“A morte”, do ponto de vista de Proust

A Morte, do ponto de vista proustiano, é extraída de uma série de entrevistas realizadas com Marcel Proust, em Paris, entre meados de 1914 à primavera de 1922. Elas foram conduzidas por André Jammes.

Senhor Proust, conversar sobre a morte é sempre um assunto difícil, pois ela é a nossa finitude. Shoppenhauer, de certa forma, invejava o animal que vive sem conhecer a morte e só tem a consciência de si como um ser sem fim. Mas se a natureza trouxe para o homem o conhecimento da morte, por outro lado criou também mecanismos psíquicos para que as pessoas não acreditem  em sua própria morte, julgando que sua individualidade irá, de alguma forma, perpetuar-se.

Realmente, crer na própria morte como um evento mais do que possível, absolutamente inapelável, apenas sem o seu Tempo definido, constituiria o pior dos pesadelos para a maioria da humanidade. Veja o exemplo do soldado da linha de frente da batalha. Ele está convencido que tem diante de si um espaço de tempo infinitamente adiável antes que o matem; o ladrão, antes que o prendam; o homem, em geral, antes que o arrebate a morte. Este é o amuleto que preserva os indivíduos- e às vezes, os povos- não do perigo, mas do medo do perigo.

Sempre dizemos que a hora da morte é incerta, mas, quando falamos isso afiguramos essa hora como  situada num espaço vago e longínquo, não imaginamos que tenha uma correlação qualquer com o dia começado, e possa significar que a morte- ou sua primeira posse parcial de nós, após a qual não nos larga mais – poderá ocorrer nessa mesma tarde, essa tarde em que o emprego de todas as horas já está previamente agendado. A gente se empenha para cumprir os nossos compromissos, o dia está inteiro para nós, gostaríamos que amanhã fizesse um bom tempo para visitarmos um amigo e não desconfiamos que a morte, que caminhava entre nós em outro plano, escolheu precisamente aquele dia para entrar em cena.

Mas, fato interessante, mesmo este primeiro contato com a morte não costuma nos assustar, pois ela se reveste de uma aparência conhecida, familiar, cotidiana,  não tanto pelos sofrimentos que provoca, mas  pela estranha novidade de restrições que impõe à vida. Na verdade já estamos morrendo, não no momento próprio da morte, porém meses e até anos antes, desde que ela veio morar conosco. A própria vida é como se fosse uma amante que pressionamos, que suspeitamos que esteja a ponto de nos trair; embora sintamos que já não é a mesma, ainda acreditamos nela, pelo menos ficamos em dúvida até o dia em que ela enfim nos abandona de vez.

O nosso corpo como que enclausura o espírito numa fortaleza; mas em breve esta fortaleza é assediada por todos os lados e, por fim, é necessário que o espírito se renda.

Para Goethe, a morte de um ser próximo é sempre incrível e paradoxal, uma impossibilidade que se transforma em realidade.Ela acontece como um castigo, um erro, uma irrealidade. Em sua narrativa, o senhor descreve ainda  que o sofrer chega a ser ainda maior quando nossos entes queridos permanecem ”insepultos”.

Meu caro André, a morte de milhões de desconhecidos apenas nos causa um arrepio, aliás,  menos desagradável do que o provocado por uma corrente de ar. Rapidamente as tragédias que não nos atingem são sucedidas por outras e jamais nos recordamos daquelas em que tantos morreram.

Já a morte próxima é a única real. Se o dia nos recorda a morte de um ente querido, então o sofrimento consiste em uma comparação mais viva com o passado, ilusoriamente tão feliz. Marcel recorda a avó morta: “ Mas jamais poderia apagar aquela contração de sua face e aquela dor de seu coração; pois como os mortos não existem a não ser em nós, é a nós mesmos que batemos sem trégua quando nos obstinamos em recordar os golpes que lhes assentamos. Por mais cruéis que fossem essas dores, eu ligava-me a elas com todas as minhas forças, pois bem sentia que eram o efeito da lembrança de minha avó, a prova de que essas lembranças que eu tinha estavam bem presentes em mim”.

