Revolta, Revolução e Renascimento- parte I

Baseado em uma Releitura de “O Homem Revoltado” de Albert Camus)

A revolta constitui uma das dimensões essenciais do homem. O homem revoltado é, antes de tudo, aquele que diz não. Ao dizê-lo, ele se recusa, mas não renuncia, pois negar uma situação é dizer sim desde o primeiro movimento, porque o movimento de revolta apóia-se tanto na recusa categórica de uma intromissão intolerável, quanto na certeza confusa de um direito efetivo. Portanto, a revolta só ocorre quando se crê que se tem razão. Se o desespero, como o absurdo, julga e deseja tudo em geral e nada em particular, o movimento de revolta, ao contrário, invoca tacitamente um valor.

No caso do escravo quando rejeita a ordem humilhante do seu senhor, ele refuta a sua própria condição de escravo. Quando parte para o tudo ou nada, a consciência vem à tona com a revolta e ele se capacita a criar novos valores.

Portanto, partindo de uma aparência negativa, uma vez que nada cria, a revolta é, entretanto, na sua essência positiva, na medida em que revela o que no homem deve ser sempre defendido: a sua liberdade, a possibilidade de ação, ou aquilo que é seu corolário: a vontade ativa e a possibilidade de iniciar algo novo.

Existem algumas características que são marcantes no movimento de revolta. Por exemplo, ela não é egoísta, pois o homem que se revolta o faz  tanto contra a mentira quanto contra a opressão. Quando o revoltado exige para si respeito, fá-lo na medida em que se identifica com uma comunidade. Na revolta pois, um homem se transcende no outro, e, desse ponto de vista, a solidariedade humana é metafísica. Trata-se dessas solidariedades que nascem nas prisões, nas masmorras, nos campos de extermínio e de concentração. Solidariedade que somente aqueles que atravessaram momentos da tensão humana maior, como as experiências vividas nos porões da repressão política das ditaduras, que foram submetidos à tortura que oprime a alma, antes mesmo que logre dilacerar os corpos, são capazes de sentir.

A solidariedade que se fundamenta no movimento de revolta só encontra justificação nesta cumplicidade. O pensamento do revoltado nestas situações limítrofes é de uma tensão perpétua. Em troca ele ganha a consciência do ser coletivo e a aventura é de todos. A revolta ainda retirará o homem de sua solidão, fundamentando como seu primeiro valor: “eu me revolto, logo, existo, e existo em comunidade!”

A revolta não pode ser confundida com o ressentimento, que é uma secreção nefasta da impotência  que se prolonga no individualismo. O ressentimento fragmenta o ser, enquanto que a revolta o integra, conduzindo o homem à transcendência. Ao contrário do ressentimento que é passivo e apenas aguarda o momento da revanche, a revolta é ativa, abundante de energia; enquanto o ressentimento colore-se da inveja, o revoltado não inveja aquilo que não tem, porque defende aquilo que ele é. O ressentimento transforma-se em arrivismo ou amargura, pois a pessoa quer ser algo que não o é. Nietzsche classifica o ressentimento como “o sentimento dos rancorosos”, aquele que aguarda sempre a oportunidade de ferir à socapa, pela retaguarda.

Chegamos, então, a uma outra característica da revolta: ela não é “realista”, sendo o oposto do ressentimento;  o revoltado não busca conquistas, pois ele quer apenas e tão somente se impor, numa  luta que o que está em jogo é a integridade de seu ser.

No século das ideologias pregava-se o amor à humanidade em geral para não ter que se amar a um ser individual, para não dedicar àqueles que sofrem a comunhão do compartir, o “pathio” agostiniano trazido do céu para a terra. Em Dostoievski, Ivan Karamasov passa do movimento de revolta à insurreição metafísica, pois a sua revolta tem o caráter dilacerado por existir nele amor demais sem objeto; ao negar a existência de Deus, Ivan decide-se transferi-lo para o homem em nome de uma generosa cumplicidade, mas não encontra onde colocar a sua compaixão.

Na sociedade moderna, o espírito de revolta prolifera  em grupos nos quais uma igualdade teórica encobre grandes desigualdades de fato. A revolta, então, é o ato do homem informado, cônscio de seus direitos. O revoltado é aquele que se situa na reinvindicação de uma ordem humana, em que todas as respostas sejam simplesmente humanas, racionais ou irracionais, mas humanas, talvez “profundamente humanas”.

A revolta metafísica é o movimento através do qual o homem se insurge contra a sua condição e contra a criação. É metafísica porque contesta os fins do homem e da criação, sua qualidade enquanto homem. O revoltado se insurge contra um mundo fragmentado para dele reclamar unidade, contrapõe o princípio de justiça que nele existe, ao de injustiça que vê no mundo. O revoltado metafísico certamente não é ateu, mas blasfemo; ele blasfema em nome da ordem, contra Deus, pai da morte e do escândalo supremo, o mesmo “skandalo” denunciado por Cristo.

Historicamente o escravo revoltado e o senhor estão no mesmo barco. A realeza temporária de um é tão relativa quanto a submissão do outro. Quando houver o confronto, um destruirá o outro, pelo menos provisoriamente. Da mesma forma, o revoltado metafísico volta-se contra um poder cuja existência simultaneamente afirma no próprio instante em que a contesta. O escravo começa reclamando justiça e termina querendo realeza, pois tambem precisa ter a sua vez de dominar. A rebelião humana acaba em revolta metafísica, pois derrubado o trono de Deus, começa o esforço para fundar o império dos homens.

