Maiakovski e Meyerhold, o poeta e o teatrólogo geniais.

Vladimir Maiakovski, em sua curta existência, foi um dos maiores poeta do século XX. Revolucionou a poesia libertando-a do quadro estreito das antigas convenções. Foi ele também quem introduziu nos poemas a linguagem dos homens comuns, o palavreado corrente sem que seus versos se banalizassem. A técnica inovadora do verso em escada libera a fala poética e permite-lhe se apossar do discurso político, o ideal que clama por um futuro. E, como se isso tudo não bastasse, Maiakoviski ainda alargou o lirismo, o amor individual, abarcando a condição humana.

Foi em vida um poeta modernista reconhecido em todo o mundo como símbolo do novo; realizou cursos, palestras e participou de encontros nos USA, no México, em Cuba e em diversos países da Europa.

Já como revolucionário, ele tinha para si que a Revolução de 1917 não deveria deter-se na tomada do poder político e na coletivização dos meios de produção. Ou ela permitiria a transformação da vida cotidiana, de toda a vida, do amor entre os homens e das artes, ou não mereceria o nome de revolução.

Péssimo aluno no curso ginasial desenvolvera precocemente paixão pela filosofia. Punido por distração em sala de aula, encontraram abaixo de sua carteira o livro que ele realmente lia durante as falas do professor: “Anti-Duhring”, de F. Engels.

Aos 15 anos aderiu ao Partido Social Democrata, sendo um mês após, preso numa manifestação de rua. Solto, a Okhrana czarista o colocaria novamente atrás das grades aos 16. Em sua autobiografia “Eu mesmo” ele credita o tempo atrás das grades ao conhecimento adquirido em Byron, Shakespeare e Tolstoi, assim como nas obras simbolistas de Bièle, devoradas na prisão.

Após onze meses é solto. Seu primeiro desejo artístico era a pintura. Somente em 1912 conhece o futurista e cubista David Burluik e este o convence sobre a qualidade dos versos que fazia. Os dois comporão o núcleo central dos futuristas russos, um movimento rival aos acmeístas e aos simbolistas. Os versos desta primeira etapa de Maiakoviski são muito próximos do expressionismo alemão, graças o gosto pela distorção, violência das metáforas e lirismo extremado. O poema “Estrela”, 1913:

“Escutai, pois! Se as estrelas se acendem

É porque alguém precisa delas.

É porque, em verdade, é indispensável,

Que sobre todos os tetos, cada noite,

Uma única estrela, pelo menos, se alumie”.

Em 1915, o jovem conhecerá a poetiza Elza Triolet, que por ele se apaixona. Convida-o a conhecer a família e, coisas da vida, Maikoviski terminará se apaixonando pela irmã  da anfitriã, Lila, casada com o amigo de longa data, Ossip Brik. Dedica a Lila o magnífico poema de horror à guerra de 1914, que ceifava vidas, “A flauta-vértebra”:

“Homens,

Escutai!

Saí das trincheiras!…

Alemães queridos! Eu o sei,

Tendes sob o lábio

A Gretchen de Goethe.”

O relacionamento a três, tendo Lila como figura central, durará quinze anos. O poeta queria revolucionar o amor e as relações homem- mulher e era, a contragosto de muitos revolucionários, um inimigo jurado da supremacia machista.

Quando rompe a Revolução de 17, os futuristas em bloco a apoiam e dela participam. Maiakoviski é eleito presidente do soviete do Automóvel Clube de Petrogrado. Trabalha na revista “A arte da comuna”, dirigida pelo Comissário Lunatcharski. Com o apoio do mesmo defendeu com todas as forças os futuristas dos ataques provenientes dos defensores da “arte proletária”, que os detratavam como sendo um grupo pequeno-burguês.

Encabeçou a revista “Frente de esquerda da arte”, onde os futuristas se juntaram à corrente artística do formalismo, e ambos os movimentos se agruparam no Construtivismo, a arte comprometida com a edificação de uma nova sociedade.

É fundamental, nos anos de guerra civil responder ao “comando social”. O Construtivismo se põe a serviço da propaganda e até mesmo da publicidade da sociedade socialista. A construção do novo passa por poemas, por cartazes, pela pintura em vagões de trens. Dirige-se com o poema “À esquerda” aos marinheiros russos:

“Avante, pois, meu povo, e já que o pegaste,

Estrangule teu carrasco!