Os nossos mortos continuam vivendo em nós. Nesse sentido  é que se pode dizer que a morte não é inútil, que o morto continua a atuar em nós. E nesse culto da dor por nossos mortos votamos uma idolatria ao que eles amaram.

No caso que você citou dos filhos insepultos, saber que nada mais se tem a esperar, não impede que se continue a esperá-los. Vive-se à espreita, à escuta: mães, cujos filhos embarcaram em perigosa expedição, imaginam a cada instante que chegarão miraculosamente salvos e em boa saúde. E esta espera ou as ajuda a atravessar os anos ao fim dos quais suportarão que os filhos não mais existam, ou então, matam-nas.

Enquanto para Bacon,  as pompas da morte aterrorizam mais do que a propria morte, Sócrates nos recomenda que não interroguemos o silêncio, porque ele é mudo e que é em nós mesmos que devemos buscar a libertação. Concluo com Aristóteles: “Os velhos, que vivem mais da memória que da esperança, são serenos”.

A solidão dos morimbundos, que denominamos eufemisticamente de recolhimento para a morte, ocorre com a imensa maioria das pessoas cuja enfermidade ou a idade provecta transforma-os em morimbundos, quando esses já renunciaram à vida. O escritor Bergotte em seus últimos dias, quando não mais saía de casa, e quando, apenas por educação recebia uns raros amigos, fazia-o todo envolto em xales, mantas, em tudo com que nos cobrimos no momento de nos expor a um grande frio ou de tomar um trem, embora o frio que sentisse viesse-lhe de dentro. Desculpava-se deles, dizendo, ao mesmo tempo em que apontava suas vestes: “Que se pode fazer, meu caro? Já disse Anaxágoras: a vida é uma viagem”. E Bergotte preparava-se para a última.

No reencontro que Marcel tem com a sociedade, quando todos os seus amigos e conhecidos haviam se transformado em velhos, observa que, para as pessoas da mesma idade e do mesmo ambiente, a morte havia perdido seu significado estranho pois ela se multiplicava, tornando-se mais  e mais incerta entre os idosos.

Agora, parafraseando Baudelaire, acredito que, na minha agonia, quando todos os meus outros “eus” estiverem mortos, se vier a brilhar um raio de sol quando eu estiver a dar os últimos suspiros, a “personagenzinha barométrica” sentir-se-á bem contente e dirá: “até que enfim um dia bonito”.

Aristóteles comenta que os segredos da maturidade são a aceitação de um repouso cósmico e de uma anulação positiva do ser. E que sempre se parte antes de se concluir uma tarefa, antes da última palavra, pois quem está tocado pelo anjo da morte crerá que ainda haveria algo a dizer. Para Fuerbach “a morte é o espelho em que se mira o nosso espírito: a morte é o reflexo, o eco de nosso ser” . O nosso duplo, aquele que tem o conhecimento da própria morte é o anjo, com o qual, no momento extremo, encontramo-nos face a face.        

Eu sempre preferi acreditar mais na alegoria do anjo da morte que na do anjo da guarda. Enfim, a cada momento de nossa vida sempre buscamos um apoio ou um consolo no imaginário que mais nos convenha.

Marcel detalha o trabalho de escultor que este anjo da morte começara a desenvolver na face de sua avó: “Suas feições, como nas sessões de modelagem, pareciam conformá-la a um certo modelo que nós não conhecíamos. Esse trabalho de estatuário chegava ao fim e, se o rosto de minha avó havia diminuído, ela igualmente endurecera. As veias que a atravessavam pareciam, não de mármore, mas de uma pedra mais rugosa.”

