Stefan Zweig, ao terminar de escrever o seu livro “Os Construtores do Mundo”, no qual incluiu a análise sobre a vida e obra de Balzac, Dickens, Holderlin, Kleist, Nietzsche e Dostoievski, foi convidado a realizar um resumo comentado da principal obra do grande escritor russo: “Os Irmãos Karamazovi”. Pensou seriamente em realizar tal projeto, facilitando para as novas gerações uma leitura simplificada no estilo, condensada em sua trama, mas que não deixasse de inserir os eixos conceituais humanísticos, psicológicos, religiosos e políticos da obra.
Ele sabia que, num primeiro contato, o leitor de Dostoievski corre o risco de acreditar que está na presença de uma obra pouco movimentada, mas prolixa dada a polifonia de cada personagem, além disso inserida num mundo com hábitos e até mesmo nomes bastante estranhos e de certa forma, diferentes do homem moderno. Fatores mais que suficientes para induzir o leitor de “primeira viagem” ao desânimo nas primeiras páginas do livro.
Infelizmente, uma série de circunstâncias como o advento da Segunda Guerra Mundial e o falecimento prematuro do grande intelectual e escritor vienense impediram que ele executasse tal projeto.
Possuia até mesmo um título provisório para o trabalho, aquele que o próprio Dostoievski designara para o local onde se passa a tragédia dos Karamazovi: Skotoprigonievski, uma cidadezinha que justapõe palavras em russo cujo significado é “um depósito de animais”. O grande depósito de animais que simboliza um universo, microcosmo de nosso mundo de humanidades, no dizer de Ivan, repleto de “focinhos humanos”.
Como desde então niguém se aventurou a escrever e publicar tal resumo explicado, acreditamos que um espaço esteja aberto para uma despretenciosa introdução à sua indispensável leitura.
“Os Irmãos Karamazovi” constitui o apogeu e o final da obra do grande escritor dramático do século XIX. Dostoievski esperava sequenciá-lo com um trabalho que coroaria toda sua produção literária, no qual possivelmente continuaria a retratar a vida de Alieksei Karamasov; já possuia até mesmo um título: “O Grande Pecador”, romance que não passou de seus primeiros desenhos arquitetônicos, pois, infelizmente, o autor não viveu para encetá-lo.
Karamazov é originário etimologicamente de kara (castigo) e mazat ( sujar). Dostoievski desde o título nos dirige para “aquela pessoa cujo erro o leva à própria punição”, ou se o quisermos, dentro do trágico, aquele que ultrapassa suas medidas e caminha para a própria condenação, como uma etapa necessária à redenção ou o caminho para a perdição.
A cidadezinha de Skotoprigonievski, onde a trama se desenvolve, simboliza um “depósito de animais”, onde todos nós poderemos de um modo ou outro encontrar a nossa “isbá”, o nosso lar. Essa cidade que arde pelas paixões, pelos ódios, pelas desmedidas humanas, também é capaz de gerar um Alieksei (Aliocha, um servidor de Deus), um homem que procura a verdade e a fraternidade e que para isso, primeiramente se distancia da sociedade, buscando refúgio num monastério. Mas nele não permanecerá e ao retornar ao mundo temos a contrapartida de sua transformação psicológica, pois ele, que se escondera da perversão humana, irá se mover da castidade para o envolvimento com os homens; tendo sido monge e homem ele significará, para Dostoievski, a humanidade total.
Afinal, hoje como no passado, o que tanto desejam os homens? Serem felizes, possuírem riqueza, poder e, quem sabe, acima de tudo, consumir. Dentre os personagens de Dostoievski nenhum deles aspira a isso diretamente, mesmo porque eles não se estabelecem em lugar algum, nem mesmo diante da própria felicidade. Necessitam seguir um caminho, pois têm uma espécie de alma interior que tortura a si mesma num eterno caminhar. De alguma forma parece ser-lhes indiferente sentirem-se ou não felizes e contentes. Eles desprezam a fortuna ainda mais do que a desejam, talvez porque nada almejem de particular neste mundo; mas se nada querem de particular, no geral aspiram a tudo, à plenitude dos sentimentos, à vida inteira.
Os Karamazovi , para Zweig, têm músculos de aço, sede de vida brutal, “essas bestas ferozes de sensualidade, de alegria do viver”, indecentes e fanáticas, que sorvem as últimas gotas do cálice antes de o quebrarem.
