A “cultura” da tortura e da repressão no Brasil- parte III

A tortura como formatação da repressão e do abuso contra seres humanos foi praticada de forma contumaz e, até mesmo corriqueira, em todos os períodos de nossa História. No Brasil Colonial e durante o Império, os alvos preferencias eram os índios e os negros escravos; já na República, quer em seus períodos ditatoriais ou nos democráticos, com grau maior ou menor de abrangência, aos índios e aos negros juntaram-se os mulatos, os cafuzos, os mestiços e brancos, desde que pobres ou marginalizados. A tortura e a barbárie como modo de submissão, de castigo, de investigação ou de simples satisfação sádica, percorrem todos os nossos cinco séculos “civilizatórios”, até os dias de hoje.

Hoje nos deteremos nas deformações corporais produzidas nos negros escravos, causadas por excesso de trabalho, por doenças infecciosas e contaminantes, pelas condições de absoluta falta de higiene e penúria alimentar em que eles eram mantidos na senzala. E, sem dúvida, as marcas deixadas pelo açoite, pelos ferros em brasa, por mutilações e tantas outras formas de tortura aplicadas no homem, na mulher ou nos meninos escravos.

Essas informações chegaram até nós graças aos anúncios  em jornais do tempo do Império, inseridos e pagos pelos próprios proprietários de “negros fugidos”, com o objetivo de facilitar a identificação e a captura dos mesmos pelos capitães-do-mato, mediante recompensa.

Gylberto Freire descreve os numerosos anúncios em que negros “procurados” são descritos como “rendidos” ou “quebrados”, no sentido de haverem sido, de uma forma ou outra, castrados. Também de pretos com “veias estouradas ou calombos no corpo”, escravos com andar “cambaio ou banzeiro”.

Vários negros fugidos são descritos como portadores de máscaras de Flandres na face, ligadas por cadeado na parte traseira. Adicionam os senhores de escravos que se tratava de pessoas com voracidade por frutas, mesmos verdes. Nos Anais Brasileiros de Medicina, o médico Gama Lobo, identificou um determinado tipo de oftalmia em escravos com esses sintomas, que ganhou a denominação científica de “ophtalmia brasiliensis”, provocada por sério grau de avitaminose.

Outros anúncios, então, procuram negros cegos de um olho por “vazamento”, “caolhos”, e ainda vários escravos “com carnes sobre os olhos”. São comuns “negros fugidos” descritos como possuidores de um braço maior que o outro, com falta de dedos nas mãos ou nos pés.

Numerosas descrições apresentam pessoas que apresentavam nas coxas ou nas costas letras, sinais ou carimbos de propriedade, como hoje o gado é tangido. Quando não marcas de surras e castigos, um corpo deformado por torturas. Uns com “os quartos arriados” em virtude de tremendas surras, outros com cicatrizes provocadas por relhos aplicados nas costas ou nas nádegas; ainda outros com cicatrizes nos dedos provocadas pelos “anjinhos” e marcas na cabeça pelo uso de torniquetes com pregos, as “coroas de Cristo”. Também são comuns as cicatrizes provocadas pelo “tronco”, pelas correntes com que os atavam nos pescoços, nos pés, nos tornozelos; queimaduras na face e na barriga.

Também não são poucos os casos anunciados de negros com marcas provocadas por tentativas de suicídio: talhos feitos à faca na garganta, no peito, nos pulsos.

É grande o número de negros caçados que apresentam deformações de pernas e cabeça que podem ser atribuídas ao hábito das mães escravas trazerem os molequinhos de mama “escanchados” às costas durante horas e horas de trabalho. Já parte das deformações anunciadas como a de negrinhos com “pernas cambaias”, “pernas tortas para dentro”, braços e pernas “muito finos” e arqueados, “peitos estreitos”, podem, sem dúvida, serem debitadas ao raquitismo e à fome.