Isto poderá trazer consequências de superação caso a humanidade trilhe a senda do exercício da vontade como liberdade, caminhe para um novo renascimento. Mas também as consequências poderão ser terríveis, na medida em que o revoltado esqueça as suas origens, canse-se da dura tensão entre o sim e o não, e entregue-se por fim à negação de todas as coisas ou à submissão total. Mas qualquer destas consequencias não se devem à revolta em si, mas à fidelidade ou infidelidade do revoltado às suas origens.

II- A REVOLTA METAFÍSICA

No “Prometeu Acorrentado” de Ésquilo, o Titã que possuia a capacidade de prever o futuro diz- “Nenhuma desgraça que eu já não aja previsto cairá sobre mim”. Mas ao mesmo tempo : “Ah, vejam que injustiça eu suporto!”, aquele que se declara :“Inimigo de Zeus, por ter amado demais aos homens”. O que Prometeu não diz, mas que a ambiguidade trágica nos revela é que antes do homem, seu entrevero com Zeus era fruto de um acerto de contas particular entre deuses, jamais uma luta universal do bem contra o mal. Os gregos se acreditavam no destino, acreditavam ainda mais na natureza e revoltar-se contra a natureza é revoltar-se contra si mesmo, e a coerência de revoltar-se contra sua essência seria o suicídio. Não é por acaso que em “Prometeu Portador do Fogo”, o Titã de Ésquilo  anunciava o reino do revoltado perdoado por Zeus.

“Édipo Tirano”, de Sófocles, sabe que, mesmo contra a sua vontade, ele não é inocente, pois fora a soberbo; sentira-se acima de todos e mais que ninguém considerava-se decifrador dos enígmas divinos; mas a sua desgraça fazia parte de seu destino, gerada que for a pela  desmedida cometida por seu pai, Laio.  De qualquer forma ela o destruiria. Na sua revolta, Édipo que acreditava ver longe arranca os próprios olhos. “Édipo em Colono” já não é mais um revoltado. Tudo está se harmonizando.

Antígona, numa atitude que é anti-polis, reacionária, revolta-se por não ver cumpridos os ritos sagrados para com o irmão, Polinices abatido por Etéocles no campo de luta; Polinices que queria destruir sua própria cidade, Tebas, e tornar escravos de Argos seus próprios irmãos. Ela prefere fechar-se em sua phylia do que abrir-se ao mundo e ao amor. Mas os gregos sempre expõe a dupla face, o contraditório, a alma ambígua da tragédia.

A ideia da inocência versus culpa, a história reduzida à luta entre o bem e o mal era totalmente estranha aos gregos de cinco séculos antes de Cristo. Seus heróis  cometem mais erros que crimes, e estes, quando ocorrem , são devido à desmedida dos homens, cujos olhos são cobertos pela ate, a cegueira que também lhes é imposta pelos deuses.

Apenas nos últimos instantes do pensamento grego vemos ressurgir a revolta tão presente no século dos poetas trágicos. Chegamos até Epicuro: ”Podemos nos precaver contra todas as espécies de coisas; mas no que concerne à morte, continuamos como os habitantes de uma cidadela arrasada”. Ainda: ”De espera em espera, consumimos toda a nossa vida e morremos no sofrimento”; ”A morte não é nada em relação a nós , porque aquilo que está destruído é incapaz de sentir, e o que não sente é nada para nós”. Toda a volúpia de viver de que nos fala Epicuro é, tão somente, a ausência de sofrimentos, a felicidade tal qual a das pedras. Ele mata a sensibilidade e seu primeiro grito, a esperança! Ele ergue uma cidadela com seus altos muros em volta dos homens. Não nega os deuses mas diz que nada têm a ver com os negócios humanos. Mas sua revolta tem o caráter defensivo: “Eu fechei todas as portas ao destino, não nos deixaremos vencer por ti; e quando soar a hora inevitável da partida, diremos: e com que dignidade vivemos!”

Com Lucrécio inicia-se o abandono do destino, que é, então,  substituído pelo acaso. Para ele, a piedade é poder “tudo olhar por um espírito que nada perturba”. Mas esse espírito não se contém, ele treme perante a injustiça: Ifigênia, filha de Agamemnon, o primeiro crime de religião cantada por Homero, degolada na inocência, por este “traço divino que passa ao largo dos culpados  e tira a vida de inocentes”. “Por que o mal seria castigado, se temos visto exaustivamente o bem não ser recompensado?” O homem de Lucrécio já procede a uma revolução. Ao negar os deuses indignos e criminosos ele assume seu lugar, deixando a cidadela onde Epicuro o aprisionara; desta forma, o assassinato de um homem é uma resposta ao divino e não será por acaso que seu poema termina com a imagem de santuários repletos de cadáveres da peste, fonte de inspiração de “A Peste” de Camus.

Chegamos finalmente ao deus pessoal, aquele a quem, finalmente, a revolta poderá pedir prestação de contas. O primeiro caso é o de Caim; e a revolta dos tempos modernos é muito mais dos filhos de Caim do que a dos protegidos de um Prometeu. O Novo Testamento é uma forma de responder antecipadamente a todos os Cains, colocando um mediador ente Desus e os homens: Cristo. Ele veio resolver dois dos maiores problemas dos revoltados: a morte e o mal. A noite do Golgota, com sua cruz por séculos exaltada, só tem tanta importância pois o deus-homem, abandonando todos os seus privilégios, vivenciou até o final seu martírio, revoltando-se com o “lama sabactani”, “pai afasta de mim este cálice”, pois para que um deus se faça também homem é preciso que ele se desespere.

