A geração que passou para a história como a “geração dos anos sessenta”, foi o marco de um grande momento histórico: o ressurgimento massivo dos espíritos livres por quase toda a face da velha Terra, um fenômeno especial e tão tumultuoso que influenciou a política, as artes, os costumes e até mesmo o próprio modo de o ser humano relacionar-se com a natureza.
Falamos dos anos sessenta, mas não podemos deixar de ressaltar que este momento, o do despertar dos “espíritos livres”, já ocorreu centenas de vezes na História da humanidade; alguns deles duraram períodos mais longos como o despertar do Renascimento; outros foram mais rápidos, e, em compensação a chama acesa brilhou com muito mais intensidade, como em 1789, na Grande Revolução Francesa; nas barricadas de 1848 que varreram a Europa reacionária; em 1871, na Comuna de Paris e no outubro de 1917, na Rússia libertária.
Sempre que os espíritos ousaram se libertar, eles assumiram a responsabilidade de mudar o mundo e sob sua ação nada mais permaneceu como era antes. Nem mesmo é importante o fato de que o sentido destas mudanças tenha se perdido ou se desvirtuado no seu próprio processo de vida, que os ideais revolucionários tenham sido substituídos pelo bem-estar pessoal e pelo espírito dos burocratas; o mais importante, o que definitivamente conta é que os espíritos livres fizeram a História da Humanidade e nela escreveram as linhas mais belas, as mais humanas, até mesmo “demasiadamente humanas”.
Os espíritos livres ao surgirem agitam os elementos: os mares se elevam sob influxos lunares descomunais e os céus são cortados por raios e estrondos. Um observador imparcial que tenha vivido um destes momentos históricos teria imaginado que as portas que interligam o mundo terreno com o celestial, a crosta terrestre como o subterrâneo, de repente, tivessem se aberto de par em par. E a crosta social sobre a qual sempre o homem pisou de modo tão seguro e que já se afigurara incerta, gretas e chamas dela se erguem e “tudo que era sólido se desmancha no ar”.
São estes os momentos que tornam a presença do homem sobre a terra justificável, que empurram o niilismo para trás da cortina da vida, que transformam um mundo sem sentido em um universo em si e para si, numa aventura que vale à pena ser vivida, pois os espíritos livres são os arautos da natura e prenunciam o surgimento do novo. Antecipam a luta e a coexistência do divino e maravilhoso com o pérfido e o demoníaco, do criativo com o conservador, do revolucionário com a reação às previsíveis mudanças.
É quando os grilhões que acorrentavam, aparentemente para sempre os espíritos uns aos outros, e estes à rotina sempre vivida de cada classe social, selada aos preconceitos, às infindáveis culpas companheiras de jornada do velho e antigo pecado, rompem-se com estrondo e os espíritos, tornando-se livres das amarras, começam aqui e ali a surgirem, a contaminarem outros acorrentados, a incentivarem o rompimento de outras amarras. Nada mais volta a ser o mesmo após tão sublimes e profundos momentos de arrebatamento, de ruptura, de coragem, de dor e de criação.
Porque quando a jovem alma se liberta, ela rasga o véu nauseante da rotina, arrebata e é ao mesmo tempo arrebatada e, talvez, seja por isso que ela mesma não compreenda muito bem toda a extensão do que se passa no momento dos seus atos. Um impulso, um ímpeto se torna senhor de sua ação, despertando um desejo de ir avante, seja para onde for a qualquer preço; uma jamais suspeitada, mas impetuosa e perigosa curiosidade, uma busca por um mundo inexplorado se inflama e crepita em todos os sentidos. “Antes a morte que a vida mesquinha de antes”- assim soa a voz imperiosa da sedução a negar tudo o que se havia aceitado passivamente até então!
Entroniza-se nos espíritos um súbito pavor e premonição contra o que antes era o antigo e como num relampejar surge o desprezo por tudo aquilo que os espíritos ainda agrilhoados consideravam “ser” e “dever”. O espírito liberto sorve da fonte preciosa de uma nova criatividade antes insuspeitada; sente nas entranhas um desejo tumultuoso, arbitrário mesmo, vulcânico de andança e de negação de tudo que não acompanhe a sua própria mutação; seu ódio a tudo o que represente o antigo transforma-o e ele caminha destruindo até mesmo os seus próprios mitos e imagens.
