Reflexões de uma noite insone, durante greve de fome na ditadura.

A greve de fome foi deflagrada por uma parcela dos presos políticos, tanto homens como mulheres. Se as autoridades penitenciárias e militares receberam aquela medida extrema como uma espécie de “ultimatum”, de afronta, é porque o autoritarismo não admitia e não admite que o contestem, não pode conceber que o homem pode recusar-se a abrir mão de sua capacidade de rebelião, até mesmo sob as mais coercitivas das condições.

E assim o entenderam aqueles revoltados, que, no extremo, estavam dispostos a oferecer a própria vida em holocausto, para contrapor-se ao arbítrio que visava tratá-los “como terroristas”, incluindo-os no mesmo regime penitenciário que os presos comuns e dividindo-os pelos diferentes presídios, e, em decorrência, reduzindo a capacidade de resistência do conjunto.

Além do mais, quando as autoridades militares separavam os “recuperáveis” dos “irrecuperáveis”, estes temiam que, quem sabe, num futuro, o arbítrio buscasse “a solução final” a la Hitler.

Deste modo, a greve de fome era um movimento de resistência e de ataque, que ocupou um importante papel nas denúncias contra a ditadura, trazendo a questão dos presos políticos, da tortura, dos assassinatos à pauta de diversas organizações humanitárias, da Igreja e da imprensa internacional.

Uma das primeiras decisões tomadas pelas autoridades foi isolar do restante dos companheiros parcelas dos grevistas. Um grupo foi enviado para uma penitenciária estadual nos confins do Estado, outro para o DOPS e DOI-CODI, outro ainda para a Casa de Detenção e, finalmente, o grupo do qual fazia parte eu fazia parte, para a Penitenciária do complexo do Carandiru.

Lá, cada preso passou a ser mantido em isolamento físico absoluto, e o Estado fez tudo o que podia na tentativa de desmoralizar e de despersonalizar cada uma daquelas pessoas. Tudo era válido desde que a espinha dorsal da “revolta” fosse quebrada; que os presos, quer por ameaças, pressões e mesmo sob novas torturas, quebrassem o compromisso coletivo de somente voltarem a se alimentar quando todos os companheiros, espalhados pelos diversos presídios fossem reunificados, e disso tivessem garantias.

As celas em que foram trancafiados eram individuais, a eles nem mesmo banhos de sol eram concedidos, extinguiram-se as visitas de familiares e até mesmo de advogados, todo e qualquer livro, jornal ou revista eram proibidos, os únicos sons audíveis eram transmitidos por péssimos auto-falantes e restritos à voz do Brasil e a partidas de futebol. Após as 22:00 hs reinava o mais absoluto silêncio, imposto pelo regime penitenciário.

Reflexões numa noite insone.

Por algum motivo fora dada permissão para que eles possuíssem lápis e folhas de papel na cela, e, graças a isso teremos o registro de parcela das reflexões que registrei e, de algum modo, chegaram até nossos dias. E seguem elas:

“ Parece-me que o famoso deus grego, o Hypnos, foi exilado do nosso mundo; para nós, os dias e noites transformaram-se em tão longos…Para não ser visto pelos guardas que nos espionam através da fresta da porta de ferro, escrevo à noite, sentado no parapeito da ampla janela gradeada que dá para o pátio comum a todas as celas, à fraca luz que se esgueira fugitiva para dentro. No silêncio da noite, posso até mesmo sentir que as pessoas aqui confinadas não mais navegam suavemente nos barcos escuros do sono, entremeados dos sonhos coloridos, esvoaçantes. Aqui a humanidade presa se consome na absoluta mediocridade do nada fazer; o destino, que penetra invisível por entre as frestas de cada cubículo, afugenta o sono, afugenta o esquecimento de cada leito. Ah, que sorte a nossa, pois se aqui estamos o foi por uma questão de inconformismo, de revolta, de busca por uma sociedade melhor, melhor para os próprios desgraçados que conosco convivem, para seus filhos e netos. Nós sabemos o porquê de estarmos aqui. A decisão de nos mantermos em greve de fome é por nós assumida com todas as suas consequências”.

“Possuímos uma arma que, nos tempos de extrema dificuldade, aproxima os homens e é indestrutível: a solidariedade! Aqueles que são solidários sentem-se amparados, filhos de uma comunidade que os sustenta nas decisões coletivas livremente assumidas! E que riqueza poder sentir-se assim liberto e sustentado! Estender nossa percepção para a aflição daqueles que possuem ainda menos que nós, os presos comuns, que não têm consciência social, aquela que gera a nossa fraternidade de iguais. ”

“Estou só, falo comigo e com essas tiras de papel, mas não estou solitário. Ninguém fica a sós consigo mesmo quando consegue espreitar para fora de si. Nessa noite, estou desperto, mas vigilante nessa casa de sofrimentos, onde os ferrolhos das portas e das grades não podem me impedir de sentir meus companheiros tão próximos e tão distantes. Nesse instante sinto o pulsar daqueles que, talvez também insones, estejam nas suas janelas vizinhas à minha; mas, maravilha das maravilhas, meu coração também bate em uníssono com o daqueles distantes, irmãos de luta e de fé que estão a centenas de quilômetros, em outros presídios ou em liberdade, mas que mantêm ardente o mesmo ideal”.