No mundo Ocidental, graças à Igreja, a raça de Caim triunfou ao longo dos séculos. Os blasfemos, paradoxalmente, fizeram reviver o deus ciumento que Cristo quizera afastar; assim se manteve a figura implacável do deus do ódio, este sim, em perfeito acordo com a criação que preferiu o sacrifício de Abel ao de Caim, que foi a divindade provocadora do primeiro assassinato entre irmãos.

Enquanto o Ocidente foi cristão, os Evangelhos foram intermediários entre os céus e a terra, pois dado o sofrimento a que Cristo se submetera, nenhum outro seria mais injusto e toda dor desnecessária. Acontece que  a injustiça generalizada é tão satisfatória para o homem quanto a justiça total. Desde que o Cristianismo, terminando o seu período triunfal,  é submetido à crítica da razão, todo esforço do pensamento libertador estará voltado para tornar Cristo um inocente ou um tolo, anexando-o ao mundo dos homens, naquilo que ele tem tanto de nobre quanto de desprezível.

A NEGAÇÃO ABSOLUTA

Sade é o marco, que só extrai da revolta o não absoluto; vinte e seis anos de prisão não lhe permitem possuir nenhuma atitude conciliadora. Toda ética da solidão implica exercício do poder e Sade tratado de maneira atroz reagiu de modo igualmente atroz. Ele, que só conheceu a lógica dos sentimentos, tratou de criar o sonho monstruoso de um perseguido. Sua sede extrema de uma vida proibida foi aplacada, de furor em furor, até transformar-se em sonho de destruição universal.

Saint-Fond é seu personagem mais cruel; a inocente Justine, deflorada, mil vezes estuprada, corre em fuga sob a tempestade e é esmagada por um raio. Se a ideia que Sade possui de Deus é de uma divindade criminosa, que esmaga o homem e o nega, por que o homem seria virtuoso? “Virtude e vício, tudo se confunde no caixão”.

Sade se revolta contra a ordem do mundo e contra si mesmo; mas por ser um perseguido, um condenado às grades, estas duas revoltas não são contraditórias. Sade negará o homem e sua moral.  E o fará em nome do mais forte dos instintos: o sexual. O sexo, por uma lado expressão da natureza, por outro, ímpeto cego que exige a posse total dos seres, mesmo ao preço de sua destruição. Se para Sade a própria natureza será o sexo, sua lógica o conduz a um mundo sem lei, onde o único senhor será a energia desmedida do desejo. A liberdade que ele reclama não é a dos princípios, mas aquela dos instintos. Ele não é amigo da raça humana, pois odeia tudo o que se aproxime da filantropia. A igualdade de que nos fala é a abjeta igualdade das vítimas, pois a república de Sade não tem a liberdade como objetivo, mas a libertinagem. A liberdade, enquanto sonho de um prisioneiro, não pode suportar limites; ela é o crime ou não é mais liberdade.

Matar um homem no paroxismo de uma paixão é compreensível. Mandar que outra pessoa o faça , a pretexto de qualquer dever honroso, é incompreensível. Para Sade quem mata deve pagar com a vida. Como vemos, ele é mais moral que muitos dos nossos contemporâneos. O manuscrito “Cento e Vinte dias de Sodoma”, devolve à cela o aristocrata correligionário da revolução francesa, mas um aliado comprometedor.

A república universal foi para Sade um sonho, nunca uma tentação. Em política, a sua verdadeira posição é o cinismo. Em seu livro “Sociedade dos Amigos do Crime” ele se declara a favor do governo e de suas leis, enquanto se dispõe a violá-las. A licença para destruir pressupõe que se possa ser destruído.  Logo será preciso lutar e dominar. A lei deste mundo nada mais é que a lei da força; sua força motriz, a vontade de poder! Surpreendêmo-nos, nós homens do século XXI?

Sade compõe o grupo de seus heróis entre aqueles que o acaso do nascimento nomeou aristocratas, mas neste grupo admite o oprimido quando ele se insurge e coloca-se ao lado dos fidalgos libertinos. É uma espécie de blanquismo moral, em que uma pequena casta de homens e mulheres coloca-se acima de uma casta de escravos.

Como a lei da força jamais tem paciência para esperar o império do mundo, ela precisa delimitar sem delongas o seu território, mesmo que seja necessário cercá-lo de arames farpados e torres de observação. No caso de Sade ele cria castelos  de onde se é impossível escapar e onde a sociedade do crime e do desejo funciona de modo implacável. A emancipação do homem para Sade se realiza na incorporação a uma burocracia do vício, que regulamenta a vida e a morte dos homens e mulheres que entraram para o reino da necessidade:“Vocês já estão mortos para o mundo”. A liberdade ilimitada do desejo significa a supressão da piedade e a supressão do outro. Na república de Sade tudo são máquinas e mecânicos, sua dinâmica ele as copia dos conventos, mas no seu contrário: “tudo o que for uma conduta pura, é culpado.”

O gozo transforma-se em desespero, uma corrida da servidão para a servidão, da prisão para a prisão. De destruição em destruição, só resta o aniquilamento universal. Mas quando todos são aniquilados os carrascos se vêem um diante do outro no castelo solitário. “O assassinato só tira dos que matamos a primeira vida”… “eu abomino a natureza, gostaria de parar os astros, destruir o que lhes serve, salvar o que é nocivo, mas não consigo”. Os senhores irão se destruir; ele mesmo, Sade, aceitará sua aniquilação pessoal. Dos senhores só restará um, o Único, em meio à total destruição.

