“Os Demônios”, o mais histórico, profético e complexo drama de Dostoievski.

O romance, em que Dostoievski atingiu a totalidade do movimento dramático, teve por inspiração básica o momento histórico e filosófico vivido pela juventude russa nos anos 1870 do século XIX que, partindo de uma crítica romântica da realidade russa e do desejo da construção de uma sociedade igualitária no futuro, chegavam muitas vezes ao niilismo e ao terrorismo político.

Um contemporâneo, o próprio grão-duque e futuro Czar Alexandre III pediu que o autor o esclarecesse sobre a que vinha o livro. Respondeu-lhe Dostoievski:

“A minha tentativa de representar, por meio da arte, um dos mais perigosos males da civilização atual- civilização estranha, sem caráter nem originalidade, mas que, até o presente momento, dirige a vida russa. ”

Os socialistas russos fundiam na realidade o socialismo aos valores cristãos ortodoxos. Tendo por perspectiva um futuro utópico sob a luz da razão e da ciência, dispunham-se ao auto sacrifício na busca da construção de um paraíso terrestre, substituto do cristão, mesmo que fosse necessária a utilização do terror jacobino na forma de ação autoritária, da qual o povo sofrido se beneficiaria num futuro, mesmo que não os compreendessem de imediato.

Tal tipo de autoritarismo e a negação de Deus dariam margem, de acordo com Dostoievski, à destruição. E isso porque os idealistas da revolução estariam partindo de um equívoco básico: o ser humano, falho por natureza, através do racional e da consciência limitada, seria incapaz de promover, sem recorrer “ao sublime religioso”, a salvação sua e de seus semelhantes.

Ao buscar erguer um paraíso na Terra e na tentativa de impor esse paraíso às outras pessoas, Dostoievski aponta o dedo para o “demônio assassino”, que com sua arrogância e seu autoritarismo, conduziria isto sim, à destruição do próximo.

Além deste protótipo de demônio-assassino, o autor ainda aponta outros demônios, aqueles de uma estirpe moderna, seres que sofrem um profundo atordoamento ao não mais encontrarem o divino e nem reconhecerem nas potencialidades humanas princípios capazes de nortear ou aliviar o sofrimento do próprio viver. Ao se situarem no nada, no niilismo, buscam formas de autodestruição que podem chegar tanto ao assassinato quanto ao suicídio.

O caso real que propiciou o foco narrativo foi o assassinato do estudante Ivanov, participante de um núcleo anárquico-socialista. Seu assassinato ocorreu por ordem do niilista Nechaiev, sob a desculpa de possível traição à causa. Na verdade, soube-se depois, Ivanov não reconhecia a autoridade revolucionária de Nechaiev e por isso foi assassinado.

Ora, Nechaiev era discípulo de Bakunin e com ele havia escrito o “Catecismo de um Revolucionário”, obra exemplar de maquiavelismo político, no dizer de Engels.

É importante de se assinalar que após o bárbaro assassinato de Ivanov, Bakunin rompeu politicamente com Nechaiev e realizou uma profunda autocrítica. Na maior parte dos esboços que Dostoievski realizou, o personagem Piotr Verkhovenski, que encarna o “principal demônio assassino”, é simplesmente denominado de Nechaiev.

Ainda outros fatos da vida real serviram de pano de fundo ao autor, como os incêndios correlacionados nos bairros operários ocorridos durante a Comuna de Paris de 1871 e os de São Petersburgo, de 1868. Destes fatos ele extraiu a destruição pelo fogo do bairro operário que, ao final do romance, leva à morte da principal personagem feminina, Liza.

O livro “Os Demônios” foi considerado pela intelectualidade soviética e pelos bolcheviques da Revolução de 1917 de diferentes modos.

De acordo com o intelectual, crítico literário e primeiro Comissário para a Educação, Lunatcharski, o romance juntava-se para compor a obra “do mais atraente escritor russo de todos os tempos”. Lênin, o principal líder bolchevique, por seu lado, considerava-o um romance “repulsivo, porém colossal”, confessando, entretanto, havê-lo lido quatro vezes.

Na era de Stalin, a partir de 1930, juntamente com “Irmãos Karamazov” e “O Idiota”, “Os Demônios” se tornará um livro proibido. Até a década de 1960, os três romances foram considerados leitura “perniciosa” e “não construtiva” para o proletariado russo; especificamente “Os Demônios”, visto como o cúmulo da heresia. Somente por volta de 1970 ele voltaria a ser impresso, circulando livremente após um século ter sido escrito.

Um dos dogmas ocultos de Piotr Verkhovenski, o verdadeiro “demônio”, confessado a Stavroguin, seu mestre inspirador é: “Mas eu não sou socialista, sou, sim, um assassino”. E ele vai além e descortina que num futuro, “essa canalha democrática (os grupos de ação que ele próprio buscava construir!), é um mau sustentáculo: aí se precisa de uma vontade magnífica, vontade de ídolo, despótica, apoiada em algo que não seja ocasional…”

Dostoievski se aventura no tempo e sua profecia encontrará, cinquenta anos após, esse déspota na figura de Stalin!

Os “demônios” são niilistas e esse modo de encarar um mundo que se desfaz termina com que tudo neguem, até mesmo o amor, a amizade, a honra e a verdade. Negando o Deus interior eles falsificam o bem, e creem que somente o mal poderia conduzi-los ao poder político. Iludem as pessoas fazendo-as crer que falam em nome de uma enorme organização política, quando na verdade falam exclusivamente por si próprios e daqueles que eles conseguem, por algum tempo, iludir.