E, finalmente, quando o anjo completou o seu trabalho e junto com a vida se retirou, as desilusões da existência terminaram também de ser carregadas por aquela que havia sido a avó de Marcel. Ele comenta: “Um sorriso parecia pousado sobre os lábios de minha avó. Sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, deitara-a, finalmente, sob uma aparência de mocinha”.

Dostoievsky nos ensina que o suicídio como negação do limite da espécie é o teste absoluto da liberdade humana. A família de Marcel havia impedido que a avó no extremo sofrer, mas ainda com forças para uma atitude lúcida, cometesse o suicídio.

Na narrativa de Marcel, ele se recorda de que em Balbec, num dia em que tinham salvo contra a sua vontade, uma viúva que estava para se atirar de uma ponte ao mar, a avó lhe dissera que não conhecia maldade maior do que arrancar uma desesperada à morte que ela desejara e fazê-la regressar a seu martírio. Ou seja, com a melhor das boas intenções lhe haviam afugentado aquele que para ela seria o seu anjo salvador. Mas como é a vida, ou melhor, o homem, pois em Paris, o Narrador e seus pais impedem à força que a avó agonizante e sofredora cometa o seu próprio suicídio, atirando-se da janela de seu quarto, enquanto ainda tinha as forças para tal, condenando-a a ainda maior sofrer. É difícil  aceitar, mas muitas vezes o pensamento do agonizante se volta para o lado real, doloroso, obscuro, visceral, para esse inverso da morte que é precisamente o lado que ela lhe mostra, que ela rudemente faz com que sinta e que se assemelha bem mais a um fardo que o esmaga, a uma dificuldade de respirar, a uma necessidade de beber, do que aquilo a que chamamos simplesmente de morte.

Neste momento, o gesto de liberdade permite que, de um golpe, superemos este limite, quando buscamos, voluntariamente, abreviar nossos sofrimentos.

Oscar Wilde, na prisão da Inglaterra vitoriana, condenado a trabalhos forçados por um caso de relação homossexual, nos deixa uma pérola, ou melhor, “lágrimas na pétala de uma rosa”: “A sociedade, tal como a constituímos, não terá mais lugar para mim, nem me oferecerá nenhum. Mas a Natureza, cujas chuvas tão doces caem tanto sobre os justos quanto sobre os injustos, terá nas rochas algum esconderijo onde possa me ocultar, e me oferecerá vales secretos em cujo silêncio poderei chorar sem que me perturbem. Ela fará resplandecer as estrelas na escuridão para que eu não tropece nas trevas; fará soprar o vento sobre o rastro de meus passos, para que ninguém me persiga na morte; lavar-me-á com suas abundantes águas, e curar-me-á com suas ervas amargas.”

Após a morte, tudo acaba, mesmo a morte, dizia Sêneca, o epicurista. Já Montaigne resumiu a atitude epicurista em “A morte seria menos temível que nada, se houvesse algo menos que nada.” Feuerbach sintetiza o tema: “A morte é a morte da morte.” Nada, na vida real, funciona como dizem os filósofos e os literatos.

Em meu livro, Marcel não se conforma com a morte de Albertine. Ele gostaria de acreditar que a morte não faz mais do que riscar o que existe e que é capaz de deixar o resto intacto; mas “a morte da morte” para Marcel é muito complicada, pois significa a morte de cada uma das diferentes personalidades assumidas dentro dele  por Albertine, sua amante. Não a supressão de um sofrimento, mas um sofrimento desconhecido, o de saber que ela não mais voltaria. Para que a morte de Albertine pudesse suprimir os seus sofrimentos, seria necessário que o acidente a tivesse matado não em Turaine, mas dentro dele mesmo. E lá, ela nunca estivera mais viva. “Para me consolar, não era uma, mas inumeráveis Albertines que eu deveria esquecer. Quando chegasse a suportar o desgosto de ter perdido essa, era o caso de ter de recomeçar com outra, com cem outras.”