Mas Sade não matou ninguém, isto só se passou na sua imaginação, mas ele morreu atado numa camisa de força, em meio aos escrementos de um hospício. Sade foi o homem de letras perfeito, que  construiu uma ficção para dar a si mesmo a ilusão de existir. Colocou acima de tudo “o crime moral que se comete por escrito”. Colocou em evidência as consequências extremas de uma lógica revoltada,  pelo menos quando ela se esquece de suas verdadeiras origens. Essas consequências são as totalidades fechadas, o crime universal, a aristocracia do cinismo e a vontade do apocalipse.

O sucesso de Sade se explica em nosso tempo: a reinvindicação da liberdade total e a desumanização friamente executada pela inteligência. A redução do homem a um objeto de experimento, os regulamentos que determinam as relações entre a vontade de poder e o homem objeto, o campo fechado que os teóricos do poder se lembrarão na hora de organizar a era dos escravos. Sade exaltou, com dois séculos de antecedência as sociedades totalitárias em nome da liberdade frenética que a revolta, na verdade, não exige.

A REVOLTA  DOS DANDIS

Chegamos, dentro do mundo das letras, ao romantismo que do ponto de vista da revolta, só servirá às aventuras da imaginação.

A luta de Satã e da Morte, no “Paraíso Perdido” simboliza este drama, muito mais que o fato de a morte ser a filha corrupta de Satã. Para combater o mal, o revoltado Lúcifer, que se julga inocente, renuncia ao bem e gera novamente o mal. Como se interroga Blake, o que teria feito com que Milton escrevesse constrangedoramente quando falava sobre anjos  e Deus e, por outro lado, fosse repleto de audácia e arrebatamento quando travava dos demônios? Ora, a resposta nos parece de uma clareza mediana: Milton era um verdadeiro poeta, sem que o soubesse, do partido dos demônios. O grito de Satã, contra a prepotência divina é o da inocência ultrajada: “adeus esperança, mas com ela, adeus temor, adeus remorso…ó mal, seja o meu bem!”

Satã insurge-se contra o seu criador porque ele usou a força para subjulgá-lo.”Igualado na razão, ele alçou-se acima de seus iguais pela força”. O revoltado se afastará desse Deus agressor e indigno e reinará sob forças hostis ao Empíreo. Mas o Príncipe do Mal só escolheu este caminho, o próprio mal, porque o bem é uma noção definida e utilizada por Deus para desígnos injustos. Pois desde então, até mesmo a inocência que encontrará em anjos e nos humanos, irritará o rebelde, pois pressupõem a cegueira dos tolos. Já que na raiz da criação está a violência, a violência deliberada será sua resposta.

Para Melville, o Satã de Milton é moralmente muito superior ao seu Deus, assim como aquele que  persevera a despeito da adversidade e da sorte é um ser superior àquele que, na fria segurança de um triunfo certo, exerce a mais horrível vingança sobre seus os inimigos. E a vingança de Deus não admite recuos. Ela é eterna, portanto, de uma infinita maldade.

Ora, como Satã nao consegue sentir o mal e nem os benefícios, nem tão pouco alegria pelos males que causou, ele inaugurará uma nova categoria, a daqueles que tudo negam, e isto definirá o niilismo e o assassinato. No apocalipse tudo se confunde, amor e morte, consciência e culpa. Se olharmos com cuidado o painel frontal da Capela Sistina, veremos os seres humanos no “Juízo Final” despencando e tremendo de ódio, idolatrando no pavor seus crimes, caminhando para o tártaro, onde amaldiçoarão o Criador.

O romantismo empenha-se em ilustrar um movimento de reinvindicação nas imagens convencionais dos fora-da-lei, do bom prisioneiro, do assaltante generoso. Mas em sua origem, o romantismo desafia primeiro a lei moral e divina. A sua imagem mais original não é o revolucionário, e sim, o dândi, o Mário Caravadoci de “Tosca”. Mauraux diz ”não há mais poetas malditos”; mas os outros têm consciência pesada. A revolta cobre-se de luto e vai se fazer admirar nos palcos. Muito mais que o culto aos indivíduos, o romantismo inaugura o culto à personagem. Diz Milton: ”Nada mudará este espírito fixo, esse alto desdém nascido da consciência ofendida.” O objetivo de Satã era tão apenas igualar-se a Deus e manter-se nesse nível.

Caminhamos até Baudelaire, para quem “viver e morrer diante de um espelho”, era o lema de um dândi. O dandi, aquele que cria a sua estética da singulariedade e da negação, mas ele é um opositor que só se mantém pelo desafio. Como personagem teatral precisa de um público e só o terá enquanto se opuser. Os outros são o seu espelho, ele sempre é movido a impressionar. Vivendo em ruptura, sempre às margens das coisas, o dândi obriga os outros a criarem-no, enquanto nega os seus valores. Ele desempenha a sua vida apenas e tão somente por ser incapaz de vivê-la.

Mas Baudelaire era por demais teólogo para ser um verdadeiro revoltado, ele que melhor que niguem teorizou o dandismo. ”Que tudo neste mundo transpira crime, o jornal, as paredes, as faces dos homens”. “Não só ficarei feliz sem ser vítima, mas não odiarei ser carrasco a fim de sentir a revolução dos dois lados”. “O verdadeiro santo é o que açoita e mata o povo para o bem do próprio povo.”