A trombeta dos bravos já soou o alarme.

Nossos estandartes aos milhares avermelham os céus.

Só a rota dos traidores conduz à direita.

À esquerda, à esquerda, à esquerda!”

Mas somente a luta guerreira contra as hordas brancas invasoras não basta! Ao lado da luta de vida ou morte, é urgente a construção do socialismo, do homem novo! Surge o poema “Dedicatória”:

“Homens,

Amados e não amados,

Conhecidos e desconhecidos,

Desfilai por este pórtico num vasto cortejo!

O homem livre- de que vos falo-

Virá,

Acreditai, acreditai-me”.

Quando a situação finalmente se estabiliza, os Construtivistas criam, em 1922, a Academia de Belas Artes e inventam aquilo que no futuro seria denominado de “design gráfico”. Acontece que para Maiakovski a arte aplicada nunca significa o “rebaixar de um artista”, mas sim o mudar a vida, combater os costumes pequeno-burgueses e servis que não desparecem milagrosamente com a revolução. Ele se envolve em campanhas publicitárias contra o tifo, pelo tratamento das águas, por encanamento de esgotos, pela higiene corporal.

“Voemos poeta,

À altura das águias,

Cantemos para espantar as trevas do mundo”.

Seis anos após a Revolução, em 1924, o primeiro Estado Socialista está de luto. Morre prematuramente Lênin. Maiakovski, em 1925, dedica-lhe um enorme poema épico, um livro contendo quase 200 páginas:

“Tenho medo desses versos.

Como um menino, temo a falsidade.

Sobre a tua cabeça formarem uma auréola,

Temo que ocultem a sábia, humana e autêntica,

A imensa fronte de Lênin.

Receio que as procissões, os mausoléus,

A admiração, os estatutos e as regras

Possam afogar numa doce unção

A simplicidade de Lênin…”

Tornara-se há alguns anos, um crítico acerbo da NEP, a nova política econômica leninista que permitia a reconstrução de uma classe média, e, nesse sentido, apoiou, por volta de 1926, o princípio da coletivização forçada e os planos quinquenais de Stalin.

Gradualmente, entretanto, o poeta começa a envolver-se numa batalha contra o burocratismo e a ascensão dos oportunistas no poder soviético. Embora Maiakoviski estivesse desde sempre engajado de corpo e alma na revolução, não é um seguidor de normas e palavras de ordens, e por isso se baterá dentro da mesma para revolucioná-la. Em seu poema “Quinta Internacional”, de 1926, ele diz claramente que a revolução do espírito ainda não se iniciara:

“Regressai à casa, pensamentos.

Desposai-vos,

Abismos de alma e de mar.

Aqueles, que tudo hoje veem como belo e bom, são,

Ao meu ver,

Simplesmente uns tolos”.

Acontece que Maiakoviski, como tantos intelectuais russos, leva a sério o projeto espiritual do comunismo, aquele da transformação do homem por si mesmo. Ele faz parte do coração da crítica de esquerda dentro de todo um processo muito complexo em um país industrialmente atrasado em relação mundo europeu.

“O comunismo

Não reside apenas na terra,

No suor das usinas,

Senão também no lar,

À mesa, nas relações familiares,

Nos costumes”.

Em 1925, seu maior amigo, o imagista Essenin se suicida.

Chegamos em 1928. Nos seus últimos dois anos de vida, diferentes fatores políticos, ideológicos e pessoais foram fontes de enorme desgostos, tristezas e desilusões. Seu poema agora traz um grito de alerta!

“A república das artes

Está em perigo mortal

Perigam a cor,

A palavra,

Os sons”.

Entre 1928 e em 1929, Maiakovski escreve duas obras teatrais de claro teor crítico quanto aos rumos do socialismo na URSS. Foram elas “O Percevejo” e “O Beijo”, ambas montadas e dirigidas pelo teatrólogo V. Meyerhold.

A primeira representação de “O Percevejo” terminou quase sem palmas da plateia. Já “O Beijo” recebeu estrondosa vaia na estreia e única apresentação enquanto Maiakovisk era vivo. Comandada pelos konsolmozes, a Juventude Comunista, sob os gritos de “o proletariado não entende isso” e “isto é arte pequeno-burguesa”, a apresentação não pode chegar ao final e o poeta retirou-se cabisbaixo do teatro. A ação da “claque” parecia-lhe de encomenda.