De qualquer forma, nossa afeição pelos outros não diminui porque estejam mortos, mas porque nós próprios morremos. Um novo “eu”, enquanto crescia à sombra do antigo, ouvia-o falar muitas vezes de Albertine; através dele, através dos relatos que recolhera, julgava conhecê-la, ela lhe era simpática, amava-a.

Quando raciocinamos sobre o que ocorrerá após a nossa morte, não será ainda a nossa pessoa viva que, por engano, projetamos nesse momento?

Com relação aos escritores de gênio, tenho como certo que é somente após a morte que eles se tornam célebres. O esplendor de seu nome detém-se ante a pedra de seu túmulo. Não deixa de haver uma compensação pois pelo menos o autor falecido se torna ilustre sem se cansar.

O caso do músico Vinteuil que morrera havia muitos anos, mas no meio daqueles instrumentos todos que ele animara e dera vida, fora-lhe dado prosseguir, por tempo ilimitado, uma parte ao menos de sua vida. De sua vida de homem apenas? Se a arte não fosse realmente senão um prolongamento da vida, valeria a pena sacrificar-lhe algo?  Não seria ela tão irreal quanto a própria vida?

A lembrança dolorosa só existe a que vem dos mortos; ora, esses se extinguem depressa, e já não sobra  ao redor de seus próprios túmulos, senão o encanto da natureza, o silêncio e o ar puro. “A morte da morte”, absorvida pela natureza de onde viemos. Mesmo porque o nosso amor pela vida é apenas uma velha ligação da qual não sabemos nos desvencilhar. Sua força está na permanência. Victor Hugo nos diz que… “Os mortos duram bem pouco… Ai de mim, tombam em pó no túmulo, menos depressa que em nosso coração!”

Creia-me,  André, que só a morte, ao romper todas as nossa ligações com a vida e as coisas, é única capaz de nos curar do desejo eterno e onipresente de imortalidade, portanto, oferece-nos a total liberdade.

Em 1919, o senhor anotou em um livro de Senancour, “Oberman”: “Senancour sou muito eu”. Se o senhor me permite,  gostaria de lhe recordar um pequeno texto de Senancour, que vai ao encontro dessse seus últimos pensamentos:

                               “No mesmo momento em que balbuciamos Eternidade, alimentamo-nos de ruínas, e esta mão que deseja indicar uma morada imortal, ergue-se para bendizer os que irão até a morte nas batalhas. Mortos escreveram nossas histórias, prepararam nossas grandezas, justificaram nosso orgulho na evolução, no progresso e é à própria Morte que  confiamos uma imponente duração.”

Marcel Proust faleceu em 19 de novembro de 1922. E a sua morte foi como que a reprodução do que ele mesmo escrevera a respeito do falecimento de um escritor-personagem de seu romance, Bergotte, anexado pouco tempo antes à prova tipográfica de “A Albertine Desaparecida”:

“Claro que nem os dogmas religiosos, nem mesmo as experiências espíritas nos trazem a prova de que a alma continua. Não há prova alguma, em nossas condições de vida neste mundo, de que estejamos obrigados a fazer o bem ou a nos conduzir com delicadeza, nem de que o artista esteja  forçado a  recomeçar vinte vezes uma paisagem capaz de despertar admiração que pouco importará ao seu corpo comido pelos vermes… Daí ser bem plausível a ideia de que Bergotte não estava morto para sempre.”

“Enterraram-no, mas durante toda noite fúnebre, nas vitrines iluminadas, os seus livros, dispostos de três em três, velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.”

Nota da Redação: André Jammes é um personagem, que dialogará com Proust sobre as temáticas mais relevantes encontradas em “Em Busca do Tempo Perdido”. Foram idealizadas um conjunto de entrevistas que, principiando em 1914, logo após o primeiro volume do livro de Proust ser impresso, estendem-se até meses antes da morte do grande escritor, em 1922. A presente entrevista é parcela do livro “Entendendo Proust”, de Carlos Russo Junior.

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