A partir do romantismo a tarefa de um artista não será somente recriar o mundo, nem exaltar a beleza por si só, mas também definir uma atitude. Quando os dândis não se matam uns aos outros, sentem-se muito felizes em fazerem carreira, pousarem para a posteridade. Mas a revolta, pouco a pouco, troca o mundo do parecer pelo do fazer, ao qual irá lançar-se por inteira. Enquanto o revoltado romântico exalta o indivíduo e o mal, não toma o partido dos homens, apenas o seu próprio partido. O dandismo, em qualquer de suas formas, ele é um dandismo em relação a Deus e a danação insistentemente apregoada nada mais é que uma boa peça que se prega ao mesmo Deus.

A RECUSA DA SALVAÇÃO

Com Dostoievski a revolta dará um passo além. Ivan Karamasov toma o partido dos homens, ressaltando a inocência dos mesmos, logo, a condenação à morte que paira sobre todos nós é injusta. Num primeiro momento, Ivan defende a justiça e não o mal, o qual situa acima da divindade! Ele não nega a existência de Deus, mas o refuta em nome de um valor moral. Deus é julgado: se o mal é necessário à criação divina , então a criação é inaceitável. Ele inaugura a empreitada essencial da revolta , que é substituir o reino da graça pelo da justiça. Ivan recusa o mistério e explicitamente o próprio Deus como princípio do amor. “Se o sofrimento das crianças serve para completar a soma de dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde já que a verdade não vale tal preço.”

“Minha indignação persistiria mesmo se eu estivesse errado”, diz referindo-se ao starets-santo homem Zózimo. Ele recusa a salvação, pois para ela seria necessária a fé, mas esta pressupõe a aceitação do mistério e do mal, a resignação à injustiça. Ivan recusa a barganha. A revolta com Dostoievski caminhou, agora ele quer o tudo ou o nada. Ivan não diz que não há uma verdade, mas que ela é inceitável. Porque é injusta. Ivan ainda recusa-se a ser salvo sozinho; solidariza-se com os malditos e por sua causa recusa o céu, pois o sofrimento continuaria, não havendo salvação possível para aquele que possua a verdadeira compaixão.

Ao recusar a imortalidade, resta-lhe a vida, e no que ela possui de mais elementar. E ele viverá, amará, até mesmo sem saber o por quê. Dono de sua vontade, viver também é agir. Com o desaparecimento da imortalidade já não existe recompensa e nem castigo, nem bem e nem mal. “Não há virtude sem imortalidade”. Por outro lado, não havendo vitude, não há mais lei: “tudo é permitido.” O niilismo cria forças, cria músculos. Com os Irmãos Karamasov a lógica da indignação fará a revolta voltar-se contra si mesma, lançando-a numa contradição desesperada. Ivan irá se esforçar por fazer o mal para alcançar a coerência, racionalizando sua revolta, até extrair dela a lei do assassinato, a do próprio pai. E isto ocorrerá ao mesmo tempo em que ele odeia a pena de morte: “todas as indugências para o assassino, nenhuma para o carrasco”. Esta contardição o faz sufocar, torna-o um “trágico” no modernismo, ser virtuoso e ilógico, ou lógico e criminoso. “Vais realizar uma ação virtuosa, mas não acreditas na virtude, eis o que te irrita e atormenta”, lhe diz seu duplo.

Chegaremos, então, ao extremo da revolta metafísica que é a revolução metafísica. “Como a imortalidade e deus não existem, é permitdo ao homem tornar-se um novo Deus. A aceitação do crime é uma constante nos intelectuais dostoievskianos. Falamos que Ivan chegaria ao assassinato,  não por sua ação, mas pela ausência de agir, permitindo que o rejeitado Smediakov assassine um canalha, o pai de ambos. Mas Ivan enlouquecerá por isso. O homem que não compreendia como se podia amar ao próximo também não compreende como se possa matá-lo, ou permitir-se que se o faça.

Na lenda do “Grande Inquisidor”, Dostoievski já antecipara: “Não é a Deus que eu rejeito, mas a criação.” Seu projeto de emancipação continua moral, ele não quer reformar nada na criação, mas sendo ela o que é, deseja emancipar-se dela. Dostoievski, profeta da nova religião havia anunciado e previsto: “Se Aliocha tivesse concluido que não há Deus nem imortalidade, ele se teria tornado imediatamente ateu e socialista. Isto por que o socialismo não é apenas uma questão operária, é sobretudo a questão do ateísmo, de sua encarnação contemporânea, a questão da Torre de Babel, que se constói sem Deus, não para a terra alcançar os céus, mas sim, para rebaixar os céus à terra.”

Aliocha trata Ivan como um verdadeiro simplório. Outros virão, que partindo da negação desesperada irão exigir o império do mundo. Inicialmente os Césares romanos, depois “O Grande Inquisidor”, velho e cançado pois seu conhecimento é amargo. Ele sabe que os homens são preguiçosos , covardes, e que preferem a paz e a morte à liberdade de discernirem entre o bem e o mal. Ele tem piedade, mas uma piedade fria desse prisioneiro calado que a história desmente sem tréguas. Ele o pressiona a falar para legitimar o trabalho dos Césares e dos Inquisidores espanhóis. Mas ele se cala, prefere a morte. A legitimidade do Inquisidor fica para o final dos tempos. “O negócio está apenas no começo, longe de terminar, e a terra terá muito o que sofrer, mas atingiremos nosso objetivo, seremos cézares e, então, pensaremos na felicidade universal”. Não há mais provas, só fé e mistério, que os Inquizidores ridicularizam. Tudo é permitido, os séculos do crime se preparam. De Paulo a Hitler, passando por Mussolini e Stalin, os Papas que escolheram César preparam o caminho dos Césares, que só escolhem a si mesmos.