Seguindo essa linha de raciocínio, eles são do tipo daqueles que querem o tudo e o nada, desejam o bem e o mal e tal qual os heróis das tragédias gregas, excedem seus limites, mesmo porque estão permanentemente a testá-los. Querem saber o que são, querem ir até o extremo do “eu”.
Essa inquietude é, do mesmo modo, um suplício, pois o sofrimento dilacera a todos; vivem de “febre em febre” e nos seus intervalos sofrem espasmos, muitas vezes, como o próprio Dostoievski (de origem epilética). Quando se embebedam, eles não buscam o prazer ou o sono, mas na embriaguez tentam o esquecimento da loucura; jogam um dia inteiro para matar o tempo e entregam-se à dissolução, não por prazer, mas para perderem o controle nos excessos que cometerão.
O mito de Dostoieviski é a fecundidade do “eu”, múltiplo em cada indivíduo, híbrido de “Deus e do Diabo”, por esse mesmo motivo, o atormentado escritor russo é um precursor do existencialismo.
Algumas de suas personagens dramáticas são sempre mulheres “decaídas”, como Gruchenhka. Ela devota aos homens que por ela se apaixonam, apenas o ódio travestido de boas maneiras; no entanto essas “decaídas” possuem um coração de ouro. Outras personagens, como Kathierina, têm em si um orgulho e paixões desenfreadas e incontidas.
Outros como Dimitriv Karamazo, fruto da mãe Terra- Demeter, expõem uma força brutal e ingênua, agem como meninos e homens desesperados, possuem até mesmo a capacidade de amar simultaneamente a duas mulheres, cada qual a seu modo.
Smerdiakov, o filho bastardo do pai Fiodor Karamazov, no seu “eu” trágico, simboliza a dissuação, a hipocrisia, a inveja incontida dentro de uma vida sem sentido algum. O niilista é feio, bastardo, “eunuco” e será o instrumento da morte paterna, do parricídio que ambos os irmãos, Ivan e Mítia, no seu sub-consciente, gostariam de haver cometido.
O personagem Ivan Karamasov transporta para a obra, na sua polifonia, muito mais do autor que qualquer outro personagem; seu alimento não é o pão, a carne e ou vinho, mas as reflexões; diferentemente de Katie, de Gruchenhka, de Mitia, de Fiodor, Ivan não age impulsionado nem pelo amor, nem pelo ódio. Onde os seres humanos buscam oxigênio para seu cérebro, ele somente luta por ideias, mesmo ao custo de o alucinarem.
Encontramos desenvolvida nesse romance, com toda a sua profundidade, a problemática essencial da existência ou não de Deus, questão que tanto angustiou a vida do autor. A existência de um deus que está lado a lado com questões do bem e do mal, assim como da consequente responsabilidade humana, do livre-arbítrio, da liberdade de salvar-se e de libertar-se.
Dostoievski impulsiona toda o drama para um momento superior, religioso, em que seus personagens procuram a fraternidade universal no mistério da reconciliação geral e no reconhecimento fraterno, tal qual num canto orfeônico de almas.
Dostoievski também traçou um retrato de “seu Cristo” na “Lenda do Grande Inquisidor”, contada por Ivan ao irmão Aliocha. A beleza e graça inefável são sutilmente evocadas; Cristo redivivo perante o Grande Inquisidor nada responde, nada fala. Esse silêncio, no dizer de D.H. Lawrence, é um sinal de aquiescência, da humildade do artista em contraposição à derrota da linguagem de seus seres polifônicos, como o Inquisidor. Cristo se cala na contramão da polifonia humana.
O fulcro da “Lenda” é a liberdade do homem. Homem que é completa e terrivelmente livre para perceber o bem e o mal, optar por um deles e encenar sua escolha. A ideia do Anticristo é a daquele que também viveu no deserto, alimentou-se de gafanhoto e mel e ofereceu a Cristo a tríplice tentação: os milagres, o pão e a autoridade, dos quais seriam decorrentes as Igrejas e o Estado. Mas Cristo rejeitou, em nome da liberdade do homem, todas as tentações. Se o corpo de Cristo tivesse descido da cruz ou se Zózima não exalasse os odores da putrefação de seu cadáver, o homem deixaria de ser livre, seria forçado pela evidência a crer, da mesma forma como os escravos, que obedecem ao poder da força e não por livre escolha.
