Ravel, de Valèry, do grande maestro Toscanini, de Strauss, de Romain Rolland e de tantos outros mais.

O escritor era um apaixonado pela humanidade, pelos livros, lugares e tinha por sonho um mundo de paz, em que a diversidade fosse respeitada. Aspirava a uma Europa unificada pela cultura e pelo passado histórico.

Foi um lutador infatigável pela fraternidade universal, num mundo insanamente dividido.

Apesar de jamais haver-se filiado a partido político algum, foi um admirador da intrepidez dos Soviets, do gênio decidido e prático de um líder como Lênin, da grandeza com que o povo russo sorrindo, “num sorriso de criança”, encarava a enorme carga de construção de uma sociedade nova.

Visitou a União Soviética como um dos convidados de honra na comemoração dos cem anos de Tolstói, tendo sido o único palestrante oficial de língua alemã, em 1928. Encantou-se com operários recitando versos de Dante e de Maiakovski.

No entanto, Zweig odiava o totalitarismo, o fanatismo, os preconceitos sociais e raciais em suas mais diversas vertentes; prezava mais que tudo a liberdade e a ética.

Com a ascensão do nazismo na Alemanha, a anexação da Áustria por Hitler e seus sequazes, teve que abandonar sua pátria e tornou-se um peregrino do mundo.

Seus livros foram proibidos pelos nazistas e queimados em praça pública; sua biblioteca apreendida e toda a sua enorme coleção de manuscritos históricos e valiosos foi confiscada. “Por três vezes derrubaram minha casa e existência, apartaram-me de tudo o que existira e passara…”

Teve um exílio tumultuado em Londres. Por ser austríaco, foi convidado a abandonar a Inglaterra quando ela declarou guerra aos países do “Eixo”.

Dirigiu-se aos Estados Unidos, mas nele não fixou residência, dado que não se identificou com o “way of live” americano.

Em 1941, decidiu com sua companheira Lotte exilar-se no país que já o acolhera como turista e que a partir de então seria sua última residência. Zweig já o transformara no motivo de um longo ensaio:

“Brasil, o país do futuro! ”

Sua acolhida entre nós foi mais que fraterna. Estabeleceu laços de íntima amizade com intelectuais, como os irmãos Koogan, proprietários da Editora Guanabara; discursou na Academia Brasileira de Letras; prestou solidariedade aos judeus brasileiros e aos intelectuais que se opunham ao fascismo.

Ele e Lotte residiriam à Rua Gonçalves Dias, n.34, em Petrópolis.

No entanto, descrentes da capacidade da humanidade desfazer-se do fanatismo e da intolerância, profundamente abalados pelos desaparecimentos em campos de extermínio de seus amigos e parentes, buscaram a morte por ingestão de barbitúrico. Tal qual Paolo e Francesca de Rimini, na visão de Dante, que Zweig tanto estimava, adentraram a eternidade enlaçados no leito mortuário no ano de 1942.

Erasmo de Rotterdam.

Quatro séculos antes, em meados de 1.500, também desiludido com a barbárie, com o fanatismo religioso, com a capacidade de destruição a que os homens são levados na luta fraticida entre as nações, outro europeísta, o humanista Erasmo de Rotterdam buscara também a paz e a morte no exílio da pátria e de si mesmo.

“Erasmo, que foi a maior e mais fulgurante glória de seu século, hoje não passa de um nome esquecido”, afirmou Zweig.

Em determinado momento histórico Erasmo foi um ícone, uma referência no pensamento europeu, disputado tanto pelos “papistas” quanto pelos “protestantes”, tendo sua opinião sido requisitada por príncipes e reis.

Era o tempo das grandes invenções e dos descobrimentos, da Renascença das letras e das artes; a sede do saber corria nas veias da elite intelectual.

Um momento histórico propício àquele que inculcava a fé no progresso moral da espécie humana, uma aspiração a que se chegou a denominar “erásmica”.

Dentre todos os escritores e criadores ocidentais, ele foi o primeiro europeu consciente, o primeiro pacifista combativo, o advogado mais eloquente de um ideal de união intelectual e internacional. Suas obras, escritas num latim humanístico, que pretendia universal, não abria brechas aos nacionalismos divisionistas, dormem hoje esquecidas nas bibliotecas, talvez com uma única exceção: o seu “Elogio à Loucura”.

O Elogio à Loucura.

Um trabalho satírico e caricato, “pois ninguém toleraria seu próximo se a todas as coisas não se adicionasse o tempero da “stultitia”, da loucura”. É dona “Stultitia” quem anuncia com habilidade única e mordaz as críticas de Erasmo à Igreja Católica e pressagia a futura Reforma protestante.

O pensador prezou muitas coisas que hoje nós admiramos: a poesia, a filosofia, os livros, as obras de arte, os povos, a humanidade inteira sem distinções.