NIETZSCHE e o NIILISMO

Com Nietzsche o niilismo torna-se consciente. Um “profeta” que só pensou no apocalípse vindouro, não para exaltá-lo porque advinhava a face sórdida e calculista que o apocalipse acabaria assumindo, mas para evitá-lo e transformá-lo em um  renascimento do gênero humano. A revolta de Nietzsche já parte do Deus morto. Ela se dirige a tudo aquilo que vise falsamente substituir a divindade desaparecida e que desonre o mundo. Ele não matou Deus. Já o encontrou morto na alma de seu tempo.

Reconheceu o niilismo e o tratou como um caso clínico. Diagnosticou em si mesmo e nos outros a impotência de acreditar e o desaparecimento do fundamento primitivo de toda fé, ou seja, da crença na vida. À pergunta de poder-se viver toda a vida revoltado, ele respondeu com ”pode-se viver sem acreditar em nada”? E sua resposta é sim. Em vez da dúvida metódica ele aplicou a negação metódica, a destruição de tudo aquilo que ainda escondia o niilismo de si próprio.

Para ele o ateísmo é construtivo e radical. O mundo anda ao acaso, logo Deus é inútil, já que nada quer. Stendhal disse: “a única desculpa de Deus é que ele não existe”. Privado do divino o mundo fica igualmente sem unidade e finalidade e por isso, não pode ser julgado. “As vantagens desse tempo: nada é proibido, tudo é permitido”. A conduta moral socrática e cristã assumem para Nietzsche o sinal de decadência. A verdadeira moral não se separa da lucidez, e ele é severo como ninguém com os caluniadores do mundo, pois a moral tradicional é imoralidade. “É o bem que, por motivos morais, terá que ser justificado”.

Para Nietzsche Cristo não era um revoltado, pois o essencial de sua doutrina resume-se no total consentimento, representado pela não resistência ao mal. Não é preciso matar, mesmo para impedir que se mate, pois é necessário aceitar o mundo como ele é, e assim fazendo, recusar-se em aumentar sua desventura. Não se trata de fé, mas de ações, pois uma disposição interior permitia aos cristãos colocar os atos de acordo com os princípios e levar à beatitude imediata. Mas após este princípio primitivo o cristianismo nada mais foi que uma longa traição de sua própria mensagem. O Novo Testamento é fruto da corrupção e de Paulo aos Concílios, a subserviência à fé fez esquecer as obras. As principais corrupções Nietzsche as localiza no julgamento, nas noções de castigo e recompensa. E destas mensagens corrompidas nasceria a ideia da totalidade humana, pois ao final da história, os homens serão separados em bons e maus. O cristianismo histórico, aquele que  secularizou o sagrado, impede que a vida descubra o seu verdadeiro sentido.

Da mesma forma Nietzsche se insurge contra o socialismo e todas as formas de humanitarismo. Ele mantém a crença nesta finalidade da história que trai a vida e a natureza. A história inteira significará recompensa e castigo e a igualdade das almas junto a Deus, leva à igualdade dos desiguais. O socialismo seria um sub-produto do cristianismo degenerado, por ser uma doutrina moral e ele a combate. O espírito livre destruirá tais valores ao denunciar as ilusões sobre as quais repousam. A inteligência lúcida deve realizar a sua missão: transformar o niilismo passivo em ativo.

Num mundo liberto de Deus e da moral o homem se acha só e sem senhor. ”Ao colocar-me acima da lei sou o maior dos rechaçados.” Quem não consegue colocar-se acima da lei precisa encontrar uma outra lei ou a demência. O homem é responsável por tudo aquilo que vive, por tudo o que, nascido da dor, está fadado a sofrer na vida.

Como espírito livre ele sabia que esta liberdade não é um conforto, mas uma grandeza que se quer e obtém, fruto de uma luta extenuante. Todos os possíveis somados não permitem a liberdade, mas o impossível é a escravidão. O essencial consiste em dizer que se a lei eterna não é a liberdade, a ausência de lei o é ainda menos. O próprio caos também é somente servidão. Só há liberdade em um mundo onde o que é possível e o que não é encontram-se simultaneamente definidos. Se o destino não for orientado por um valor superior, se o acaso é rei, eis a marcha para as trevas, a liberdade dos cegos. Ao contrário de Ivan Karamasov, Nietzsche substituiu o “se nada é verdadeiro, tudo é permitido”, pelo “se nada é verdadeiro, nada é permitido”. “Quando não se encontra grandeza em Deus, ela não é encontrada em nenhum lugar; é preciso negá-la ou criá-la”. Negá-la era a tarefa no mundo em que ele vivia e que ele, prometeicamente, via correr rumo ao suicídio coletivo.

Criar alguma grandeza foi a tarefa sobre-humana pela qual se predispôs a morrer. Desde que ele não reconhece nenhum julgamento, todos os juízos de valor devem ser substituídos por um único sim e a adesão a este mundo deve ser exaltada. A partir do desespero absoluto brotará a alegria infinita; da servidão cega, a liberdade sem piedade. Como ser livre significa a abolição dos fins, a inocência do devir representará o máximo de felicidade. O espírito livre ama o que é necessário. A questão “livre de que?” é sustuituída por “livre para que?”. A liberdade coincide com o heroísmo. Ela é o asceticismo do grande homem, “o arco mais esticado que existe”. Ela nasce de uma vontade determinada de se ser o que se é, em um mundo que seja o que ele é. A revolta na qual o homem reinvindicara o seu próprio ser desaparece na submissão absoluta do indivíduo ao devir.