Em 1929, sua revista “Frente de esquerda da arte” (LEF) foi fechada. Seu companheiro de revista, o mesmo teatrólogo Meyerhold, preso. A inquisição a que este foi submetido levou sete meses e ele terminou por confessar o absurdo de ser um traidor da pátria, um espião a serviço da Inglaterra e do Japão, além de reconhecer em depoimento público que “o grupo da revista LEF, reunia os indivíduos antissoviéticos no campo da arte”.

Ora, Maiakovski era o líder da LEF. Acontece que, desde 1928 ocorrera um ponto de não retorno que o poeta já percebera: a arte moderna passara a ser vista como hostil ao regime soviético!

A prisão do amigo Meyerhold levou Maiakovoski a escrever seu último poema, “A Pleno Pulmão”, revelando a absoluta aporia, a falta de rumos e saídas, que sacudia os melhores corações e mentes de uma geração tão rica de talentos, aquela que fizera a Revolução de 17! Preparado para um ato final, ele contava até mesmo com ser esquecido e “borrado” da história.

“Respeitáveis camaradas,

Herdeiros e descendentes!

Deste tempo revolvendo

As fezes petrificadas,

Estudando estes nossos dias de trevas

Talvez nem saibam

Quem eu fui.”

No dia 14 de abril de 1930, aos 35 anos, dispara um tiro no coração. Maiakovisk, em meio aos  conflitos vivido, e antes que os rumos da revolução o tornassem alvo do Estado, optou pela morte. Deixa, entretanto, um escrito: “A todos! Eu morro, não acusem ninguém disso. E nada de boatos… o defunto tinha horror disso… O barco do amor rompeu-se contra o recife da vida cotidiana.”

Aquele que fora o “esquisito das esquisitices da época”, no dizer de Pasternak, de certa forma seu herdeiro espiritual, não existia mais.

Duas semanas após o suicídio do escritor, Stalin ordenou que Maiakoviski fosse declarado “O Poeta da Revolução”. Agora, sob as ordens do Kremlin, as cidades russas tornaram-se repletas de honrarias e cartazes com as frases de Maiakovski de anos atrás e seu versos anteriores a 1928 puderam ser vistos por todos os cantos do país.

A correspondência de Maiakovski com Lila Brik, entretanto, foi confiscada e somente veio à luz em 1985. Seu poema, “A Pleno Pulmão”, sofreu diversas adulterações e voltou à forma original somente após 1956.

Emilevich Meyerhold, o teatrólogo genial, o “traidor da Pátria”.

Meyerhold era dez anos mais velho que Maiakovski. Enquanto este escrevia seus primeiros versos, Meyerhold já era um grande ator, a caminho de tornar-se um dos mais importantes diretores e teóricos cênicos da primeira metade do século XX.

Depois de desentendimentos com o maior nome do teatro russo da época, Stanislavsky, o qual no futuro encarnaria o teatro formal do realismo socialista, Meyerhold deixa o Teatro de Arte de Moscou e funda sua própria companhia, a Companhia de Artistas Dramáticos Russos.

Durante sua vida artística realizou diversas experimentações interpretativas, sendo o introdutor dos exercícios de “Biomecânica”, que influenciou os principais encenadores do século XX. A biomecânica de um modo geral transformava o corpo do ator em uma ferramenta a serviço da mente. As atuações cênicas passavam a possuir movimentos amplos, exagerados e tensos. O corpo do ator, entendido como mais um objeto de cena, teria importante papel como elemento de comunicação visual. De tal modo que a capacidade comunicativa dos gestos e expressões, ou seja, a linguagem corporal dentro da biomecânica, subjugou em Meyerhold a própria linguagem oral.

Isto tudo, à época, era absolutamente novo, moderno, revolucionário! Sergei Eisenstein, ex-aluno e amigo de Meyerhold, utilizou a técnica da biomecânica em seus filmes como a superprodução de Ivan, o Terrível.

Ademais de seu gênio sempre inovador, desde 1906, Meyerhold tornara-se um ativista político socialdemocrata. Ingressa no Partido Comunista ao mesmo tempo em que o amigo Maiakoviski, após a Revolução de fevereiro. Em 1920, foi nomeado Diretor para assuntos teatrais junto ao Comissariado para Educação e Cultura.