Faltam ressaltar as deformações, descritas nos anúncios de “busca-se”, as deformações de corpo por especialização profissional ou precocidade no trabalho. Vários negrinhos de dez a doze anos já apresentam a “croa” na cabeça, feita à força pelo peso de carretos brutos como tabuleiros, tijolos, areia, etc. Há caso de negros com os dedos dos pés “torrados ou comidos”, por serem amassadores de cal. Outros com dedos e mãos amputados pela ação das moendas dos engenhos. Quase todos com pés e mãos desproporcionais, deformados pelo trabalho pesado já na infância.

Façamos um parêntese para trechos do mesmo autor, extraídos de “Casa Grande e Senzala”:

“Passa por um defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o erotismo e a luxúria exacerbada”. Mas o que se tem apurado dentre os povos africanos, diz o autor, é, sim, uma maior moderação do apetite sexual que entre os europeus. Os africanos são mais sofisticados dado que para excitarem-se necessitam de certas circunstâncias especiais, como danças, afrodisíacos, cultos fálicos e orgias. Já os europeus excitam-se por qualquer motivo.

“Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime, pois em primeiro lugar, a própria ganância favorece a depravação, criando nos proprietários de escravos o desejo de produzir o maior número possível de crias. Joaquim Nabuco colheu de um manifesto escravocrata de fazendeiros do interior de São Paulo, as seguintes palavras:” a parte mais produtiva da propriedade escrava é o seu ventre gerador “”.

Ainda Joaquim Nabuco, alicerçado em documentos, também comprovou a tese de que “o negro se sifilizou no Brasil” e a contaminação em massa ocorreu nas senzalas. A “raça considerada inferior” adquiriu da “superior”, dos brancos senhores de escravos, as doenças venéreas. “Negras tantas vezes virgens, ainda molecas de doze a treze anos, eram entregues a rapazes brancos já podres da sífilis contraída nas cidades”. Por muito tempo dominou no Brasil colonial a crença que para sifilítico não havia melhor depurativo que uma negrinha virgem.

Nem mesmo as amas de leite negras estavam livres do contágio sifilítico proporcionado por crianças brancas contaminadas. “De tal forma que a sífilis fez sempre o que quis no Brasil colonial”, graças ao escravagismo. “O sangue envenenado arrebentava em feridas; coçavam-se então as “perebas ou cabidelas”, tomavam-se garrafadas, chupava-se caju. Em princípios do século XVIII, o Brasil é citado em livros estrangeiros como o país da sífilis por excelência. Nem mesmo mosteiros estavam a salvo das devastações provocadas pelo mal gálico.”.

Fechando nosso parêntese, Freyre faz referências específicas nos anúncios, a respeito de sequelas de doenças sexualmente transmissíveis descritas em muitos negros fujões: “não são raros os casos de doentes de “boubas” e úlceras na pele, assim como feridas descritas como “que nunca saram”, nos braços e pernas”, assim como de negros descritos como “enlouquecidos”, uma possível fase neurológica da sífilis.

Um baiano, Luiz Gama, herói da abolição da escravatura em São Paulo, nas palavras de Afonso Schmidt.

Luiz Gama, um herói da luta abolicionista

Luiz Gama nasceu em Salvador, filho um fidalgote português e de Luísa Maheu, africana liberta da nação Nagô, em 1830. Sua mãe, da qual Gama sempre se orgulhava, teve toda a vida envolvida em insurreições de escravos, como a Revolta dos Maleses, em 1835. Em 1837, acusada de participação na Sabinada, ela foi deportada para o Rio de Janeiro e desapareceu.

“Quando Gama ficou crescidinho, o pai tentou vendê-lo ilegalmente como escravo a um comboieiro, dos que andavam pelo Norte, comprando carne humana”. Mas o menino era muito esperto e fugiu. Seu pai, então, levou-o a visitar um navio que estava no porto e enquanto o moleque percorria os porões e conveses, “o português aproveitou e fugiu, apertando no bolso o dinheiro da transação.”.

O navio pertencia a um comboieiro que tinha partes com a polícia e Gama foi transportado como escravo pelo navio até a cidade de Santos, e de lá até a Praça de Campinas, onde foi anunciado no mercado humano um lote de carnes, do qual ele fazia parte, com as palavras de sempre: “rapaziada moça e sadia, de virar e romper”.

