O presidente Trump parece um menino que ficou emburrado após ter sido contrariado por algum acontecimento, e que tem em sua mãe superprotetora a chance de se vingar. Esse acontecimento, poder-se-ia dizer, seria o fato de ter perdido a reeleição em 2020 para Joe Biden. Agora ele voltou com mais poder ainda, sob os braços da grande mãe estadunidense, e resolveu tocar fogo no parquinho! Sob os olhares atentos da parcela mais radical dos seus eleitores, hipnotizados por promessas megalomaníacas como a “MAGA”, Trump parece tentar partir para o tudo ou nada, talvez objetivando tornar-se um futuro ditador no mundo distópico que se aproxima.
Já escrevi anteriormente aqui que, ao que tudo indica, Trump não tem a intenção de deixar o poder facilmente. De fato, nas últimas semanas ele afirmou que pretende encontrar um meio de concorrer à reeleição, apesar da vedação constitucional existente. Hoje, após o “tarifaço” contra o mundo e os protestos contra seu governo em cidades americanas, me parece que a terceira objeção à tentativa de Trump buscar um terceiro mandato é a mais provável. (1)
Nesse contexto, não deixa de ser interessante ver um baluarte da antiga ordem neoliberal-representativa, como Francis Fukuyama, principal teórico do Fim da História, se escandalizar com as medidas protetivas que Trump adotou contra diversos países do globo, uns mais afetados, como o pobre Lesoto na África, o Vietnã, a Malásia etc, que outros, como a rica Inglaterra ou o próprio Brasil, além dos que não foram diretamente afetados como a ditadura russa de Putin e seu país-satélite Belarus.
Será que Fukuyama e seus pares acharam mesmo que o neoliberalismo radical dos últimos 40 anos iria dar em outra coisa?
Em uma entrevista recente, Fukuyama admitiu que o déficit comercial americano, baseado numa política econômica de dólar relativamente fraco em comparação a outras moedas de economias fortes, sempre foi uma estratégia imperial de domínio do dólar como moeda de reserva mundial. (2)
Ora, o escândalo, para Fukuyama, é a mudança do “status quo” dos Estados Unidos de nação liberal-representativa qualificada como única superpotência – embora não mais a principal potência comercial do mundo, posto atualmente ocupado pela China – para nação dominante no cenário global agora sob o controle de um ditador (Trump). É claro que Fukuyama sabe que o mundo não é mais aquele mundo bipolar que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, e ele sabe, também, as consequências, para o bem e para o mal, que advirão de um mundo multipolar.
Contudo, para Fukuyama, ao destruir a ordem neoliberal-representativa que tem regido o planeta nos últimos 40 anos, Trump está acelerando um efeito nefasto do neoliberalismo, a saber, a hiperindividualização dos estados nacionais modernos, quiçá a retomada da regionalização de zonas de influência por potências que ainda não retomaram o alcance militar que possuíam no período das duas grandes guerras, como Rússia e Alemanha, ou mesmo pela China, que caminha com prudência para assumir o controle total do Oriente.
Exsurge das entrelinhas da entrevista de Fukuyama a hipocrisia de que se os Estados Unidos tivessem permanecido como os senhores do mundo, ou seja, se Trump tivesse mantido o “status quo” da potência hegemônica estadunidense, em que pese todo o mal que já causaram e continuam a causar, a ordem neoliberal-representativa conseguiria mitigar o caos político, econômico e social por mais algumas décadas, até que os teóricos da globalização, como ele, pudessem antever uma solução para o “beco sem saída” que ora se apresenta para o capitalismo técnico-financeiro sem fronteiras.
Para o horror de Fukuyama, Paul Krugman, Joseph Stiglitz e outros, Trump é o “outsider” que os pais fundadores americanos temiam tanto, a ponto de decidirem estabelecer os famosos pesos e contrapesos para a política estadunidense. Nesse sentido, para Trump a política só tem sentido se ele for o protagonista, não importando as elites que comandaram o país ao longo dos últimos 250 anos. É por isso que ele tanto se identifica com outros ditadores e deles precisa. Com efeito, desde que o mundo é mundo, nenhuma potência imperial governou, de fato, sem a aquiescência de ditadores regionais. Logo, ele precisa de Putin, Órban, Meloni, Milei etc.