Homens e mulheres rendem-se ao Príncipe Stavroguin, mas este nem honra e nem devolve a dedicação que lhe têm. Esta falta de reciprocidade é enraizada em sua desumanidade essencial, que cria a desordem e o ódio. E o Príncipe, seguido por Verkhovenski, um falso profeta, vai abandonando os apóstolos num patético e sinistro vazio de espírito.

As sessenta horas culminantes de “Os Demônios” iniciam-se na festa de Iulia Lembke, esposa do governador. A “quadrilha literária” que encerra a miserável festa é interrompida pelo fogo no quarteirão que margeia o rio, e que destrói todas as casas de madeira dos operários. A “quadrilha” serve como a figura retórica do niilismo intelectual e da irreverência da alma, nos quais Dostoievski discernia a origem de futuros motins.

O fogo é sempre o arauto de uma insurreição, uma ofensa à normalidade da vida, que buscaria arrasar as velhas cidades para imporem a fundação de uma “nova cidade”, uma Nova Jerusalém. Num clima apocalíptico, o governador Lembke, enlouquecido, corre para o fogo e grita à sua comitiva: “É tudo niilismo! É tudo incêndio!… O fogo não está nos telhados, mas na cabeça das pessoas. ” Esta frase poderia ser o prólogo do romance, pois as ações que Dostoievski descreve são gestos da alma quando ela se encontra em dissolução. E os demônios entram pelas gretas da dissolução social e por mero contágio com os mesmos as chamas se propagam dos cérebros aos telhados das casas!

Se todos os quatro grandes romances do autor possuem em seu âmago um assassinato, aqui ele é múltiplo. Quando as chamas se amainam, Lebiadkin, sua irmã Maria, e uma velha criada estão mortos, pois foram esfaqueados. Tudo indica que o incêndio fora provocado para encobrir crimes, crimes comuns, assassinatos de gente humilde.

E estas chamas que ardem na margem do rio, nos encaminham como um farol para uma janela: a da mansão de Stavroguin! No auge da trama é madrugada e Liza observa o brilho ao longe. Stavroguin está junto dela e seu vestido está amarrotado, alguns botões desabotoados. A noite havia sido desastrosa. Se Dostoievski não é explícito sobre a incompetência sexual de Stavroguin, o impacto da esterilidade da noite é fragrante. Liza, que viera quase publicamente se entregar a ele explode: “É esse Stavroguin, o vampiro Stavroguin, como te chamam?” “Sempre achei que você me levaria a algum lugar em que viveria uma enorme aranha má, do tamanho de uma pessoa e que lá passaríamos toda a vida a olhá-la com medo”.

Piotr Verkhovenski se delicia com o fracasso daquela noite que ele engendrara, trazendo Liza para Stavroguin. Seu sadismo se completa na observação da moça. Mas ele subestimou o “cansaço” de seu deus, pois Stavroguin referindo-se aos operários mortos quando do incêndio, diz à moça: “Eu não os matei, fui contra, mas sabia que eles seriam mortos e não impedi os assassinos”.

Liza é salva das garras de Verkhovenski por um antigo noivo, que a espera nos jardins e ela insiste com que ele a acompanhe à cena do assassinato. Quando eles chegam, a multidão se agita. A moça é identificada e a assassinam.

O narrador comenta que “tudo aconteceu de modo absolutamente acidental… eles estavam bêbados e irresponsáveis. ” Entretanto, a impressão que nos causa é que Lisa buscou a própria morte num ritual de expiação; morre ao lado dos corpos assassinados pela desumanidade de Stavroguin, o homem que a atraíra.

Corre, então, o boato de que Stavroguin abandonara a cidade e seguira para Petersburgo. Horas após, Verkhovenki se encontra com a célula de cinco conspiradores. E ele os convence da necessidade de assassinarem um sexto elemento, Chatov, dizendo que este estaria por entregá-los às autoridades. Quando caminha com Liputin, outro conspirador, este se conscientiza de que “em lugar das muitas centenas de quinhentos seguidores em toda a Rússia, somos o único grupo e não existe rede nenhuma”.

As trinta e seis horas restantes são ocupadas pelo assassinato de Chatov, pelo suicídio de Kirillov, pelo nascimento do filho de Stavroguin com a antiga companheira de Chatov, pelo acesso de loucura de Liamshin e pela desintegração do pretenso grupo revolucionário.

Esse ato final de “Os Demônios” contém uma das maiores realizações estéticas de Dostoievski. O encontro entre Piotr e Kirillov, quando estes discutem o suicídio do último, que deixaria uma carta assumindo todos os crimes do grupo de Piotr Verkhovenski! O episódio da morte de Kirillov ilustra o mecanismo que nos conduz ao efeito trágico. Piotr precisa assegurar-se de que o discípulo realmente cumprirá o prometido de suicidar-se, assumindo todas as responsabilidades. Kirillov, afinal, após dilacerar um dedo de Piotr, se suicida em desespero abjeto, porque não consegue se matar como uma afirmação de sua própria libertação.

Ao final, de todos os cúmplices de Piotr, apenas o jovem Erkel ainda nele acreditava como percursor de uma “nova sociedade”.

Piotr, em companhia de Erkel, chega à estação ferroviária. Dez minutos depois, sem nem ao menos despedir-se de seu “companheiro” fiel, o ”demônio” entra na primeira classe do trem. O trem engata e ganha velocidade. Piotr, o assassino frio em nome de uma nova sociedade, escapa via Petersburgo para o exterior, jogando cartas com outros passageiros.

Muitos buscam na interpretação da obra um alerta contra o socialismo. E ele realmente existe, tanto do ponto de vista do ateísmo quanto do poder! Dostoievski, como um profeta cristão, visualiza muitos dos desvios que o socialismo real viria a apresentar até o seu esfacelamento, na década de 1980.

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