Fundador do Construtivismo ao lado de Maiakoviski, no princípio de 1922, Meyerhold encena várias produções modernas incluindo “O Cornudo Magnífico”, de Crommelynk e “A Morte de Tarelkin” de Sukhovo-Kobylin.

Em 1923, passa a ter sua própria trupe teatral. Começou a encenar produções inovadoras de clássicos como “Almas Mortas” de Gogol (1926), assim como obras críticas do momento histórico, como “O Percevejo” e “O Beijo”, de Maiakovski (1928-9).

Preso pela NKVD, em 1929, após sua “confissão de traição à Pátria” em julgamento público foi-lhe concedida liberdade e permitido que retornasse ao teatro. Sem criticar mais o regime, seguiu, entretanto, com sua arte sem os padrões impostos pelo realismo socialista, tornado obrigatório desde 1934.

Em 1938, já quase septuagenário, voltou a ser preso. Escreveu uma carta ao Procurador de Estado, o antigo menchevique Vaksberg e ao poderoso Comissário Molotov, reportando as terríveis sevícias sofridas em mãos da KGB. Estas cartas somente vieram a público em 1989, junto com fotos com marcas evidentes de deformações faciais.

Sob a acusação de trotskismo e formalismo artístico foi condenado à morte e fuzilado na prisão, em 1940. Seus trabalhos artísticos e escritos estiveram banidos até 1955, quando foi reabilitado pela Corte Suprema da antiga URSS e inocentado de traição à Pátria.

Não poderíamos encerrar esse ensaio sem uma breve resenha do mais importante trabalho que Maiakoviski e Meyerhold desenvolveram a quatro mãos:

“O Percevejo”.

Texto e roteiro: Vladmir Maiakoviski.

Direção de arte: Vsevolod E. Meyerhold.

( “A peça mais sombria de Maiakovski. Em “O Percevejo”, todas as ilusões dos primeiros anos do regime são evocadas com uma cor sinistra, e o próprio futuro comunista da humanidade é visto como um mundo asséptico, regrado, sem poesia”). Boris Schnaiderman.

Uma obra teatral de vanguarda, modernista, questionadora, genial. O simbolismo que aponta para um “futuro socialista” que, já agora, após doze anos de revolução, se apresenta ao poeta como triste e sem gosto, homogêneo e monocórdico. Nele, o “Poeta da Revolução” faz uma crítica acerba ao tratamento dado à arte pós Lenin e Lunatcharski.

“O Percevejo” era, ao mesmo tempo uma praga que tanto incomodava e a garantia de humanidade da revolução, em franca e trágica transição para o burocratismo estatal. “Cuidado, cidadão” clama um bombeiro, “incêndios são causados por sonhos mal sonhados, por isso nunca leve para ler na cama Nadson e Jarov”, o último dos quais, rompendo com Maiakovski, se transformará nos anos 1930 num dos esteios do oficialismo na arte, o manipulável realismo socialista.

Na antevisão do poeta, o socialismo futuro que se plantava seria “desprendido” do álcool, do fumo, da liberdade, do gosto de se viver livremente, enfim. Amorfo na sua garantia do pão, da estupidez e da vulgaridade para a massa, e, por tudo isso, profundamente desumanizado.

Prissipkin, que morrera congelado em 1929, é descoberto sob o gelo num tempo da Federação Socialista da Terra, após 50 anos, em 1979 e submetido a um processo científico de descongelamento. Esse personagem, um dissidente do passado remoto, ressurreto, seria transformado em uma peça de museu, ou melhor, de zoológico. Entretanto, quando Prissipkin toma contato com o mundo que o recria, seu único desejo é retornar à rua Lunatcharski, n. 17. Ou seja quer voltar no tempo, retornar à “residência” do primeiro Comissário para a Educação e Cultura, ao ano da revolução!

“Para que viver?” “Para o socialismo do futuro?” É um grito de socorro do poeta Maiakovski lançado ao vento, um pathos impossível de encontrar uma luz, a não ser no próprio suicídio. Um professor, num futuro socialista tentará em 1979, decifrar palavras do passado: “suicídio, o que é suicídio?”, olha no dicionário e o que encontra como sinônimos? Servilismo…solidão…suicídio, ah, aqui está!”. O autor antecipa a bala na própria cabeça meses após.

