Soljenítsin, o espírito eslavo no século XX: herdeiro de Tolstoi e Dostoievski.

Em 1974, a União Soviética cassou a cidadania de Alexander Soljenitsin e expulsou para a Alemanha seu Nobel de Literatura!

Como Tolstói em seus anos mais avançados, e, sem dívida Dostoievski, Soljenítsin foi um perscrutador, um explorador das fraquezas humanas e um incômodo para sua Pátria e para todo o mundo.

Na verdade, mais do que sermos nós a lermos Soljenítsin, é Soljenítsin quem nos lê, dicifou-nos Stiener.

“Os Direitos Humanos são uma coisa boa, mas como podemos ter a certeza de que os nossos direitos não se expandem às custas dos direitos dos outros?…. Uma sociedade estável é alcançada não equilibrando forças opostas, mas por autolimitação consciente: pelo princípio ao qual estamos sempre obrigados ao senso da justiça moral”.

Se Tolstoi, na Rússia czarista, se incluía orgulhosamente entre os anarquistas cristãos, desafiador da ortodoxia e do poder absolutista, sem que se atrevessem a puni-lo, Soljenítsin, em suas características anarco-teocráticas, tão pouco sente grande apreço pela razão, sobretudo quando brota do “intelectual”, do homem que faz da “imparcialidade de garganta” seu ganha-pão.

A própria literatura de Dostoievsky está carregada de imagens cristãs e, no entanto, nem sempre foi assim. Quando ele entrou nos campos de trabalho, ele poderia ser melhor descrito como um radical-socialista ateu. Na data de sua libertação, ele tinha essencialmente abraçado a ortodoxia russa. Paralelamente, a literatura de Solzhenitsyn é igualmente cheia de imagens cristãs. Era um marxista-lenininista firme quando foi preso; de volta à vida, Solzhenitsyn retornou aos caminhos da ortodoxia cristã russa até sua morte.

“Diante da desumanidade dos goulags stalinistas, muitas vezes a razão é um agente fraco, risível, e, por que não, dispensável”.

Soljenitsin tinha apenas seis anos de idade quando foi aprovada uma lei que marcaria definitivamente sua vida. O Código Penal Soviético, publicado em 1924, definiu, entre outros delitos, o crime contrarrevolucionário e regulamentou a noção de “pessoa socialmente perigosa”.

Sob a liderança de Stalin, a partir de 1929, a União Soviética criou um imenso sistema de repressão, que se tornou conhecido como “o arquipélago Gulag” e uma de suas vítimas foi Soljenitsin.

Na condição de Capitão do vitorioso Exército Soviético foi preso, em 1945, exclusivamente por causa de duas cartas que escrevera a um primo, criticando Josef Stalin e que a KGB interceptara. Este crime custou-lhe oito anos de prisão e trabalho forçado na Sibéria e outros três “isolado”, no Cazaquistão.

Sou libertação ocorreu em 1956, durante a abertura política de Kruschov. Reabilitado em 1957, publicou seu primeiro livro sobre os campos de concentração stalinistas, com autorização do Kremlin: “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”.

Em 1967, provocou as lideranças soviéticas com uma carta pedindo o fim da censura. Devido à divulgação clandestina de obras proibidas, como “O Primeiro Círculo do Inferno”, foi expulso da União dos Escritores Soviéticos em 1969.

No ano seguinte, conquistou o Nobel de Literatura, mas foi proibido de viajar a Estocolmo para recebe-lo.

Foi expulso da URSS, em 1973, por haver descrito a vida nos campos de prisioneiros da Sibéria, em “O Arquipélago Gulag”.

Exilado por fim em Vermont, próximo ao Canadá, lá permanece até 1994, quando retornou a Moscou.

Um não à instrumentalização política.

Soljenitsin é um caso exemplar de escritor que foi usado pela imprensa ocidental em tempos de “guerra fria”. Mas o que a mídia fingia não perceber é que ele nunca fora pró-Ocidente. Pelo contrário, sempre criticou severamente a “ocidentalização” da Rússia.

Ao contrário do que se poderia esperar, nem mesmo a direita norte-americana conseguiu capitalizar o exílio de Soljenitsin para a propaganda anticomunista. Seus comentários sobre a “decadência moral” do Ocidente logo o tornaram inconveniente. Terminou por provocar o vexame em uma Universidade que envolveu a própria Primeira Dama americana.

Nos 18 anos em Vermont, optou e viveu no ostracismo.

Reabilitação civil na Rússia.

Com a derrocada da União Soviética, em 1990, Soljenitsin reconquistou seus direitos civis e voltou à terra natal em 1994, com a intenção de lutar pela “recuperação espiritual” do país e pelo fortalecimento do nacionalismo russo. Chegou até mesmo a se empolgar com Putin.

No entanto, jamais se filiou a partido político ou movimento social.

Na Rússia pós-comunismo, continuou sendo um crítico do governo: “Somente uma democracia a partir das bases pode nos ajudar a renovar nossa sociedade”, dizia. Morreu isolado e descrente do ser humano em Moscou, em 3 de agosto de 2008.

O que tem a análise histórica a dizer diante dos sofrimentos de Soljenítsin e de seu grito a percorrer a história moderna? Em síntese, cada tortura, cada indignidade imposta a um ser humano é irredutivelmente singular e irredimível.

