Memórias de um Subversivo (oitavo episódio)

“Entre- Grades” A tortura: torturados e torturadores (terceira parte)

“O comportamento sob tortura”

Como biógrafo de Pedro Alexandrino devo confessar a grande dificuldade que tivemos para conversar sobre o presente episódio. Isso porque a compreensão de como os revolucionários, seus simpatizantes ou pessoas que se opunham à ditadura comportaram-se, quando submetidos à tortura é complexa, multifatorial e admite diferentes interpretações, necessitando ser analisada com ponderação, mesmo após todo o bálsamo trazido pelo tempo transcorrido.

Alexandrino insiste em dizer que os casos de agentes da repressão que se infiltravam com o objetivo de delatar e conduzir os militantes revolucionários à tortura e à morte foram pontuais. Houve Malavasis, possivelmente Cabos Anselmos ( teria sido ele, desde o princípio, um infiltrado? ou fora, posteriormente, transformado em um “cachorro” e emplacado no canil do facínora Fleury?) mas, com exceção desse último, o desbaratamento das organizações e a prisão ou morte da grande maioria da militância de esquerda não proveio de agentes ou de “infiltrações da CIA”, reais ou fantasiosas.

Outras foram as causas, dentre elas, uma das mais fortes, a falta de prepraração real para o enfrentamento da esquerda com o peso da organização armada do Estado. A maior parte dos militantes possuia uma formação essencialmente política, na acepção mais estrita do próprio termo“polis”: cidade, cidadão, relações pessoais, relações estudantis ou profissionais, conhecimentos mútuos, amizades, liberalismo pessoal. Seu contraponto, a formação militar, era restrita a uma minoria de combatentes. Entenda-se por formação militar não apenas o treinamento no uso de armas e de combate, mas também o senso da disciplina, do saber obedecer e ser obedecido, do culto rígido a regras de segurança, da percepção do que seja “inteligência militar”.

Ao liberalismo aliou-se a fraqueza humana dos combatentes, e mesmo a tenra idade de boa parcela dos mesmos, que, uma vez presos com vida, quando esmagados pela máquina do Estado voltada para a tortura, forneciam informações que levavam a novas prisões e quedas nas organizações. É necessário que se consigne que nem todos os presos políticos eram submetidos à mesma intensidade de tortura, aos mesmos métodos. O período de tempo, a frequência com que o revolucionário era torturado, muitas vezes, tornava-se o fator decisivo de sua desestruturação, de sua perda de crença no ideal que pautara a sua ação, mesmo que essa perda tenha sido passageira. Muitos elementos interferiam nesse processo: qual a quantidade e de que qualidade eram as informações que a repressão possuía quando de sua prisão; o material que havia sido apreendido com o próprio; a sua resistência ou não à prisão; o fato de outras pessoas, envolvidas no mesmo processo estarem ao mesmo tempo sob interrogatório, com as decorrentes contradições nas “histórias contadas” e que demandavam mais e mais suplícios.

Já a resistência à tortura é sempre algo imprevisível e extremamente individual. De todas as formas, uns resistiam mais e outros menos a ela. Alexandrino diz que existiam, sem dúvida, naturezas mais fortes, determinadas, capazes de suportar um tempo maior de martírio. O fator que na época dizia-se ser o divisor de águas, “a firmeza ideológica”, inseria-se muito nessas personalidades de per si mais fortes, talvez mais preparadas para o ferro duro do pau-de-arara, sem que em sua alma se apagasse a luz condutora da “crença numa vitória final”.

Nosso biografato também nos revelou com toda franqueza: “Os companheiros com grande envolvimento em ações armadas ou com extensa atividade e liderança política conhecidas pelos repressores, quando pegos com vida, e barbaramente torturados por tempo prolongado, e que não forneceram qualquer tipo relevante de informação ao inimigo, constituem heroicos e luminares exemplos, dignos de um Mário Alves. Somente a morte mais ou menos rápida, sob a tortura mais insana, protegeu, como uma “bênção”, grandes corações e mentes”.

Por outro lado, a transformação de um torturado em um colaborador da repressão ocorria em um processo crescente de fragilização perante a dor, de desestruturação total de uma personalidade, em que o massacre físico e psicológico conseguia destruir o homem livre, transfigurando-o num escravo.

A “mudança de lado” de alguém que traiu a causa que um dia abraçara, assim como os companheiros com quem lutara, para ser considerada como tal, precisa ter ocorrido de forma voluntária e consciente. Lá pelos idos de 1970, quando as organizações da esquerda armada já haviam sofrido enormes baixas, alguns militantes presos sob o medo da morte ou da dor, ou de ambas, sofreram essa degradação total, traíram a tudo e a todos, e passaram a cooperar com os órgãos repressivos, sendo pelos próprios agentes denomidados de “seus cachorros”. O “coronel Ney”, do Doi-Codi, chegava a gabar-se da capacidade de “faro” de seu “canil”. Esses bastardos ganhavam a liberdade para voltarem a estabelecer contatos com as organizações às quais haviam pertencido.

E sempre que um “cachorro” mordia algum revolucionário esse estava inevitavelmente condenado à morte, normalmente sob tortura. É por esse motivo que poucos desses “transformers” tornaram-se conhecidos; passados já quarenta anos, em sua maioria, suas identidades ainda permanecem na obscuridade. A prisão e morte de Câmara Ferreira deve-se ao “faro de um cachorro traidor”, que fora preso no Estado do Pará. Ao “mudar de lado” a repressão passou à imprensa nota reportando sua “fuga” da prisão, em pura simulação e o “cão” veio para São Paulo, rodou, rodou, até identificar Câmara numa rua e, então, agendou com ele um novo encontro, quando daria a “mordida da morte”. O “liberalismo ” e a dificuldade em crer que aquele companheiro que estivera em Cuba, sempre elogiado pela dedicação à causa, pudesse ter-se transformado em traidor, impediu o comandante de precaver-se, ainda que alertado sobre a possível armadilha por outros companheiros, e foi ao encontro da própria morte.

Mas essa já é uma outra história.

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