Somente, então, que aqueles que ousam e tiveram a ventura de serem penetrados pela liberdade do espírito, podem sentir um regozijo, um arrepio de bêbado que se apaixonou pelo perigo e dele retirou o orgasmo que lhe deu toda uma nova vida, assim como o prenúncio de vitória sobre uma sociedade esclerosada e dormente com seus ópios e opróbrios.
O espírito livre sorri conscientemente, mas que não se espere deste sorriso nada de angelical, pois ao libertar-se ele livrar-se-á de seu halo de inocência o qual, ao cair, se dissolveu no pó de um tempo já denominado passado. O sorriso do espírito livre tem um misto de maldade e malícia, e será a sorrir que ele irá revirar tudo o que estava encoberto e, desnudando-se, principia o grande ensaio de entender como seriam todos os conceitos da vida virados simplesmente “no avesso do avesso, do avesso, do avesso”.
Muitas vezes, os espíritos como os de Galileu, Bruno, Babeuf, Danton, Marx, Lênin, Lumumba, Che Guevara, Mário Alves e Carlos Marighella derrubaram marcos de fronteiras, violaram crenças e criaram novos valores políticos e éticos.
Os homens da ordem, os gerentes do capital, os ditos de “bem” de todos os tempos nada criam, apenas aprofundam velhas ideias. A natureza de todos eles é vulgar, pois nunca perdem de vista o seu benefício próprio, o lucro, a influência ou o poder.
Mas os libertos quando surgem, instituem-se em seu próprio e único árbitro – não mais aceitam nenhum valor, nenhuma moral que lhe seja imposta- e sua curiosidade esgueira-se para tudo o que sempre fora um dogma, para tudo o que antes lhes era proibido. A História, ele a quer reescrever e a seu modo.
E, então, ocorre um momento crucial: quando o espírito já negou os valores da sociedade em que vive, por serem falsos, ele vai mais além e, no limite de sua própria existência, coloca em cheque até mesmo os novos valores adquiridos. E isso ele o faz dialogicamente, numa sequência de negar a realidade, negar a negativa, buscar uma síntese que, por sua vez, também será, ao seu tempo, questionada. E neste eterno questionar, os espíritos se perguntam: se todos nós temos sido sempre enganados, por que um dia não nos tornaremos também enganadores de outros espíritos que desejarão se libertar?
Ainda hoje, passados quase cincoenta anos, quando fecho os olhos eu vejo aqueles espíritos livres surgirem nos momentos de explosão da Rua Maria Antônia, pressinto-os ao meu lado ao som do violão de um Vandré; é como se das barricadas erguidas nos Champs Eliseé eles ressurgissem; reconheço-os nos Panteras Negras americanos; farejo-os na resistência à Guerra do Vietnã, na presença de um homem-símbolo da decência humana: Bertand Russel; encontro-os nos movimentos hippies; sinto-me novamente participando das inúmeras reuniões no CRUSP, na marcha dos 100 mil da Cinelândia; vejo-me atuando nas dezenas de organizações de contestação social, armadas ou não, que surgiram, fruto das mais saborosas e fecundas atuações dos espíritos livres de 1968, e de seus guias, oriundos de gerações anteriores, como Carlos Marighella.
Posteriormente, eu ainda os encontro, espalhados com a dignidade dos homens livres, pelos porões da Ditadura Militar e busco reencontrá-los nas covas sem nomes de tantos cemitérios clandestinos, onde seus maravilhosos corpos foram escondidos, onde “seus ossos agora são corais, seus olhos, um par de pérolas”.
Saibam os que me lêem que até mesmo nos dias de hoje, de longe em longe, ainda me deparo com alguns daqueles espíritos livres vivos, talvez apenas para demonstrar que nem todos se esclerosaram e morreram, mas que pena, já são tão poucos… A grande maioria daqueles que nos insurgimos, que buscamos nos anos sessenta destruir os grilhões que aprisionavam os espíritos, fomos cruelmente esmagados pela reação. Formou-se, de todo modo, uma geração de perseguidos, torturados, aprisionados, os melhores dentre nós, assassinados. E então, os esbirros dos porões da ditadura entoaram seus gritos de vitória.
