Os guetos de Sodoma e Gomorra: a homossexualidade em Proust.

Em Proust, graças a uma forte influência da mãe e da avó judias, evidenciam-se conceitos sionistas, e destes, o do gueto, local onde eram confinados os diferentes. As cidades de Sodoma e de Gomorra, “eram nada mais do guetos onde as tribos de Israel agrupavam os cananeus homossexuais, os malditos pela Lei de Moisés”. Locais que serviram de campos de concentração dos diferentes, que haviam sido condenados ao extermínio pelo “Deus da vingança”, através do fogo e do enxofre, uma arma química de extermínio em massa por excelência.

Proust foi um dois primeiros grandes romancistas que ousou atribuir à homossexualidade a importância que hoje ocupa claramente na sociedade contemporânea. Antes dele, somente Balzac havia desenvolvido uma imagem aberta sobre o homossexualismo masculino nas páginas que podemos denominar de o “ciclo de Vautrin” e do feminino, a sua “A menina dos olhos de ouro”, ambos parcelas importantes da “Comédia Humana”. Ora, nosso escritor era um balzaquiano apaixonado; entre amigos, muito admirou-se da audácia daquele que meio século antes já chamava a seus invertidos maduros de “tias”.

No entanto, foi “Em busca do tempo perdido” que Proust aprofundou a análise psicológica da forma de amor que aproxima homens de outros homens e mulheres de mulheres, relações que na época desafiavam a vida social, política e espiritual.

Tocar nesse tema proibido ou relegado às partes mais escuras das bibliotecas comportava riscos, mesmo físicos, para um escritor. No entanto, a seriedade da obra e a beleza da linguagem proustianas seriam os ingredientes a protegê-lo ante “leitores dignos dele”. Este constituiu um dos motivos pelos quais “Em Busca do Tempo Perdido”, é permeado de anteparos e metáforas, a maior parte delas voltadas para o sexo e para a inversão sexual.

Diz Proust em carta a um amigo: “Meu caro, do ponto de vista moral, é absolutamente indiferente que alguém encontre o seu prazer com um homem ou com uma mulher. É muito natural e humano que se procure o amor onde ele possa ser encontrado”. E ainda: “O fenômeno da inversão sexual, tão mal compreendido, tão inutilmente censurado, somente amplia ainda mais a possibilidade do amor”.

“Desta forma, o leitor não deve ficar ofendido se o invertido confere a suas heroínas uma fisionomia masculina, ou feminina” e é com esse sentido que as personagens de Proust são ambíguas. “Sim, diz Proust, fui obrigado a desbastar a coisa e a mentir, mas não é só um universo, são milhões de universos que despertam todas as manhãs, quase tão numerosos quantas são as pupilas e inteligências humanas”. Assim também o são as formas do amor.

Os personagens proustianos não possuem falso pudor pelo que fazem, “pois tanto em sexo, quanto em tantas outras coisas na vida, não existe o certo e o errado”. “Apenas a prepotência e a onipotência humana ousam classificá-los como parcelas do bem ou do mal”.

“O universo é verdadeiro para nós e diferente para cada um de nós”.

Todo leitor é o leitor de si mesmo e o reconhecimento em si mesmo, pelo leitor, do que o livro diz é a prova da realidade deste e vice-versa. Além disso, um livro pode ser até muito sábio, mas parecer obscuro demais para um leitor ingênuo; algumas peculiaridades, como a inversão, talvez requeiram uma certa maneira de ler, talvez com o auxílio de uma ou outra lente”.

Um invertido não nasce se reconhecendo como tal, assim como não pode saber que será um poeta, nem um esnobe ou um mau caráter. “O homem é a princípio um ser centrífugo, que se desconhece a si mesmo, tenta fugir, entrega-se à contemplação de seus sonhos e acredita que o impulso homossexual lhe vem do exterior e não da intimidade de sua alma”. Somente quando triunfa a revolução do pensamento em torno de seu “eu”, é que a inteligência do homem ou da mulher, saindo de si mesma, mira-os desde fora e diz: sou homossexual!

Sodoma dos Uranianos.

Proust utiliza de uma maneira absolutamente genial e provocativa as ações atribuídas na Bíblia ao Senhor:

“A destruição de Sodoma e Gomorra constitui uma prova irrefutável de uma ação mal planejada de parte do Divino. Deus colocou dois anjos às portas de Sodoma para ver se seus habitantes- e assim o diz o Gênesis- tinham feito todas aquelas coisas cujo clamor se elevara até o Empíreo. Mas aqueles anjos da morte haviam sido, coisa de que não pode a gente deixar de se alegrar, muito mal escolhidos pelo senhor, o qual não deveria haver designado para a tarefa senão a um sodomita, pois este saberia reconhecer seus semelhantes. Os anjos assexuados foram um desastre, eu até mesmo diria, um desastre total”.

Marcel nos alerta a respeito daquilo que denomina “erro bíblico”, pois somente os sodomitas, os uranianos, que se assumiam claramente, aliás a minoria, permaneceu na cidade e teria sido destruída pelo fogo e pelo enxofre, “tal qual em fornos exterminadores sagrados implacáveis, de tal maneira que, de acordo com a lei divina, nenhum vestígio deixassem sobre a terra. Deste genocídio restaram somente as cinzas”.