As Igrejas privam os homens de sua liberdade essencial ao interporem entre Deus e a agonia da alma individual, a segurança da absolvição e dos mistérios dos rituais. O Inquisidor possuia uma crença radical no progresso humano através de meios materiais, uma crença na razão pragmática, uma rejeição da experiência mística e uma total absorção pelos problemas do mundo, a ponto de quase excluir Deus de seu Universo.
O niilismo é a servidão do pensamento para Dostoievski; de acordo com Gide, “na psicologia de Dostoievski o que se opõe ao amor não é primeiramente o ódio, mas “a ruminação no cérebro”. Os homens estão pendurados na dúvida metafísica porque Cristo lhes permitiu a liberdade da escolha entre o bem e o mal, porque a árvore do conhecimento tem sido mais uma vez abandonada perigosamente. O Inquisidor acusa Cristo de ter superestimado a estatura do homem, sua habilidade em suportar o livre-arbítrio, argumentando que “os homens preferem a calma bruta da escravidão”. Para o Inquisidor os homens conhecerão a felicidade somente quando um reino perfeitamente regulado for estabelecido sobre a terra, sob os auspícios dos milagres, da autoridade e do pão.
No dizer de Steiner, o Grande Inquisidor de Dostoievski é prometeico: ele prenuncia os regimes totalitários do século XX, com o controle do pensamento, o aniquilamento e os poderes redentores das elites, o prazer brutal das massas na Revolução Cultural, nas Danças de Nuremberg e no palácio dos Esportes de Moscou, a total submissão do privado à vida pública. Mas a visão do Inquisidor também aponta para as recusas de liberdade real nas sociedades capitalistas e as formas tão somente exteriores das denominadas “democracias representativas”, assinalando a vulgaridade da cultura de massas, do charlatanismo, e dos rigores sobre o “pensamento genuíno”. Aponta para a fome dos homens por líderes e mágicos que retirem de suas mentes as selvagerias da liberdade. “Os segredos mais dolorosos de sua consciência, eles nos trarão todos”, quer ao padre, ao psicanalista ou à polícia.
Não por acaso o romance, por ser religioso, é dividido em quatro partes, totalizando doze capítulos, e um epílogo; a obra prima de Dostoievski expressa da maneira mais acabada sua religiosidade, que é Cristã e Ortodoxa. O número de capítulos simboliza a atuação de Deus sobre o espírito, na dualidade das coisas e do homem. Para a ortodoxia o número doze simboliza Jesus, sendo ainda o número dos apóstolos de Cristo, do número de estações de sua via crucis, das tribos de Israel, a base dos cento e quarenta e quatro mil salmos bíblicos.
Tal qual Cristo pedia “deixai vir a mim as criancinhas”, o mesmo o faz Aliocha, sempre rodeado por elas, buscando que cultivem as memórias de seus momentos felizes, de pureza infantil, essenciais na felicidade do futuro adulto. As crianças constituem o símbolo da pureza e da capacidade redencional do homem e, no dizer de Ivan “ o maior dos crimes consiste em agredi-las, degradá-las”.
Tal como em “Crime e Castigo”, existe uma propensão para o alto, para a redenção. Os “criminosos e pecadores” de certa forma são penetrados pela divindade, num processo semelhante à “metanoia” dos gregos, buscando no sofrer e no arrependimento o retorno ao “ser híbrido”, como um ser mais elevado, onde o trágico não pode ser dissociado do fantástico.
Ao final do romance, o retorno do homem ainda livre de suas faltas: Aliocha rodeado pelas crianças irmanadas num sentimento de intensa fraternidade.
“Dostoievski nada é se não o vivenciarmos em nós mesmos. Para reconhecermos a força de nossa própria simpatia é preciso verificá-la e bebê-la no mais profundo de nós mesmos e elevá-la a uma receptividade nova e acrescida. É preciso penetrar até às raízes mais secretas de nosso ser para descobrir o que nos liga à sua humanidade, bizarra, à primeira vista, mas depois tão maravilhosamente verdadeira. Lá no mais íntimo de nós mesmos, no que há de eterno e imutável, fibra por fibra, poderemos descobrir os laços que nos unem a Dostoievski”. ( Stefan Zweig)