MEMÓRIAS DE UM SUBVERSIVO – uma novela em episódios

Uma elucidação necessária

As memórias que serão publicadas neste Espaço Literário a partir de hoje e, desde então, semanalmente, não constituem de modo algum reminiscências vividas pelo escritor, mas sim, memórias de um jovem extraordinário a quem me dediquei a escrever a biografia. Como veremos, os episódios reportados referem-se, quase na sua totalidade aos anos 60, 70 e 80 do século passado, uma época em o sol punha-se tão cedo nesses trópicos e a noite sem luar era tão impenetrável que até mesmo era quase impossível, apesar de absolutamente necessário, “falar-se de amor e flores”. Tempo aquele de sombras e crenças fortes, ideias definitivas, doação integral, violências, um tempo sem paz, aliás nisso diferindo muito pouco de toda a história dessa velha humanidade.

Mas, que foram tempos dos mais intensos e apaixonados, que exigiam dos que se incorformavam o arrebatamento total, ah, lá isso o foram; onde a pureza e a ingenuidade seguiam às vezes pela mesma senda da imprevidência, principalmente quando o engajamente ocorria na mais tenra juventude, ah, se foram…

Nosso jovem, cujo nome de batismo é Pedro Alexandrino, apesar que às vezes eu esbarre na tentação de denominá-lo meu herói, nada possuia de realmente extraordinário. Ele não era em nada grande, apenas um jovem revoltado, no tempo que lhe foi dado para viver, agir e sonhar. Algum leitor poderá perguntar-me por que, dentre tantos jovens que resistiram ao arbítrio, que também foram submetidos à tortura, à prisão e ao exílio, e se comportaram ainda com maior dose de dedicação, autruísmo que meu personagem, eu tenha escolhido justamente Pedro Alexandrino para relatar episódios de sua vida. Esta pergunta é bastante embaraçosa e tudo o que eu posso responder, por enquanto, é que o leitor descubra o porquê por si mesmo, no decorrer de meu narrar.

É verdade que Alexandrino age muitas vezes de uma maneira estranha, obstinada, sem um objetivo muito claro. Mas não seria demais exigir muita coerência daqueles que queriam construir um novo mundo recém saídos da adolescência e em meio a uma luta de vida ou morte, onde a maldade e o peso de facínoras disfarçados em militares e policiais esperavam apenas o momento propício para os exterminarem? Que tempos foram aqueles em que viveu meu herói! Sou, no entanto, obrigado a concordar que Alexandrino, vistos com os olhos de hoje em dia, deva parecer mais que estranho, original quem sabe, um tipo de pessoa saído de almanaque, desprovido até mesmo de carne e osso, pois para ele o consumismo, o dinheiro, a posição social, o patrimônio pessoal, possuiam muito pouco valor! Aliás, o bem estar de um lar, a tranquilidade, a harmonia e o repouso de estar entre familiares e amigos, tudo isso pouco contava para ele. Afinal, acreditava-se um soldado do bem, como um antigo cruzado, em guerra de vida ou morte contra as forças do mal. E, de certa forma, apesar de maniqueísta, não constituia esta uma inverdade absoluta. E por isso mesmo Pedro Alexandrino, como seus companheiros, eram originais, seres diferentes do comum dos jovens, tanto daqueles de ontem como os da grande maioria de hoje em dia.

De todo modo, a necessária elucidação a que me propus está feita. Mas resta ainda um lembrete para o leitor. Isto não é um livro e tão pouco ele pagou por tal, o que me deixa, como escritor e biógrafo, absolutamente livre na organização da temática. Por inserir-se num Espaço Literário os episódios que serão relatados não possuirão ordenação cronológica, pois dela me desobrigo desde já e a comunico ao atento leitor. Diversos momentos na vida de Pedro Alexandrino serão contados e postados semanalmente neste blog e a única ligação que unirá cada episódio serão os períodos nos quais eles ocorreram.

Teremos, então, os eventos do período que denominaremos de “Militância Indômita”, que percorrerão os anos de 65 a 69; “Entre- Grades”, o período de 70 a 74 e, finalmente, “Sobrevivendo de Sombras”, que serão os anos 75 a 80. O primeiro episódio a ser narrado, como se de propósito fosse, ocorrerá no último período da biografia do nosso homem.

