Memórias de um Subversivo (décimo primeiro episódio)

“Entre- Grades”

“Greve de fome e uma visita inesperada”

A noite do julgamento de Pedro Alexandrino foi longa, muito longa. Ele sabia que os gritos de “Pátria ou Morte”, eram uma espécie de dissonância, um grito de desafio que partira apenas de algumas gargantas dentre os presos que cantaram a “Internacional”. Acontece que, embora a repressão não o soubesse, parcela daquele grupo de condenados que deixava a Auditoria de Guerra decidira entrar em greve de fome na madrugada seguinte e deles partira o desafio mais frontal.

O comboio chegou por volta das vinte e três horas ao Presídio Tiradentes e cada sentenciado foi conduzido à sua cela.

Alexandrino faz questão que, como seu biógrafo, eu assinale que existe já excelente publicação a respeito dos motivos, do desenvolvimento e dos desdobramentos da greve de fome. A greve teve dois períodos de duração, sendo o primeiro de 6 dias, levado a cabo por 57 presos políticos e um segundo, por um grupo mais reduzido de 32 presos, que teve a duração de 33 dias, com um interregno de aproximadamente vinte dias. Esses presos realizaram uma greve de fome com objetivos políticos com duração de 39 dias, a de maior duração já realizada no Brasil.

Ateremo-nos extritamente às sensações, aos pensamentos e a estranhos fatos que se passaram com nosso biografado durante esse período de namoro com a morte, ou como Alexandrino prefere a ele se referir, como o de um “reatamento com a vida”.

Mas voltemos aquele fim de noite do dia 11. As celas do presídio eram coletivas e Alexandrino compartilhava a sua com pelo menos vinte companheiros, dos quais somente seis decidiram participar da greve de fome e, que, portanto, permaneciam despertos à hora da chegada do grupo que fora julgado naquela mesma noite. Aqueles que chegavam queriam ter sua última “refeição” antes da batalha por vir. Alexandrino, por seu lado, contentou-se com um naco bastante grande de bacon, que seria sua exclusiva fonte de energia por um bom tempo. E deixou-se ficar lentamente comendo enquanto seus camaradas recolhiam-se para seus catres e o silêncio instalou-se na penumbra.

Foi quando aconteceu-lhe um fato inexplicável pela primeira vez. Um golpe de frio cortante, como se ele estivesse sentado em um ambiente aquecido e, de repente, alguém abrisse uma janela que deixasse entrar uma temperatura gélida do exterior. Mas o frio não vinha de suas costas que davam para as janelas gradeadas, senão que o atacava de frente. Alexandrino tira os olhos de seu naco de bacon e examina de alto a baixo a cela onde se instalara uma quietude absoluta. Vê que uma pessoa semelhante a um de seus companheiros de presídio, que não vivia em sua cela e que nem participaria da greve de fome, instalara-se ao pé de seu beliche.

– “Não me convida a comer de seu toicinho? Parece que está passando frio, por que não pega uma coberta?”, diz ele dirigindo-se a Alexandrino, que tremia dos pés à cabeça.

-“Antes de mais nada, queria saber como você saiu da sua cela e de que forma entrou aqui?”

-“Você não me parece muito contente em receber uma visita inesperada como a minha, não é? Mas eu vim aqui conversar sobre o nosso negócio que está em pleno andamento.” Alexandrino sentia que a cada vez que aquela criatura falava, um sopro gélido partia de sua boca, cortante, que o deixava desprotegido apesar do cobertor com que tentava se cobrir. E o visitante inusitado prosseguiu: “ Sei que você teve um dia atabalhoado, afinal, ser julgado e condenado a muitos anos de cana, não é menu que se coma todos os dias. E agora essa greve de fome que vocês inventaram…”

– “Devo estar febril, doente, por isso sinto tanto frio. Tive um dia pesado e estou entrando em uma greve em que posso até mesmo morrer. Você é fruto de minha imaginação, não existe e, quer saber de uma coisa? Vou me deitar e basta! Tome o resto do toicinho e bom proveito”.