“Com o silêncio absoluto deixo-me penetrar por um eco fundamental que preenche todo o universo, eco que reverbera em mim o pulsar de quantos que já morreram nas trincheiras da luta pela liberdade; ouço ao meu lado o ressoar das armas de quantos ainda batalham na luta. Tudo se transforma em sensações, pouco raciocínio. E nesse meu sentir, navegam milhares de sentimentos, ao ritmo alucinante do cavalgar ágil de Valquírias, sensações e pensares que se revestem de irmandade, de fraternidade, e são como fios invisíveis, etéreos, mais fortes que o aço, pois que compostos de amor e cuidados, numa teia de sentimentos que percorre alguns metros, milhas e chega até os ínferos para entrelaçar a todos nós no essencial. Quanto amor eu sinto preencher essa noite insone, que perdeu sua tristeza e, prenhe de alegria transformou-se em beleza insólita…”

“ Um dia haverá uma nova ordem nesse nosso mundo, em nosso país tão injusto quanto belo, tão brutal quanto amigo, decadente, mas com enorme força de sua juventude. Essa febre sem sono, essa falta de paz e tranquilidade, a esperança que se agarra às últimas fímbrias de nossa resistência, não precisarão esperar para sempre. Embora os ditadores e seus acólitos tentem destruir toda a perspectiva de um mundo novo, destroçando os corpos e as almas dos homens que poderiam transformá-lo, tudo isso será insignificante perante a força da vida, que, no seu renascer, torna-se sempre ainda mais exuberante e bela. O que agora sentimos como medo, pois mesmo desafiando-os o fazemos com o medo entranhado na alma, será transformação em direção ao sublime, ao amor e respeito ao próximo, base da fraternidade. Um dia, sem lamento e quase com saudades, pensaremos eu e meus companheiros nessas noites insones, gigantes, incomensuráveis, pois só quem sofreu a dor da doença mais cruenta pode reconhecer a doçura da felicidade da convalescença; somente aqueles, hoje insones, reconheceremos o imenso gozo do sono reconquistado. ”

“Alguns dentre nós talvez não suportem a pressão do próprio organismo por alimento; outros, a pressão dos torturadores para que voltem a comer; ainda haverá aqueles que herdarão danos físicos irrecuperáveis e, finalmente, se não conseguirmos nossos objetivos, alguns talvez morrerão. Mas se, dentre todos, uns poucos lograrem sobreviver e num dia distante, ganharem as portas da liberdade, esses serão muito mais felizes e gratos à vida e a cada um daqueles com quem comungou nessa batalha. A memória dos nossos mortos, sacrificados nas lajes dos templos da luta, queridos e amados, torná-los-á pessoas ainda melhores, honestas, justas, sérias, construtoras de um novo amanhecer libertário e humanitário. Uma das melhores maneiras de apreciar o valor da vida, do sentir, do amar e de banhar-se no belo”.

Esses foram os trechos dos pensamentos daquele insone que chegaram até seus familiares, um jovem idealista, talvez imaturo, um pouco romântico, mas, sem dúvida, um revoltado em seu tempo. Quem o poderá julgar?

Escrito durante greve de fome de um grupo de presos políticos de São Paulo, na Penitenciária do Estado, em 1972. A greve durou 32 dias de absoluta não ingestão de alimentos e encerrou-se graças à mediação do Cardeal Don Paulo Evaristo Arns.

Dois dos grevistas terminaram falecendo por insuficiência renal, algum tempo após.

3 respostas

  1. Lindo! Uma vez em Lima eu falava sobre sequestros do Estado. No meio da palestra eu contei que com 40 anos tive cancer e me senti só. Muito diferente do que senti na OBAN. Alí estava com companheiros e numa utopia em comum.
    Apos o final se aproximou de mim Susan Orbach de Londres e que tinha sido analista da Lady Dy. Me contou, comovida com o que eu havia dito, que estivera presa em NY no final dos anos 70 por pertencer a um grupo armado de oposição. Nos tornamos amigos da vida apesar de poucos encotros

  2. Belas e profundas reflexões que, aliás, recompõem magistralmente o estado de espírito dos combatentes da nossa jornada! Eu não participei da greve de fome, pois já havia saído do presídio e estava naquela data nos confins do Rio Araguaia e só soube da greve por um ou outro fragmento de notícia fugitivo e que chegou até onde eu estava. Lendo teus escritos voltei no tempo para a primeira noite na cela três do presídio Tiradentes, deitado sobre o estrado de arames da cama após um dia exaustivo de limpeza da cela que herdamos de presos comuns do “corró”
    Você ja escrevia tão bem quanto hoje em dia!

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