A cada vez que um ser humano é açoitado, submetido à fome, roubado de sua dignidade, abre-se um buraco negro específico na estrutura da vida. A obscenidade adicional é despersonalizar a desumanidade, é recobrir o fato irreparável da agonia individual com categorias anônimas da análise estatística, da teoria histórica ou da construção de modelos sociológicos.

Soljenítsin tem a obsessão pela sacralidade do detalhe. Como acontece em Dante e Tolstói, os nomes próprios saem em cascatas de sua caneta. Ele sabe que, para rezarmos pelos mortos sob tortura, devemos decorar e dizer seus nomes, aos milhões, um infindável réquiem a nomeá-los sem cessar.

Pelo menos 20 milhões de homens, mulheres e crianças foram enviados à morte nos expurgos stalinistas.

É uma platitude mais antiga do que Tucídides ( V a.C.) que “os homens no exercício do poder político podem voltar e voltarão à bestialidade”.

Os milênios da humanidade estão pontuados de massacres com uma monotonia chocante. O tratamento rotineiro dado aos escravos, aos negros, aos dissidentes, aos loucos, aos deficientes físicos, aos judeus, aos pobres e exilados é tão brutal que paralisa nossa imaginação. Os oásis de compaixão foram raros e esporádicos.

Mas houve uma trégua, um relativo armistício com a história durante boa parte do século XVIII e fins do XIX. A constante de selvageria foi exportada para as colônias, na expansão das fronteiras contra os índios nas Américas.

Mas Voltaire não era um utopista ingênuo quando previu o desaparecimento da tortura e da represália em massa na vida política. Afinal, no tempo do Iluminismo, os sinais eram auspiciosos.

Mas o século XX disseminou o uso do massacre, das invasões bárbaras, da intolerância radical, da tortura e dos abusos mais inomináveis. Marcou o início da era do holocausto, dos campos de concentração, do genocídio moderno.

O gulag não tem fronteiras físicas. Isso não significa diminuir de maneira alguma a especificidade dos relatos de Soljenítsin sobre o Inferno.

Mas o edifício soviético da servidão e da degradação é apenas uma parcela de uma catástrofe mais geral, hoje disseminada pela incrível pobreza e fome que coabitam com o luxo de poucos e com o desperdício, com a violência disseminada e a destruição dos meios naturais.

Os dois primeiros volumes da crônica do gulag eram peremptórios ao ressalvar que se deviam estabelecer distinções entre as práticas nazistas e as stalinistas. Soljenítsin chegou a aventar a hipótese de que a Gestapo torturava para arrancar “fatos”, ao passo que a polícia secreta russa torturava para obter falsos testemunhos.

O próprio Soljenítsin continua indeciso no momento de indicar onde e como o gulag se insere no tecido da história e da índole russas. Em alguns momentos ele dá voz à crença de que a opressão do alto e a obediência da grande massa da população à autoridade bruta são características do espírito russo.

Soljenítsin também estabelece várias vezes um contraste sarcástico entre as diabruras relativamente “benignas” do aparato punitivo czarista (tal como exposto por Tchecov, Tolstoi ou Dostoiévski) e a bestialidade rematada da solução soviética.

O planeta gulag, a ubiquidade da tortura e do homicídio em nossa existência pública, é apenas a manifestação mais extrema, mais despudorada de uma desumanidade que perpassa tudo.

É esta leitura teológico-penitencial da condição humana que serve de base aos dogmas mais excêntricos, mas também mais profundos e sinceros, de Soljenítsin: seu horror ao liberalismo laico tal como provém da Revolução Francesa; a aversão aos judeus, nos quais vê não apenas os primeiros negadores de Cristo, mas também os libertários radicais cuja agitação culmina no marxismo e no socialismo utópico; o desprezo pelo “hedonismo degenerado” e pelo consumo desenfreado nas sociedades ocidentais; a indisfarçada nostalgia pela aura teocrática da Rússia ortodoxa, quase bizantina. Nisto tão próximo de seu pai espiritual, Dostoiévski!

Hannah Arendt se esforçou em localizar as raízes do totalitarismo moderno em determinados aspectos da evolução do Estado nacional abrangente e do tipo de coletivismo econômico e psicológico pós-Iluminismo. Mas não respondeu à pergunta:

É possível deter o ciclo infernal?

“Aquele a quem privardes de tudo não está mais em vosso poder. É outra vez completamente livre”.

A resposta dele seria: sim, é possível deter essa tremenda força; é possível rejeitar a banalidade do mal e dizer não aos que querem reduzir o indivíduo a um operário do matadouro. Soljenítsin proclama que é possível interromper o automatismo da opressão, porque já o viu interrompido ou, pelo menos, reduzido a uma impotência temporária nas profundezas do próprio Inferno.

Soljenítsin, que sobreviveu não só ao gulag, mas também ao pavilhão dos cancerosos, é movido por uma vontade ardente. Talvez mais do que qualquer outro desde Tolstói, ele é senhor e servo da infinita resistência do espírito humano.

Soljenítsin encerra sua trilogia “Arquipélago Gulag” com a terrível observação de que se passara um século desde a invenção do arame farpado. E ele que viu, viveu, narrou a mais alta resistência, a mais elevada esperança contra o Inferno, dá a entender que é essa invenção que continuará a determinar a história do homem moderno.

E aqui vai a grande divergência dele com Tolstoi. Nos primeiros anos do século XX, o homem de Polyana acreditava que o arame farpado poderia ser descosido.

Já para Soljenítsin o arame farpado é o toque do desespero humano!

E para você?

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