O grito da Mãe, anunciando a desertificação da Terra, ecoou há trinta séculos!

O fone estava ligado e o grito que se ouviu era repleto de surpresa e dramatismo, prazer e horror. Grito enorme a percorrer vales e montanhas, céus e mares, até chegar aos ouvidos da Mãe, a quem angustiou. A chamada caíra e a filha desaparecera, mas o grito lhe pertencia, disso a Mãe tinha certeza, seria capaz de distingui-lo dentro um milhão.

Largou todas as urgentes tarefas que executava, deixou que o verão inclemente queimasse as sementes de sua imensa fazenda, afinal, que lhe importavam as fontes puras de água que secavam e as represas a se esvaziarem se sua filha desaparecera? Sem Corina tudo para a Mãe perdia a cor, beleza, era cinza e fumo.

Ela ligou para irmãs e irmãos, todos os amigos, tentou localizar o aparelho celular do qual partira o grito e o máximo que conseguiu foi saber que a última chamada anterior à desconecção partira de um campo longínquo, em terras da bela Taormina siciliana.

Ela tomou a decisão de partir imediatamente para a ilha mediterrânea e, lá chegando, decidiu que pelos campos, cujas praias os beijavam, iniciaria a busca de Corina, filha única linda, embora ainda virgem sexualmente irresistível. Isto a preocupava demais!

Foi conversando aqui e ali que soube que a Mãe descobriu que a filha era muito conhecida por aqueles lados da Sicília; ouviu mais, que ela amava e era amada por todas as moças gentis que com ela se compraziam a correr, colher flores e, mesmo, ofertá-las a jovens que as cobiçavam. Entretanto, uma amiga íntima de Corina, Leucipe confidenciou à Mãe que Corina, embora paquerasse tanto quanto ela, carregava alguma paixão oculta. Leucipe apenas fizera confirmar o que ela, a Mãe, intuía: que Corina ainda mantinha sua virgindade porque desejava um himeneu com alguém mantido em segredo.

Soube mais! O grito que a Mãe ouvira ao telefone também fora ouvido pelas moças de Taormina, tão alto partira! Inclusive outra amiga, Ciana, assegurou à Mãe que Corina, que corria à frente do grupo, desaparecera num repente, como se tivesse sido engolida pela terra ou tragada pelo céu!

A Mãe começou a tecer certas ideias. Mas eram apenas intuições. Fazia noite e ela não queria perder um minuto em suas buscas. De posse de dois archotes revirou o campo de centeio e flores onde Corina desaparecera. Vasculhou que vasculhou dos campos ao quebra mar, até que seus olhos brilhantes encontraram um celular caído. Atirado ao chão, mas inteiro, apenas descarregado! Sua filha não fora levada aos céus ou o aparelho, caindo, estaria em pedaços. Logo, restava apenas uma a alternativa: desaparecera para dentro da terra!

Desde esta descoberta haviam transcorrido nove dias e nove noites. Demeter, ela era a Mãe, negava-se a se banhar, comer, ou beber. Abatida, somente fazia chorar a filha desaparecida e, agora o sabia, engolida pela terra. Apenas caminhava a esmo.

Enquanto isto, a Terra se desertificava!

O pai de Corina era o Grande Rei distante; despreocupado com a filha, enviava-lhe recados sobre recados para que voltasse às suas responsabilidades. Nas fazendas, o calor devastava os campos, a água acabava, a colheita estava totalmente comprometida, o gado sem grama já não era mais que peles sobre ossos, e os homens principiavam a morrer de fome. Enfim, cobrava-lhe sem poder impor, responsabilidades.

Foi então, em uma de suas andanças, que Demeter encontrou uma comadre que dizia ter certos tipos de visões em sonhos. Ela era muito estranha, aliás, corria um boato de que fosse meio bruxa, e entre mortais seu nome Hécate, quando pronunciado, causava certo arrepio. E o que ela disse à Mãe foi que, enquanto sonhava, ouvira o grito de Corina, e a vira sendo agarrada por um raptor, homem forte, mas que os seios da moça lhe acobertavam a face, impedindo-a de reconhecê-lo. Disse mais, que Corina gritara primeiro de susto, mas quando se dera conta de quem a raptara, consentira.

A Mãe quer saber mais e Hécate segredou-lhe que seu sobrinho, aquele de nome Hélio, um curioso que a tudo via, deixara seus rebanhos de nuvens e caminhava com seus corcéis pelos céus naquela tarde de sol e que, seguramente, saberia identificar o autor do estranho rapto.