Só abominou, realmente, o fanatismo e sua irmã siamesa, a intolerância, a seu ver, antíteses da razão. Condenou o fanatismo em todos os campos de seu florescimento espinhoso: no da religião, no das nacionalidades e no das raças, quer ele se ocultasse sob as vestes eclesiásticas ou nas de príncipes e reis.

O holandês, que não era apegado a nenhum país, considerava-se cidadão de todos eles, o primeiro cosmopolita a não reconhecer a primazia de qualquer nação ou raça perante as outras.

Erasmo desprezava aqueles que exigiam obediência de autômatos às suas próprias posições, aos que tachavam as opiniões contrárias como heréticas ou merecedoras de zombarias.

Com todo o vigor de sua mente lúcida, combateu durante toda a vida os preconceitos e buscava harmonizar os contrastes no espírito da humanidade, “pois não encontrava nada de insuperável entre Jesus e Sócrates, entre a doutrina cristã e a sabedoria antiga, entre religiosidade e a ética”.

A filosofia era aos seus olhos, uma forma de investigar o espírito tão puro e válido quanto a teologia; a Renascença com sua sensualidade exuberante e alegre não lhe parecia uma inimiga da Reforma, tal qual acreditavam os Calvinos e outros puritanos intransigentes.

A independência de seu pensamento era uma de suas convicções; nas atitudes daqueles que subindo ao púlpito ou à cátedra, inculcavam a própria certeza individual como sendo uma mensagem que Deus lhe comunicara ao ouvido, Erasmo encontrava apenas um ultraje à divina diversidade do mundo, diversidade que prezava porque somente ela tornava nosso universo “imenso”.

Erasmo julgava que o progresso humano seria possível como fruto do saber; acreditava que se poderiam estimular as aptidões dos indivíduos e da coletividade com a difusão da cultura, dos estudos, dos livros. Que a humanização era a solução para a plena harmonização da vida.

“Toda a ideia possui o seu direito e a nenhuma cabe o de proclamar-se como única verdadeira”.

Ele foi o primeiro Reformador germânico; almejava reorganizar a Igreja Católica segundo as normas da razão. No princípio do século XVI, assistimos `a vitória das ideias desse pensador, esse triunfo da razão, que, no entanto, teria uma vida breve e efêmera.

Ao intelectual de ampla visão, iria se opor um homem de ação, o motor da cega violência das massas, o agostiniano Martim Lutero.

A tragédia pessoal de Erasmo consiste em que ele em breve sucumbiria a uma explosão de frenesi nacional-religioso das mais ferozes registradas em toda a história da humanidade. E durante séculos o mundo cristão vivenciaria a luta de morte entre católicos e protestantes, norte contra o sul, alemães contra romanos, a luta pelo poder das “chaves do evangelho”, sempre “em nome de Deus”.

Erasmo foi o único dentre os guias de sua época a não tomar partido em meio a toda a luta que se deflagrava. Não se aproximou da Reforma luterana e nem da Igreja Católica, pois a ambas se sentia ligado, porque defendia a derradeira unidade espiritual de um mundo em ruínas.

Nem ameaças e nem injúrias da Cúria Romana ou de Lutero e seus adeptos moveram o pensador independente a aderir a esse ou àquele partido: “nulli concedo”, até o final de sua vida ele a observou, esse verdadeiro “homo per se”, independente até as últimas consequências.

A agonia da tolerância no século XX.

Stefan Zweig cresceu em uma Viena tolerante, aberta à diversidade, à literatura, às artes. Assistiu da Suíça ao morticínio da Primeira Guerra Mundial. Dedicou sua vida, no período entre as duas guerras, à propaganda de seu ideário de tolerância, de amizade entre os povos. Estava exilado na Inglaterra, fugindo à perseguição que lhe fazia Hitler, quando ouviu:

“Os alemães invadiram a Polônia. É a guerra! ” “Aquelas palavras caíram em meu coração como golpes de martelo… a tarefa mais íntima em que eu empregara toda a minha força de convicção durante quarenta anos, a união pacífica da Europa, estava liquidada”.

Em 22 de fevereiro, quando tomou a decisão de suicidar-se, Zweig deixou escrito ao lado da cama:

“Antes de abandonar a vida por vontade própria e em plena lucidez, sinto necessidade de cumprir um último dever: agradecer profundamente ao Brasil, este maravilhoso país que me proporcionou, assim como ao meu trabalho, um descanso tão amigável e tão hospitaleiro. Um dia após o outro apreendi a amá-lo mais e mais e em nenhuma outra parte eu teria preferido construir uma nova existência, agora que o mundo da minha língua materna desapareceu para mim e que a minha pátria espiritual, a Europa, destruiu a si própria […] saúdo todos os meus amigos. Que eles possam ver ainda a aurora após a longa noite! Eu sou por demais impaciente, parto antes deles. ”

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