A primeira montagem teatral foi simplesmente genial e assustadora para a burocracia e para a União dos Escritores Proletários. Nela contribuíram os vanguardistas Shostakovitch, (grande músico e maestro, autor da “Sinfonia 1905” que foi apresentada em praça pública durante o cerco nazista a Leningrado, como o hino de resistência soviética) e Rodtchenko, fotógrafo e artista plático, como cenógrafo.

A peça constitui uma clara crítica acerba da burocracia que sufoca, que privilegia aqueles que, com um cartão de sindicato, colocam-se acima do próprio povo. Maiakoviski vai ao fulcro do deslumbramento dessa parcela do “proletário ascendente e privilegiado”, criado pelo consumismo. O vendedor de bonecas no mercado, aonde pessoas chegam como seres humanos e partem transformadas em “transportadoras de mercadorias”, anuncia: “bailarinas mecânicas, diretamente da ópera de Moscou…bonecas que dançam sob a direção de nosso Camarada Comissário”. Outro vendedor apregoa “ 105 histórias engraçadas de Tólstoi… por apenas 15 copeques”, liquidação do que aquele titã da literatura jamais escrevera, comédias! Tudo se deturpa na ânsia pelo consumo.

“Eu sou um homem de perspectivas históricas! Desprezo os costumes pequeno-burgueses como fitas, lacinhos, eu quero mesmo é uma cristaleira!”, diz o personagem central, preocupado com o próprio patrimônio e com certo estilo e poder de compra! Esse é Prissipkin, ex- proletário, ex- membro do Partido, “que perdera a carteira do Partido (ou melhor, seu verdadeiro significado), mas que ganhara na loteria e nas ações do Estado”. Mantinha, por não ser tolo, a carteira sindical!

Prissipkin, que se casando com Elzevira, a cabelereira, terá o “poder” de transformá-la em camarada, realizando um sonho: a “união do proletariado com a pequena burguesia”. Palavras da mãe da moça: “Minha filha, você ainda não tem o cartão do sindicato, então é melhor, como eu, também  ficar quieta, calar a boca”, desnudando os privilégios formais que, já em 1929, corroíam a sociedade soviética.

A seguir, Maiakovski  desnuda a corrupção e a falta de transparência. Um serralheiro diz a Prissipkin: “Segue meu conselho: ponha cortinas nas janelas! Aí você poderá abrir as cortinas e olhar a rua ou então, fechá-las e abocanhar as propinas”. O mesmo serralheiro declama: “Eu trabalhei, há algum tempo, na construção de uma ponte para o socialismo. Mas eu me cansei e não terminei e, debaixo da ponte, repousei. Na ponte cresceu grama que os carneirinhos comeram. Agora eu só quero descansar à beira do caminho”.

Quando Prissipkin, acidentalmente congelado juntamente com o percevejo que carrega na pele está para ser ressuscitado, em 1979, surge a questão levantada pela Secretaria Central Epidemiológica: “Como evitar o contágio com a bactéria da bajulação e da vaidade transmitida pelo percevejo, doença característica do ano de 1929?” “ O mistério do lambe-botas poderia ressuscitar?”. Esta preocupação ocorre, todavia, apenas num primeiro momento, pois logo a seguir a sociedade do futuro glorificará o percevejo transmissor do puxa-saquismo e erguerá para ele um pedestal no zoológico, buscando alguém a quem ele possa picar infindavelmente para sua preservação.

Dialeticamente, entretanto, o mesmo percevejo transmissor do puxa-saquismo, também trará para aquela sociedade mórbida, outra bactéria do passado heroico, uma novidade chamada paixão, há muito extinta!

Nessa sociedade futurista, Prissipkin será sempre o representante de uma espécie extinta, viciosa, que fumava, bebia cerveja, ria e tocava guitarra; consideravam-no mesmo como uma nova espécime biológica, o “Filistaeus vulgaris”, que, conforme o Comissário Diretor transformava “Tolstoi em Marx” e se diferenciava dos pássaros pelo tamanho de seus “excrementos”.

Quanto ao ressuscitado, da jaula do zoológico onde o colocam para visitação pública, grita inutilmente: “Eu não pedi para ninguém me ressuscitar! Congelem-me novamente!”. “Por que estou sozinho na jaula? Camaradas, venham comigo”!

A resposta do Diretor é: ”Apliquem-lhe uma mordaça, para que não fale e não nos contamine”.

Fecham-se as cortinas ao som dos acordes de Shostakovitch.

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