Mas foi a incúria dos anjos assexuados nos portões da cidade que permitiu que fugissem todos os sodomitas envergonhados, mesmo aqueles que quando viam um jovem voltavam-lhe a cabeça, tal como o fez a mulher de Lot, sem que por isso virassem estátuas de sal. “Também não conseguiram impedir a fuga daqueles que, perante as flamejantes espadas empunhadas pelos lindos mancebos às portas das cidades, diziam serem até mesmo pais de dois filhos e homens que mantinham duas mulheres, mas escondendo dos enviados divinos que as noites mais quentes as passavam com os pastores de rebanhos”.

Marcel atribui à inabilidade do Divino ter permitido “que fugitivos dessa raça tivessam numerosa posteridade”. Esses descendentes dos sodomitas tornaram-se tão numerosos como “os grãos do pó da terra”; fugindo do extermíno, eles se estabeleceram em todos os países, em todas as classes sociais, deles não escapou nenhuma profissão”.

“Criaram mesmo uma tal facilidade para penetrar nos círculos mais fechados da sociedade, que, quando algum sodomita não é admitido neles, as bolas pretas são na maior parte de outros sodomitas, mas que têm o cuidado de incriminar a sodomia como herança daquela mentira dita aos anjos de espadas flamantes, a mesma que permitiu que seus antepassados fugissem do gueto maldito”.

Marcel nos diz que teria havido entre os invertidos, quem pensasse em refundar uma nova Sodoma. Mas que fora necessário prevenir o erro funesto que consistiria, tal como se alentou, num movimento tipo sionista para refundar Israel, este de se criar um movimento sodomita e refundar Sodoma.

“Porque mal chegassem, os sodomitas abandonariam a cidade para não parecer pertencentes a ela, tomariam mulher, sustentariam amantes em outras cidades e somente iriam à Sodoma em dias de extrema necessidade, quando esta cidade estivesse deserta, em épocas em que a fome faz o lobo sair do bosque. Isto aconteceria naqueles momentos em que os invertidos, em busca de um macho, contentam-se amiúde com um invertido tão afeminado quanto eles”.

Gomorra e Safismo.

Após viajarmos com Proust por Sodoma, chegou o momento de caminharmos até sua cidade-irmã e vizinha: Gomorra. “As mulheres que se originaram em Gomorra são ao mesmo tempo bastante raras e bastante numerosas para que, em qualquer multidão, umas não passem despercebidas das outras. E então, o entendimento entre elas é fácil, muito fácil”.

Marcel nos diz que “muitas vezes, na sala do cassino de Balbec, quando duas raparigas se desejavam, tudo se passava como que um fenômeno luminoso, uma espécie de rastilho florescente que ia de uma a outra. Um olhar de uma logo é imediatamente compreendido pela outra, que se aproxima como esfaimada”.

Em nosso passeio pela Gomorra proustiana encontraremos diversas heroínas perfiladas como num panteão erguido na ilha de Lesbos. Eis que nos deparamos com Madame Bovary, filha dileta de Flaubert, mulher desejável em seu belo corpo, mas pelo que possui de mais enérgico no comportamento e nos sonhos mais profundos, damo-nos conta de estarmos frente a um homem habitando um corpo feminino.

Ao olharmos para seu lado direito, surpresa das surpresas, sentimo-nos superiores a Ulisses, pois Palas Athenas nos permite visualizar-lhe a própria sombra, filha dileta nascida da cabeça de Zeus. Palas, o encanto das curvas do corpo da divindade, com o poder e a força da alma masculina.

São tantas e tantas que quase nos passam despercebidas as Marquesa de San-Real e sua amada Paquita, a dos Olhos-de-Ouro, musas balzaquianas.

Mais ao fundo encontamos Safo, parida em Lesbos, entoando seu hino ao amor, enlaçada à sua querida e amada Atis. À sua direita, duas bravas, Pentisiléia e seu arco retezado, rainha das Valquírias e sua irmã guerreira, Hipólita.

“Entretanto, poucas dentre elas, dedicam-se ao safismo como um sacerdócio”. Até mesmo Safo, após amar tantas mulheres das quais fora a mestra nas artes de Eros, de a elas haver dedicado imortais poemas, hinos sagradores, não consegue se manter fiel ao sacerdócio do qual fora a grã-sacerdotiza e “encontra no mar a morte, mais doce que a dor pela ausência do amado que lhe nega o carinho masculino, justamente quando ela, que tantas amantes mulheres tivera, acontecera de apaixonar-se por um homem”.

Acontece que a maioria das gomorrianas, como Safo, também se deixam tocar pelo sexo oposto, como Albertine o fizera ao submeter-se a Marcel. O Narrador comenta que “Albertine o fazia tanto devido à sua humanidade mais profunda, quanto ao fato de que não pertencia à humanidade comum, mas a uma raça estranha que com ela se mistura, nela se esconde e não se funde jamais”.

Por outro lado, nos afirma Marcel, o narrador, “é um fato incontroverso que os uranianos ( os homossexuais masculinos) desenvolvem uma enorme atração pelas filhas de Safo”.

Para Proust, em sexo não existe nenhuma moral a ser seguida, embora os comportamentos humanos sejam moldados tanto pelas paixões quanto pelos padrões sociais. O escritor, dentro de sua extrema perspicácia, explicita os preconceitos e atitudes ligadas ao sexo, abandonando a hipocrisia social. Nesse sentido, os personagens proustianos expõem suas facetas sexuais como algumas plantas que sagazmente abrem seus órgãos genitais aos insetos polinizadores, sem pudor, sem vergonha, mas com receio da punição pela culpa desenvolvida, graças aos disfarces e formas de que se cercou a hossexualidade quando não assumida.

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