A inserção histórica do último romance machadiano é de extrema importância, pois, na contramão da retórica abolicionista, Machado de Assis denunciou a seu modo, com rara lucidez, a farsa da Lei cujo significado profundo ele compreendeu e dramatizou em seu último romance!
No “Memorial de Aires” os tipos sociais representados pelas personagens pertencem todos, assim como o próprio narrador, à elite do final do Segundo Reinado. Acontece que ao incorporar exclusivamente as ideias da elite de seu tempo ao discurso literário, Machado de Assis faz da leitura do romance uma experiência histórica concreta.
Para apreender este sentido, o leitor tem de questionar o discurso narrativo, portanto contestar a ideologia das elites, o que implica não concordar, no caso do Memorial, com a versão oficial da Abolição.
O narrador, Aires, possui um compromisso de classe com a elite escravagista e nesse sentido, as infrações das personagens em relação a princípios, que elas enfaticamente assumem como seus, são trazidos ao leitor como atitudes naturais, geralmente emprestadas ao repertório de ideais liberais burgueses importados da Europa.
Logo, enquanto o Conselheiro Aires tenta suprimir o juízo autônomo do leitor, o escritor, Machado, procura criar um leitor independente e crítico. Quando o leitor esposa o obscurantismo do Conselheiro e não a malícia machadiana contribui, de uma forma ou de outra, para a preservação dos privilégios de classe que persistem até hoje, modificados ou não.
No contexto do final do Império, a classe social oligarca ligada à Monarquia perdia sua função e teria que se amoldar a uma nova forma de exploração social. No texto, não por acaso, a lavoura decai, o fazendeiro morre, o corretor encerra os negócios, o diplomata se aposenta. Paira uma atmosfera de decadência onde, em reuniões sempre íntimas, as personagens apenas tomam chá, jogam cartas, tocam piano, falam de outros e da Europa.
As menções à Abolição, apesar de raras, conferem forte sentido histórico. Veja-se, por exemplo, o registro da primeira soirée do casal Aguiar, que acontece no dia da promulgação da Lei Áurea: “A alegria dos donos da casa era viva, a tal ponto que não a atribui somente ao fato dos amigos juntos, mas também ao grande acontecimento do dia… Na verdade, (a alegria) era devida a carta (do filho postiço ausente); como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, (ele, Tristão) chegava bem. Novamente os felicitei, com ar de quem sabia tudo”.
A prioridade dada por nossas elites aos assuntos particulares, em detrimento das questões públicas, interessou desde cedo a Machado de Assis. Na cena transcrita acima, é como se a Abolição não existisse para os Aguiar. Após um momento de surpresa, Aires — não sem a ironia de quem acusa defendendo, procura normalizar a indiferença do casal, de tal modo que ela acaba sendo coroada por uma máxima filosofante: “Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular”, dando ares de universalidade à legitimação de uma conduta particularista, antissocial.
Com efeito, o diplomata e Conselheiro compartilha do desinteresse dos Aguiar pelo destino dos negros. Ao comentar a doação das terras de Santa-Pia aos libertos, ele se pergunta: “Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante”.
Mesmo quando o Conselheiro demonstra simpatia pela Abolição, sua satisfação parece estar menos ligada à liberdade dos escravos do que à imagem do país — do ponto de vista da classe dirigente — diante das nações modernas: “Dizem que, abertas as Câmaras, aparecerá um projeto de lei. Venha que é tempo… Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele (EUA) e acabasse também com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem”.
A duplicidade do conselheiro encerra sempre em si um elemento de cinismo, que convida o leitor menos ingênuo a uma espécie de cumplicidade acanalhada ou ao piscar de um olhar esperto com o velho Machado.
Acontece que desde a década de 1870, a alta do preço dos escravos e a modernização das técnicas de beneficiamento do café tinham tornado o trabalho escravo cada vez mais caro e improdutivo em relação ao trabalho livre, possibilitado pelos imigrantes europeus.
A Abolição vinha libertar a nova oligarquia cafeeira de uma mão-de-obra tornada excessivamente onerosa e mal adaptada às novas condições de produção.
No início do livro um vendedor grita: “Vae vassouras?” Uma alusão direta latina, “ai de Vassouras!”, cidade ao redor da qual havia uma das áreas de maior concentração de trabalho escravo na lavoura cafeeira, agora decadente.
As plantações de café do Vale do Paraíba, em processo de esgotamento, foram sendo progressivamente abandonadas pelos fazendeiros, que se dirigiram para os promissores campos de cultivo de São Paulo ou para a Corte, em busca de cargos públicos, sempre muito bem remunerados.
No “Memorial de Aires”, o dramático êxodo dos libertos do Vale do Paraíba recebe uma clara menção feita pelo desembargador Campos, a partir da perspectiva de ver os negros como ingratos e hipócritas em relação à antiga sinhá-moça: “Os libertos, apesar da amizade que lhe têm ou dizem ter, começaram a deixar o trabalho”. A indiferença e o descaso pelos fatos ligados à emancipação dos escravos é ideologia das elites.
Um exemplo bastante ilustrativo, ademais de “Memorial de Aires”, encontramos em “Escravo Pancrácio”, crônica de Machado de Assis publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888 (livro “Bons Dias”), na semana seguinte à abolição, nos diz:
“Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos… Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio: daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre”.
Retornando ao “Memorial”, ao criar um cronista particularmente descarado, Machado potencializa o efeito de sua crítica social, deixando claro que a Abolição não modificaria a situação do negro, assim como não reduziria a possibilidade de abusos da classe dominante, e que a ideia que um negro pudesse ter acesso aos bens da sociedade era apenas uma mentira forjada pela elite, em benefício de si própria.
Machado de Assis percebeu cedo que o fim do escravismo não traria liberdade verdadeira aos ex-escravos e que as velhas estruturas econômico-sociais, com algum rearranjo, sobreviveriam à Abolição.
Conforme demonstra o trabalho de Roberto Schwarz, lá pelos anos 1880, Machado abandona tanto a esperança de uma reforma interna do paternalismo como a perspectiva da possibilidade de superação das relações de dependência por meio do trabalho livre, passando a explorar, a partir das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, sem mais qualquer tipo de freio ideológico, as virtualidades retrógradas e perversas do avanço do capitalismo no Brasil.
Ele desmascara as alforrias de última hora, desmistifica os principais nomes políticos ligados à elaboração e à aprovação da Lei Aurea, inclusive o da Princesa Isabel, e prevê o advento de uma república oligárquica, repressora e branca, sendo mais crítico e autêntico que boa parte dos intelectuais abolicionistas.
Assim, visto que o 13 de Maio não afetara substancialmente as elites, nada mais realista que a indiferença do narrador e das personagens pelos acontecimentos ligados ao fim da escravidão. Em virtude da peculiaridade da matéria histórica e da maestria do romancista, o apagamento da abolição potencializa sua presença.
O filho de escravo liberto, Machado de Assis não via um porque em comemorar o dia que não foi de real libertação, mas, sim, uma continuidade histórica na discriminação, exploração e abandono dos escravos à própria sorte.
Nota: Texto extraído do livro : Textos e Contextos, De Machado de Assis aos Modernistas”, autoria de Carlos Russo Jr., Ed. Gramma, 2018.