Mas, idiotas, enganaram-se a cada alma nobre que julgavam assassinar. A luta que parcela da geração dos 60 travou se constituiu em uma das páginas mais gloriosas dos tempos pós-guerra. Não existe um final feliz na vida, nem no coletivo, nem no plano individual, pois afinal, ela sempre termina sob uma lápide. Absolutamente, nada na história da humanidade é pré-determinado e a previsibilidade é um voo de baixa altitude. O final feliz só existe nas estórias de Andersen. Os espíritos livres de toda uma época podem ser trucidados, mas não derrotados. Por terem existido e agido, pautaram parcela da História da humanidade, deixaram o exemplo de rebeldia, sacudiram os preconceitos, descortinaram os caminhos para o retorno à democracia, denunciaram como criminosos aqueles que usurparam o poder que só pertence ao povo. Foram e sempre serão os arautos do amor e da solidariedade humana!
Que importa que experiências maravilhosas como a Revolução Soviética não tenham, ao final, conduzido os russos à felicidade utópica da sociedade comunista, da liberdade e da criação do homem novo? Que os Soviets tenham submergidos na burocracia, abandonando os ideais libertários, instituindo uma ditadura em nome de uma classe social que jamais teve poder direto, apenas o teve como representação? Que importa isto diante da pungente mudança instituída pelo povo em armas de 1917, quando o mesmo, sob a liderança de Lênin, assumiu nas próprias mãos o seu próprio destino? Demoramos ainda tanto a perceber que a história é movimento. E assim segue a história da humanidade, pontilhada de espíritos que fazem com que o mundo e a vida, que de outra forma nada mais seria que uma eterna luta animalesca pela exclusiva sobrevivência, ganhe sentido, torne-se, enfim, humana.
A história hoje volta a engravidar-se de novos e pungentes espíritos, que surgem na Europa, nas Américas, no Oriente, na África, nos Estados Unidos e no nosso Brasil. Espíritos que ao se libertarem, buscam as ruas como trincheiras e barricadas de luta, e com ou sem os seus capuzes trazem a alma a pulsar pela liberdade, buscam os direitos sonegados de cidadania e rasgam as túnicas prostituídas de um presente que já ameaça ser passado: medíocre, corrupto e corruptor.
Fiéis ao espírito de revolta de CARLOS MARIGHELLA, condutor e gerador de espíritos livres, os jovens espíritos livres enfrentam com bravura a feroz repressão daqueles que desejam eternizar seus privilégios! Eles prestam em quatro de novembro, dia de seu assassinato, a melhor homenagem que o grande líder desejaria!
Comentários
Risomar Fasanaro
sáb 02nd nov 2013 at 11:20
Carlos Russo, Quando vi a extensão do seu texto pensei: muito longo…será que vou ler até o final? E comecei a leitura…E logo no primeiro parágrafo uma chama se acendeu em meu peito. Pequena, quase nada, mas foi crescendo, crescendo, crescendo…tornou-se verdadeira labareda me incendiando à medida que o texto avançava e eu me inflamava cada vez mais, com as ideias de liberdade. Mais que isso, com as ideias de liberdade escritas com poesia. Sim, seu texto é verdadeira Poesia Um texto contagiante porque verdadeiro, escrito com alma, com o sangue de quem viveu o que nele diz. Fui me emocionando cada vez mais, e me revendo jovem, calças Lee, blusa xadrez, nas inflamadas reuniões do Crusp, nas passeatas saídas da Galeria Metrópole, na avenida Ipiranga, ou na frente do teatro municipal vendo as bandeiras incendiadas. E a emoção já não coube mais no peito, já não consegui conter as lágrimas. Obrigada. Carlos, por me trazer de volta essa injeção de ânimo, de ousadia, de coragem. Mais que nunca precisamos dela. Não, não nos destruíram, a “cobra-de-vidro” renasce em cada ex-aluno, em cada amigo que passou pelas nossas vidas, e se contagiou com nossa sede de liberdade. Forte abraço!