A mercadoria ficou exposta, conta-nos Schmidt, na porta da igreja Matriz, num domingo à hora da missa. Os fazendeiros foram chegando, com botas enlameadas, chapéu do Chile e chicote na mão e passavam em revista a “negrada”: faziam avançar os que pareciam melhores, examinavam os dentes como aos cavalos e depois iam discutir com o comboieiro o preço da peça.

“Quando o melhor da leva havia sido comprado, o mercador de negros fez o leilão do refugo. Mas Luiz Gama nem assim foi vendido”. Quando um pretenso arrematador, Francisco Egídio, soube tratar-se de um baiano, persignou-se e disse: “Da Bahia só quero coco e pimenta, terra de negro revoltado, Deus que me livre”! Luiz Gama, então, foi trazido para São Paulo e exposto durante uma manhã inteira na Rua da Imperatriz. Aí o acaso acudiu-o. Um fazendeiro liberal vindo de Minas que procurava não um escravo, mas uma companhia para seu filho, matriculado na Faculdade de Direito, comprou-o.

O sinhozinho gostou de Luiz Gama, alfabetizou-o e dentro em breve eram os dois a estudar Direito. Apesar de não ser admitido na Academia, começou a participar das rodas estudantis, onde brilhou e conquistou grandes amizades. Fizeram-se seus amigos os Conselheiros Carrão e Crispiniano, José Bonifácio, José Maria de Andrade, jurisconsultos que muitas vezes ouviam sua opinião em questões de Direito.

Um dia, Conselheiro Furtado deu-lhe o emprego de amanuense na Polícia. Trabalhou no fórum com Lins de Vasconcelos e Américo de Campos. Foi quando ganhou demandas de centenas de contos de réis, mas nunca guardou um tostão para si, pois empregava todo o dinheiro que lhe pagavam na propaganda abolicionista, quando não comprava diretamente a alforria de negros escravos.

De Luís Gama, disse Raul Pompéia: “… não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor… E Luís Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente e toda essa clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, outro a liberdade, alguns um conselho fortificante. E Luís Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro… E, por essa filosofia, empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bom… Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das mãos de clientes mais abastados.”.

O filho do mineiro Francisco Egídio, aquele que se negara a arrematá-lo no leilão, agora marquês, tornou-se seu amigo inseparável e orgulhava-se da coragem e da dedicação de Luiz Gama. Esteve com o amigo presente, ao lado de Américo de Campos e de outros republicanos, na fundação da loja maçônica “América”, em cujo salão azul e enfeitado com estrelinhas de prata, nasceria de verdade, a campanha abolicionista da Província de São Paulo.

Na década de 1860, Luiz Gama deixou o funcionalismo público e tornou-se jornalista e poeta de renome, ligado aos círculos do Partido Liberal. Fundou, em 1869, o jornal Radical Paulistano, juntamente com Rui Barbosa. Participou da criação do Club Radical e, mais tarde, da criação do Partido Republicano Paulista (1873), ao qual se manteve ligado até à sua morte, em 1882. Por volta de 1880, foi líder da Mocidade Abolicionista e Republicana.

Em determinado momento de sua vida abolicionista Luiz Gama foi acusado de açoitar um escravo fugido. Levado como réu aos tribunais, Gama dispensou defensor e, desconhecendo a acusação forjada da qual era acusado declarou que “os senhores de escravos deveriam TODOS responder por pelo menos um crime: o de roubo! Roubo da liberdade de seu semelhante.” E nesse momento lançou a frase que daria um novo aspecto jurídico à campanha abolicionista: “ Para o coração não há códigos: e, se a piedade humana, a caridade cristã se devem enclausurar no peito de cada um, sem se manifestarem por atos concretos, em verdade vos digo aqui, que afrontando a lei, que todo escravo que assassina o seu senhor pratica um ato de legítima defesa.

O réu foi absolvido por unanimidade. Os circunstantes aclamaram-no e o conduziram em triunfo pelas ruas da capital. À passagem da multidão, negras velhas ajoelhavam-se nas ruas e estendiam os braços para Luiz Gama aos gritos de: liberdade, liberdade!

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