Mas existe um ponto fora da curva que está deixando a criança emburrada de muito mal humor: a China. Esta se recusou terminantemente a ceder às chantagens e ameaças do menino emburrado, de cabelo cor de milho e bronzeado artificial. Pelo contrário, ela tem batido de frente contra a nova oligarquia estadunidense tecnomilitar. O resultado tem sido péssimo para as chamadas “7 magníficas”, especialmente para a Apple, Amazon, Meta e Tesla, que viram suas ações desabarem mais de 10% desde o início do “tarifaço”.
O resultado é que Trump foi pressionado por elas e por parte dos integrantes do seu partido, que já dá sinais de insatisfação com a insanidade do seu “imperador”, e congelou as tarifas de produtos como smartphones, computadores e alguns outros eletrônicos, além de semicondutores, por 90 dias. É um pequeno recuo, como bem frisou a China, mas de um grande significado. Basicamente, este recuo indica que Trump já está ultrapassando a linha que divide a ideologia naziprotecionista defendida por Musk, Bezos, Zuckerberg etc e as ambições deles em termos econômicos de dominação global. Ora, o que os novos candidatos a senhores do mundo pretendem é colocar todos os países aliados de joelhos, como vassalos, e os outros países como escravos. Nunca foi a intenção deles criar uma guerra comercial de tal magnitude que interrompa as cadeias produtivas globais. Não à toa Musk já xingou o Secretário econômico de Trump, Peter Navarro, de “imbecil”.
Infelizmente para Trump, que demonstra arrogância desmedida sempre que vai anunciar alguma medida punitiva, as coisas pioraram essa semana, com a decisão da Universidade de Harvard, primeiro, e depois de algumas outras, a exemplo de MIT, Princeton, John Hopkins e até a Columbia (que no primeiro momento cedeu às pressões), de desafiar as tentativas desse governo de ultradireita de amordaçar um dos principais baluartes da liberal-democracia americana, que são as suas universidades. Conquanto as ameaças sejam realmente sérias, indo de cortes bilionários de verbas até a proibição de matrícula de alunos estrangeiros, parece que as universidades fincaram pé com base na primeira-emenda americana, que protege a liberdade de expressão, religião, imprensa e o direito de reunião, bem assim impede que o Congresso crie leis que limitem esses direitos. Resta ver no que vai dar.
Fato é que Trump, como um menino mimado e sem qualquer lampejo de empatia, bem ao gosto da mãe superprotetora que inculca na cabeça de seu filho, através da linguagem e de atos, que ele é o mais especial entre os mortais, parece dar sinais de impaciência ante os ocorridos desde a sua posse. Se por um lado ele ataca os fundamentos da liberal-democracia, tanto interna como externamente, por outro enfrenta obstáculos que estão incomodando-o nitidamente.
É verdade que muitos países correram para firmar acordo de subserviência. Contudo, Putin não acabou a guerra com a Ucrânia. A ONU já fala abertamente sobre o genocídio de Israel contra a Palestina. A China acabou de vetar a compra de dezenas de aviões do tipo Boeing, como represália, e vetou a transferência das essenciais “terras raras” (componentes químicos para a fabricação de produtos de alta tecnologia). A própria UE já declarou ter um plano de retaliação tarifárica pronto para o caso de Trump voltar a escalar a questão, vencidos os 90 dias que ele concedeu como “benesse” a seus vassalos que não retaliaram. Internamente, milhares de manifestantes se reuniram em cidades dos EUA no sábado, dia 05/04/25, para protestar contra Donald Trump no maior ato de oposição desde que o presidente assumiu o cargo em janeiro último.
É, a vida não será fácil para o protoditador Trump. Mas isso não significa que ele irá desistir. Pelo contrário. Para narcisistas como ele, as objeções à sua vontade serão enfrentadas com mais violência. Se eu estiver certo, e como a própria história demonstra, o castelo do imperador começará a desmoronar primeiro internamente: já estamos vendo desavenças entre as equipes de trabalho dele e a perda de apoio popular, que irá se intensificar assim que as medidas insanas de tarifas impactarem em cheio o bolso dos seus seguidores. Mas a ordem internacional terá um peso bastante importante, também, se conseguir pressioná-lo na esfera econômica e deixar de “beijar a bunda dele” (“kissing my ass”), como ele mesmo se vangloriou.
REFERÊNCIAS:
1 – Ver o meu artigo Homens Sombrios em tempos indecentes;
ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES.*
*André Márcio Neves Soares é doutor em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL/BA.