O Leopardo de Giuseppe Tomasi de Lampedusa, o decadentismo proustiano tardio.

Dois foram os grandes “best sellers” italianos dos últimos 50 anos. Acontece que figurar entre os mais vendidos e ser verdadeira obra de arte, não constitui um desafio qualquer e ambos o são.  “O nome da rosa” de Umberto Eco foi sequenciado em vendas por “O leopardo”, escrito pelo Príncipe de Lampedusa.

A maior editora europeia, a Difel, quando da apresentação dos originais, recusou-o. Por quê? Considerava o tema ultrapassado e a linguagem do livro nada tinha de moderno, era um romance escrito como se fazia no século XIX, num tom decadente e “ultrapassado”, que lembrava, não na construção, mas na temática, Marcel Proust. A mesma recusa também ocorrera com “Em busca do tempo perdido”, nos anos 20.

Somente após a morte do autor, Lampedusa, o livro foi aceito e as primeiras edições  alcançaram 250.000 exemplares. Surpresa geral com um romance do desencanto, decadentista, que retratava na lentidão proustiana o período de 1860 a 1883, escrito que fora entre 1956 e 1957.

Mas as surpresas não se esgotavam por aí. Dele se apropriou a genialidade de um descendente da aristocracia Luchino Visconti, para transformá-lo no roteiro de uma das maiores obras primas cinematográficas, o filme de longa duração “Il gattopardo”.

O escritor, Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa, era neto daquele que viria a ser a essência do personagem central do enredo: o príncipe de Salina, D. Fabrizio.

O livro retrata um período histórico, o da unificação da Itália, desde a realidade e o ponto de vista da aristocracia siciliana.

A Sicília, antes da dominação romana, fora colônia grega, cartaginesa, fenícia. Com a queda do Império Romano, colônia bizantina, moura e normanda. Alcança a independência, mas esta dura pouco. Virão os alemães, os lombardos, espanhóis. De certa forma, a Sicília foi a América da antiguidade e quem a visita nos dias de hoje se surpreende com o tesouro remanescente de todas aquelas colonizações.

A partir de 1738 fará parte do Reino das Duas Sicílias, com a capital em Nápoles, sob o império de um Bourbon. O “despotismo esclarecido” dos Bourbons possibilitará que por dois séculos Nápoles e a Sicília sejam as mecas da intelectualidade de toda a Itália. Também iniciaram uma espécie de reforma agrária que terminou suspensa por pressão do Vaticano, detentor de dois terços das terras produtivas, assim como pela reação ao do medo da Revolução Francesa.

Em meados do século XIX, Francesco Crispi, Mazzini e seus seguidores do Risorgimento promovem na ilha uma revolta por autonomia e república. A agitação popular cresce. Os Bourbons não conseguem impor mais o absolutismo real. Os aristocratas mais esclarecidos sabem que “se quisermos que tudo fique como está é preciso que tudo mude”. Tancredi, o sobrinho do Príncipe de Salina no romance, representa esta camada esperta da aristocracia que se finge de liberal para que seus privilégios se mantenham em algum nível. Estão dispostos a enterrar uma monarquia que se esclerosou por outra, que visa uma Itália unificada, sob o reinado de Vittorio Emanuelle de Savoia.

Giuseppe Garibaldi, o “Vulcano barbudo”, como o denomina D. Fabrizio, o general de Vittorio Emanuelle, ao desembarcar vitoriosamente em Palermo com seus regimentos de camisas vermelhas, é um vitorioso já vencido. A inesperada adesão da aristocracia siciliana à casa de Saboia minava as bases de todo o programa de reformas revolucionárias a que se propunha.

Uma questão histórica que o romance nos responde: teria sido a velha aristocracia siciliana a vencedora? Sim e não. Venceu de certa maneira ao se travestir e se juntar à verdadeira vencedora: a burguesia inculta, exploradora e especuladora. Com a Itália Uma tudo realmente ficará como antes, apenas os ricos mais ricos. Diz D. Fabrizio: “Nós somos o Leopardo, os leões, os que irão nos substituir serão os chacais e as hienas”.

O povo, por seu lado, foi mantido no clientelismo, não ocorreu a reforma agrária, nem a República e jamais obteve direitos democráticos.

A aristocracia aburguesa-se e a burguesia compra títulos de nobreza, como o representa o casamento de Tancredi e Angélica, esta a filha de Sedara, um rico comerciante que se iniciara no roubo à casa de Salina e se faria Deputado no Parlamento. “D. Calogero Sedara, era liberto das mil e uma barreiras que a honestidade impõe à maior parte das pessoas, da decência e da bondade.”

Já o Tancredi da era pós-garibaldina era um inesperado exemplar de jovem aristocrata, tão duro quanto o tio e capaz de trocar com grande vantagem os seus sorrisos e títulos pelas graças e riquezas alheias. Angélica por sua vez, tão pouco amava Tancredi. “Tinha demasiado orgulho e muita ambição para cede àquele aniquilamento provisório da personalidade, sem o qual não existe o amor.”

A estagnação econômica e social, o imobilismo que caracteriza todo um povo, que na visão da elite decadente, deseja ser como sempre o foi, este o pano de fundo para “o Leopardo”. “Batizaram a droga com o nome de morfina, um grosseiro substituto do estoicismo antigo, da resignação cristã”, diz o narrador.

“Todas as manifestações sicilianas são manifestações oníricas: a nossa sensualidade é o desejo de olvido, os tiros e nossas facadas, desejo de morte, a nossa preguiça é desejo de imobilidade voluptuosa, outro modo de desejo de morte. E o passado só nos atrai por já estar morto”. D. Fabrizio, nosso personagem central, é bastante complexo. Intelectual, astrônomo amador reconhecido é o símbolo de um poder que se esvaia, levando consigo um mal estar “que não era de natureza política e deveria ter raízes numa daquelas causas que chamamos irracionais apenas porque estão sepultadas sob as montanhas de ignorância de nós próprios”. Ele responderá negativamente a um convite do novo Rei para que tome assento no Senado: “Na Sicília não importa fazer o mal ou fazer o bem, o pecado que nós sicilianos nunca perdoamos é simplesmente o fazer, pois estamos cansados e vazios”. E conclui: “O requisito essencial para enganar aos outros é enganar-se a si mesmo… Sugiro que procure D. Calogero Sedara”, o homem certo para o papel de político no Reinado de Savoia.

Para D, Fabrizio a consolação de poder atribuir a outros a própria infelicidade sempre foi um filtro enganador dos desesperados e jamais se recusava a buscar o refúgio na prudência que é, “dentre as virtudes cardeais a mais maleável e a mais fácil de se manejar.”

Por ser prudente, mesmo indo contra seus credos, é o verdadeiro incentivador do sobrinho Tancredi quando se alista com os garibaldinos insurgentes, já com a intenção de manter seus privilégios na nova realidade italiana.

Antes de sua morte, D. Fabrizio se postula: “O verdadeiro problema é viver a vida do espírito nos seus momentos mais sublimes, os quais se assemelham à morte.”

Obs.: O filme “Il Gattopardo”, estrelado por Burt Lancaster, Claudia Cardinale, Alain Delon e Mario Girotti (Terence Hill), foi o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, no ano de seu lançamento.

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