Como os pré-socráticos, que suprimiam as causas finais para deixar intacta a eternidade de seus princípios imaginados, como Heráclito, em Nietzsche a força sem objetivo eterniza-se. Todo esforço é orientado para demonstrar a presença de leis no devir e no jogo da necessidade: “A criança é inocência e esquecimento, um recomeço, um jogo, o dom sagrado de dizer sim”.

Nenhum julgamento explica o mundo, mas a arte pode nos ensinar a reproduzi-lo, assim como o mundo se reproduz, através dos eternos retornos. Partidário do gosto clássico, da ironia, da impertinência frugal, aristocrata que soube dizer que a “aristoi” consiste em praticar a virtude sem saber porque, que se deve duvidar de um homem que requer razões para ser honesto, Nietzsche foi inimigo mortal do fanatismo, obsecado pela integridade.

“Há na verdade um Deus, que é o mundo. Para participar da divindade basta dizer sim”. Não rezar mais, mas dar a benção e o mundo se cobrirá de homens-deuses. Dizer sim ao mundo, reproduzi-lo, é ao mesmo tempo recriar o mundo e a si próprio, tornar-se o grande artista, o grande criador. A transmutação de valores consiste em substituir o juiz pelo criador: o respeito e a paixão pelo que existe.

Marx e Nietzsche, na história da inteligência, não possuem equivalentes na deturpação de seus pensares. Nietzsche clamava por um César romano com a alma de Cristo. Isto era ao mesmo tempo dizer sim ao escravo e ao senhor. Prevendo Iroshima, afirmou que: ”Quando os fins são grandes a humanidade usa uma outra medida  e não julga o crime como tal, mesmo recorrendo aos meios mais terríveis.”

“É facil falarmos de todos os atos imorais , mas teremos a força de suportá-los? Por ex., eu não suportaria faltar com minha palavra ou matar; eu persistiria , mais ou menos tempo, mas morreria por isso, esse seria o meu destino.” A responsabilidade de Nietzsche está em ter legitimado, pelo pensamento, este direito à desonra, do qual Dostoievski já dizia que se fosse oferecido aos homens eles a ele se lançariam. Ele não se deu conta de que as doutrinas de emancipação socialista por uma lógica inevitável do niilismo, deviam tomar a a cargo aquilo com que ele próprio sonhara: a super-humanidade. E com Marx, com a profecia da sociedade sem classes, ambos substituiriam o além pelo mais tarde. Nietzsche enquanto esperava o super-homem dizia sim a tudo o que existe; Marx diria sim a tudo o que viria a ser. Para Marx a natureza é o que se subjulga para obedecer à história, para Nietzsche a natureza é aquilo a que se obedece para subjulgar a historia.

A POESIA REVOLTADA

São herdeiros os mais próximos do romantismo.  Investem contra os céus, querem a tudo destruir, mas afirmam a busca desesperada por uma ordem. Assim como os surrealistas, os poetas quizeram extrair da razão a desrazão, fazer do irracional um método. Encontrar na demência e na subversão regras de construção. Rimbaud apenas apontou o caminho. Criou uma teoria prática da revolta irracional, quando, por outros caminhos o revoltado racional criava o culto da razão absoluta.

Lautreamont demonstra que o desejo de parecer fica também escamoteado pela vontade da banalidade. Com ele compreende-se a revolta adolescente; nossos terroristas da bomba e da poesia são jóvens que mal saíram da infância. O “Cantos de Maldonor” é patético pois encarna as contradições de um coração de criança em luta contra si mesmo. De igual maneira que o Rimbauld das “Iluminações”, o poeta prefere ficar com o apocalipse  e a destruição a aceitar as regras impossíveis, que fazem o homem ser o que é, num mundo como ele é. Ao recuar para não ter que dizer contra o que se revolta, ele antecipa o eterno álibe do revoltado: o amor pela humanidade.

Isto sempre se repete. Aquele que se apresenta para defender o homem diz: “Apresente-me um homem bom”. Esse movimento perpétuo é o da revolta niilista. Revoltamo-nos contra a injustiça feita a nós mesmos e à humanidade. Maldonor destrona Deus e é o Maldito: “Os olhos não devem testemunhar a feiúra do ser supremo, com seu sorrizo de ódio”. Torturado pelo orgulho, este herói tem todas as ilusões dos dandis metafísicos. Como o revoltado romântico, sem esperança na justiça divina, tomará o caminho do mal.”Fazer sofrer e sofrer”, os Cantos são uma liturgia do mal. A liberdade total, a do crime em particular, implica a destruição das fronteiras humanas. É preciso fazer o reino humano remontar ao nível dos instintos. Esse retorno ao elementar. Em seu poema todas as suas figuras são anfíbias, pois Maldonor recusa a terra e suas limitações, compondo um bestiário a la Ovídeo com suas “Metamorfoses”. A cópula de Maldonor com um tubarão e a sua transformação em polvo para enfrentar o criador, são evasões para além das fronteiras do ser e um atentado contra a natureza. Os “Cantos” são como a confissão de um Stravoguin.