– “Ora, oferecendo-me o pedaço do pobre porco você me reverencia, reconhece-me como um ser que não faz parte da sua imaginação. Você não está doente coisa alguma! Deixe de ser preconceituoso e aceite o testemunho dos seus sentidos. Você me vê, escuta, sente frio, pode até me tocar se quiser, mas não tente cheirar algum tipo de enxofre pois isso é coisa antiga, ultrapassada. Talvez eu até mesmo seja parte de você, mas eu existo, como pode comprovar. Quanto ao toicinho, agradeço-lhe, mas não me alimento de porco”.

– “Escute-me, vá embora para eu descansar um pouco, ou vou ter que lhe expulsar?”

-“Então você está reconhecendo a minha existência independente de você? Estamos realmente avançando! Mas vamos ao que motivou a minha visita. O que você espera com a greve de fome? ”

– “Ah, peguei-o! Você só veio aqui para tentar convencer-me a não participar da greve de fome, é isso? Perdeu seu tempo, a decisão está tomada. Trata-se de evitar que nos separem, que nos dividam, que retornem os companheiros que foram mandados para a Penitenciária do Estado, mas você sabe disso perfeitamente ou não estaria aqui.”

– “Eu não sei de nada disso. Dos quase duzentos presos políticos, quantos entrarão em greve? Você sabe, uns cincoenta, se tanto. E quantos a levarão até o final? Talvez metade? Isso não significa a divisão, da divisão, da divisão? E o que os milicos farão? Enviarão vocês por lotes e a cada divisão um lote, e a cada lote, um local. Facilitarão a separação entre os “recuperáveis”e os ïrrecuperáveis”. E antes que me xingue, estou usando a terminologia de seus inimigos, veja bem.

-“Eu já ouvi isso em tantos bilhetes e em tantas discussões… Você só está repetindo o que os outros disseram. Se nós não reagirmos, não conseguiremos barrar o avanço do facismo”.

– “Ah, então estamos melhorando…chegamos ao avanço do facismo. E o que mais? Não haveria um certo grau de dor de consciência nisso tudo? Tantos mortos nas organizações, tantos presos, quanta gente foi humilhada, torturada, que falou mais do que deveria…”

– “Você realmente é um ser repugnante, já não lhe suporto mais, mas não posso negar que possua alguma razão. Nós, os que partimos para a greve, ainda nos consideramos combatentes. Fomos presos, trucidados, humilhados mas não desanimamos da luta contra a ditadura”.

– “Os outros a abandonaram, então?”

-“Quem é você para julgar? Você cada vez mais me parece um ser nojento, abjeto, provavelmente a pior parte de mim mesmo. Mas saiba que ninguém é obrigado a ter a mesma opinião de ninguém, a seguir o mesmo caminho político. Esse caminho nós, que entraremos em greve, achamos que seja o da dignidade, de exigir os nossos direitos como presos políticos e de evitar que os militares nos aniquilem.”

-“Interessante modo de evitar a morte, ir ao encontro dela, não é mesmo? Pois eu vou dizer o que leva vocês até a greve de fome: as organizações de vocês, principalmente aquelas da luta armada, estão sendo destruídas. A greve é para que vocês não se sintam duplamente derrotados: estarem presos e não poderem lutar de fato e o aniquilamento de seus camaradas que acontece lá fora. Vocês desejam criar um fato político, é isto, não é? Conteste-me, agora!”

Nesse momento, Alexandrino já não suporta a presença do intruso e atira-lhe na face o pedaço de toicinho. Ao mesmo tempo, ouve que batem na cela anunciando o serviço do café da manhã. Ele levanta-se e comunica ao carcereiro o início da greve de fome. Quando nosso biografado retorna, já não encontra o seu visitante e vê que o pedaço de bacon, que começa a derreter, escorre a gordura por seus dedos. Continua em sua mão.

Agora é ajudar os companheiros a colocar toda a comida da cela para o corredor com o pedido para que seja encaminhada a instituições de caridade.

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