“Sobrevivendo de Sombras”

Episódio 1. O compadre da Polícia Federal

Lá pelos meados de 1975, acontece com Pedro Alexandrino o fenômeno de tornar-se pai. Cabe a mim, como seu biógrafo, realizar um breve relato dos fatos que antecederam evento tão natural e ao mesmo tempo tão inusitado, bem como realizar uma breve descrição das circunstâncias em que o episódio se passou.

Nosso herói, após longo período nas prisões brasileiras, havia se exilado na Argentina e lá conhecera uma outra subversiva, de nome Beatriz, tão solitária e carente como ele próprio. Dessa relação, resultou uma gravidez inesperada e o bebê que abriu alas neste mundo nasceu forte e saudável, decidido a sobreviver.

A Argentina vivia seus últimos dias de democracia. Uma democracia decadente, corroída pela corrupção, pela brutalidade dos asseclas que rodeavam a presidenta-viúva de Peron, assolada pelos militares famintos de sangue, por alas da igreja reacionária a pregar um golpe militar, latifundiários e anti-democratas em geral, prontos a eliminar a ferro e fogo as organizações populares e de luta. Ora, na vanguarda da repressão, sobressaia-se justamente a Polícia Federal e “las tripes A”, uma organização para-militar que apreendera a agir com os Esquadrões da Morte tupiniquins. Mas basta por aqui, pois não queremos recontar uma história por nós conhecida, pois o que desejamos fazer é relatar um episódio que ocorreu com nosso personagem, que levava no país vizinho, uma vida de semi-clandestinidade.

Beatriz foi internada em um hospital que já não mais existe, o Sanatório G., na tão extensa “calle Cordoba”. Ela repartia o quarto com uma moça argentina, um pouco mais velha, de nome Mercedez, que também estava para dar à luz. Por coincidência da redes tecidas pelas Parcas, os bebês nascem um logo após o outro. O de Alexandrino é um varão forte, de olhos verdes, e o de Gimenez, pois assim se chamava o marido de Mercedez, uma menina, para sermos justos, mirradinha e não muito bonita.

Inevitavelmente estabeceu-se uma relação de cordialidade e para dizer a verdade, o casal de argentinos era muito simpático e por demais falante. E também muito curiosos, o que conduzia nossos amigos exilados a permanecerem com o sinal de alerta permanentemente ligado. Afinal, naqueles tempos negros, a semi-clandestinidade impunha a discrição e a dissimulação como regras básicas de sobrevivência.

Pois bem, chegamos ao terceiro dia após o parto e Gimenez convida nosso amigo para juntos irem até o Cartório registrarem as crianças e lá se vão os dois a conversar sobre o tempo, o futuro dos bebês, e outras mais conversas de se jogar fora. Descobrem, inclusive, serem praticamente vizinhos, moradores do bairro de Caseros e Gimenez já, então, chama nosso amigo de compadre e quem sabe no futuro até “sus hijos poderian compor un matrimonio”.

Em frente aos escrivãos, sentam-se lado a lado. Após as descrições de praxe, vem a qualificação dos pais. Quem primeiro fala é Pedro Alexandrino que se declara representante comercial ( ele que nada representava exceto a sua vontade revolucionária); em seguida Guimenez: Polícia Federal, investigador! Nosso amigo sentiu um arrepio percorrer-lhe toda a coluna cervical; afinal, dera no hospital e consequentemente no cartório seu nome e endereço real. O sinal de perigo era enorme…

Nome das crianças pedem-lhes os escrivãos. Pedro sede a vez ao “compadre”. Ele diz: Maria del Rosário, “en homenage a la sancta”. Pedro e Beatriz haviam planejado dar ao garoto o nome de Ernesto Fidel. Mas imediatamente ele mudou de ideia e disse: “José Pedro”, e virando-se para o argentino lhe confessa: “José como el Padre del Niño y Pedro para el hombre de las llaves que nos abriran las puertas de los cielos, a nosotros, los buenos”.

E assim, foi graças ao “compadre”, que aquele que deveria chamar-se Ernesto Fidel, por toda a vida ostentará o nome bíblico de José Pedro.

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