O conformismo é uma tentação niilista que domina grande parte de nossa história intelectual. De toda forma ela REALÇA COMO O REVOLTADO QUE PASSA À AÇÃO, QUANDO SE ESQUECE DAS SUAS ORIGENS DE REVOLTADO, SENDO TENTADO AO MAIOR DOS CONFORMISMOS. A revolta tem seus dandis e serviçais, mas não reconhece neles seus filhos legítimos, são  apenas bastardos.

SURREALISMO E REVOLUÇÃO

Rimbaud- Uma Estada no Inferno- e Iluminações, transformam-no no poeta da revolta, o maior de todos e são a marca de seu gênio. Revolta absoluta, insubmissão total, sabotagem como princípio, humor e culto absurdos, o surrealismo define-se como processo de tudo, a ser sempre recomeçado. A recusa de todas as determinações é nítida, provocadora. “Somos especialistas da revolta”. O surrealismo se forjou primeiro no dadaísmo: “O que é bom, belo, feio, não sei…”Estes niilistas de salão estavam,  evidentemente, ameaçados de agirem como escravos de ortodoxias mais rígidas. Breton resume: “devemos deixar nisso toda a esperança?” O espírito não consegue fixar-se nem na vida nem no além. O surrealismo é um grito do espírito que se volta contra si mesmo, decido a esmagar os obstáculos. Ele é a impaciência, vive num certo estado de raiva ferida. Também numa intransigência orgulhosa, que pressupõe seja uma moral, o seu evangelho da desordem.

Os surrealistas ao mesmo tempo que exaltavam a inocência humana também acreditavam poder exaltar o assassinato e o suicídio. Breton afirmou em 1933: “o ato surrealista mais simples consiste em descer à rua e atirar a esmo na multidão”.  Isto é coerente para quem só se rende ao primado do inconsciente. O essencial é que os obstáculos sejam negados e que o irracional triunfe. Se pensou apenas em destruir, no processo do mundo real, o surrealismo adentrou no processo de criação. Trata-se sempre de um amor sem objeto, que é o das almas torturadas. Breton ainda diz que “para os surrealistas, a violência é a única forma adequada de expressão”. Os surrealistas passaram de Helvetius a Marx, mas Breton abandona o marxismo, pois ao contrário de tudo o que pregava, não queria morrer. Para os surrealistas, a revolução não era um fim que se realiza no dia a dia, na ação, apenas um mito consolador e absoluto. Queriam a revolução e o amor, o que são coisas incompatíveis, pois o revolucionário ama um homem que ainda não existe. Os marxistas legitimam sua revolução pela necessidade de criar uma outra situação histórica; Breton usava a revolução para consumar a tragédia, a serviço do surrealismo. O marxismo exigia a totalidade e como o racional basta para conquistar o mundo, pode exigir a submissão do irracional. O surrealismo tende ao universal, a unidade da vida, fusão do sonho e realidade, dentro de seu ideal: irracionalidade concreta, o acaso objetivo.

O principal inimigo do surrealismo é o racionalismo; o princípio da analogia é sempre preferido, em detrimento dos de identidade e contradição. Se o surrealismo não mudou o mundo, forneceu-lhe mitos estranhos, que em parte justificam Nietzsche quando predizia o retorno dos gregos. Mas a Grécia das sombras, dos mistérios e dos deuses negros. Enquanto Nietzsche bridava o meio-dia, os surrealistas saudavam a meia-noite no culto angustiado da tempestade.

NIILISMO E HISTÓRIA

Cento e cincoenta anos de revolta metafísica e de niilismo viram retornar o mesmo rosto devastado, mesmo com disfarces, o do protesto humano. Aqueles que recusaram qualquer regra para o mundo que criaram, a não ser o do desejo e da força, correram para o suicídio, para a loucura ou para o apocalipse. Os que ousaram criar suas próprias regras pelas suas forças, escolheram a vã ostentação, a aparência ou a banalidade, ou o assassinato e a destruição. Mas Sade e os româticos, Karamasov ou Nietzsche só entraram no mundo da morte por desejarem a verdadeira vida. Por um efeito inverso, é o apelo desesperado à ordem, à regra, à moral que ressoa nesse universo demente. Suas conclusões só foram nefastas ou liberticidas a partir do momento em que rejeitaram o fardo da revolta, em que fugiram da tensão que ela pressupõe, escolhendo o conforto da tirania ou da servidão.

O revoltado não exige a vida, mas as razões da vida. Ele rejeita as consequências que a morte traz, pois se nada perdura tão pouco nada se justifica, aquilo que morre fica privado de sentido. Lutar contra a morte equivale a reinvindicar o sentido da vida, a lutar pela ordem e pela unidade. O protesto contra o mal que está no âmago da revolta metafísica, é significativo. Revoltante não é o sofrimento da criança, mas que ele não seja justificado. Não é a revolta em si mesma que é nobre, mas o que ela exige, mesmo se o que dela se obtém é ainda ignóbil. Toda vez que ela aceita cegamente aquilo que existe ou que ela o nega cegamente, ela desemboca em assassinatos e perde o direito de ser chamada de revolta.

Não são a revolta e sua nobreza que iluminam atualmente o mundo, mas sim, o niilismo. Se o século XIX foi o da revolta, o XX é o da justiça e moral, em que cada um bate no peito. O revoltado só queria, a princípio, conquistar o seu próprio ser e mantê-lo diante de Deus. Mas ele esquece as suas origens e, pela lei do imperialismo individual, ei-lo em marcha para o império do mundo, através de crimes multiplicados ao infinito.

Final da primeira parte. A seguir,  A REVOLTA HISTÓRICA.

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