Agora Demeter tinha certeza de que a filha fora raptada e levada para alguma gruta ou para até mesmo, para as profundezas da terra! Procurou por Hélio que não se fez de rogado. O raptor era, nem mais e nem menos um tio, Hades, um tipo de ares estranhos, soturnos, pouco dado a aventuras amorosas, mas que deveria ter-se apaixonado pela sobrinha.

Ora, Hades era era o irmão mais moço do pai Zeus, com quem Deméter tivera sua filha, Corina.

A Mãe voou assim que soube para o palácio real de Zeus onde exigiu que a filha lhe fosse devolvida. E tão pouco se importava com a perda da virgindade da filha, que este preconceito fosse às favas! Queria a filha e pronto!

Que ela voltasse a caminhar pelos campos com sua alegria e estes, então, voltariam a florir. Ela, por seu lado, voltaria a cuidar da tal Natureza!

Não havia alternativa! Ou Corina voltava, ou a era da total destruição da imensa fazenda e dos homens criados por Zeus, a quem tantas louvações faziam, seria um total deserto, tudo morreria!

Que premunição possuía Demeter do aquecimento global, quase trinta séculos após! Afinal, Mãe é assim mesmo!

A vista disso, o Pai Zeus chamou, então, aos seus aposentos, seu irmão mais novo. Era uma relação incestuosa a do tio com a sobrinha, mas o que se poderia fazer? Os costumes evoluíam tanto ultimamente…

Hades lhe fez ver isto, afinal, se Zeus, o irmão mais velho, tinha se apegado a um garoto, um tal de Ganimedes e o levado da fazenda para o Olimpo? E disse-lhe: “Quando a deusa do amor nos toca, rendemo-nos, sim, ou não?”

O Pai compreendeu o irmão, a responsabilidade final cabia a Afrodite, a invencível. Mas precisavam entrar em um acordo, pois a Mãe da moça ameaçava colocar fogo no mundo! E Zeus confidenciou ao irmão: “Parece que ela se confunde com a filha, não sabe viver separada, um horror!”

Mas o irmão também sabia que Hades jamais largara aquilo em que um dia pusera a mão, aliás, em todos os tempos, ninguém se recordava de que isto houvesse um dia acontecido. Também nunca se apaixonara, logo, a coisa agora era séria!

E para que o irmão soubesse, ele já cingira a sobrinha com os aparatos do matrimônio, e ela provara os grãos e os poderes da romã. Para falar a verdade, após a surpresa do rapto, Corina estava muito feliz, rainha de seu reino.

Disse também que reconhecia que Corina e a Mãe tinham uma relação muito forte, que a cada quatro palavras ditas, três eram sobre a mesma. A quarta sobre o amor conjugal!

Esse ponto fez o Pai gritar “Eureka”, um percursor de Archimedes: “Achei”!

E todo Olimpo despertou com o estrondo de sua fala grossa!

“Pois Corina ficará no teu reino durante o inverno, bem guardadinha nas tuas carícias e na primavera, verão e outono, estará com a Mãe, semeando, cuidando das flores, dos campos e participando das colheitas”.

E estamos acordados, disse Zeus. Ainda não totalmente, retrucou o tio. Corina só será jovem enquanto permanecer com a Mãe. No meu reino, o das sombras, ela será Perséfone, a rainha que utiliza perfumes, cosméticos e tinturas para se disfarçar, assim como Máscaras, muitas Máscaras, para se apresentar aos homens na hora da morte de cada um deles!

Logo, a Mãe precisa saber que Corina será e não será a mesma, pois o uso de Máscaras modifica tanto pessoas quanto deuses! Assim falou Hades e partiu para seu próprio reino.

A Mãe, avisada do acordo, vibrou de felicidades. Sua filha, Corina, seria uma e muitas, compartiriam o mistério de serem duas e tantas! Além disso, estaria a seu lado por três quartos da vida.

Com o retorno de Demeter aos campo, toda a Terra voltou a cobrir-se de verde, as águas brotaram das fontes, as represas se encheram e os homens voltaram a plantar, colher, comer e a cantar. Era a Vida que tornava a se impor!

E a premunição de Demeter, quanto ao aquecimento global e a desertificação da Terra, tardaria ainda trinta séculos para se consumar! E ela voltaria a berrar! Afinal, Mãe é assim mesmo!

Extraído de “Contos de Máscaras”, de autoria de Carlos Russo Jr.

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