História de Melville: peixe preso, peixe solto

Um amigo meu, Melville, fora um homem do mar bem antes  de se aventurar na árdua tarefa de ganhar a vida com seus escritos. Certo dia entre uma chávena de chá e outra,  contou-me uma história muito interessante a respeito dos direitos e regulamentos da pesca às baleias.

Na época em que ele ainda viajava pelos sete mares à bordo do Pequod, o único código formal que regulava a caça era já muito antigo, escrito por volta do início do século dezoito, aprovado pelo parlamento da Holanda e respeitado por praticamente todas as nações, inclusive o todo poderoso Império Britânico.  Na sua essência, poderia ser ser resumido em dois únicos artigos. O primeiro dizia que um peixe, uma vez preso, pertenceria à parte que o prendesse e o segundo, ser um peixe solto caça legítima de quem o apanhasse primeiro.

O que salta aos olhos, frizou-me meu amigo, é a “admirável brevidade” do código, tornando  necessário muitos comentários adicionais para aplicá-lo. Afinal, o que significa um peixe preso? Vivo ou morto, um peixe está preso do ponto de vista técnico quando amarrado a um navio ou a um bote tripulado, quer seja pela corda de um arpão, por uma linha, por um remo, ou até mesmo por teia de aranha, pois pouco importa. De modo semelhante, o peixe também é dado como preso quando carrega algum símbolo reconhecível de posse, sempre que o assinalante demonstre claramente capacidade de carregá-lo a bordo.

A parte destas considerações, Melville contou-me uma história antiga de apropriação indébita ocorrida nos mares da Inglaterra e que terminou nas barras da justiça. Os autores da ação declararam, após uma caçada difícil a uma baleia cachalote, terem-na arpoado, mas que devido o risco de morte da tripulação do pequeno bote de caça, tinham  sido obrigados a abandonarem a presa, assim como o arpão, arpoeira e o próprio bote, retornando ao navio baleeiro de mãos abanando.

Já os réus, que estavam em uma nau próxima, não se fizeram de rogados e empunhando suas lanças terminaram por matar o cachalote e dele se apropiaram na frente daqueles que o haviam arpoado, com tudo o mais que flutuasse. Deste modo, a parte queixosa pleiteava receber o valor da baleia, arpoeira, arpões e barco.

Durante o julgamento, o advogado da defesa, espertamente, recorreu a um caso criminal recente. Um homem depois de tentativas vãs de repressão aos instintos sexuais de sua mulher, abandonara-a nos mares da vida; no decorrer dos anos arrependera-se e movera uma ação na tentativa de recuperar a posse da mesma, sem, entretanto, obter ganho de causa na justiça. O rábula dizia que se era verdade que o cavalheiro, no passado, arpoara a senhora e a tivera presa, ao abandoná-la transformara-a em peixe livre para que qualquer outro fincasse-lhe o arpão e dela se apropriasse. O caso havia sido julgado com ganho de causa dado ao novo companheiro da citada senhora. Dizia, em conclusão, que o caso da baleia e da mulher livre se ilustravam reciprocamente, e constituía uma “certa jurisprudência”.

Muito bem, contou-me Melville, o magistrado aceitou a argumentação e julgou a comparação pertinente. Portanto, os réus tinham direito à posse da baleia, pois no momento em que ela fora abandonada pelos autores da ação, ela tornara-se um peixe livre. Os arpões e arpoeiras que a baleia trazia presos ao costado, constituiam, uma vez abandonados, posses do próprio cetáceo e, desta forma, passariam à propriedade de quem o caçasse, ou seja dos réus. Somente o bote que fora abandonado deveria retornara aos queixosos.

Ao perceber a minha reação contrária à disposição do ilustre juiz inglês, meu amigo simplesmente sorriu e disse-me que os preceitos relativos ao peixe preso e peixe solto, constituem os fundamentos de toda a jurisprudência humana, pois “apesar de seus complicados traçados, os Templos da Lei e o dos Filisteus têm apenas duas colunas a apoiá-los”.

E prosseguiu: “Não se diz por aí que a posse é meia propriedade, sem se levar em conta como se obteve essa posse? Mas frequentemente a posse é o direito de propriedade”. Passou, então, a citar-me alguns exemplos: o que seriam os músculos e as almas dos escravos e dos servos, senão peixes presos cuja posse significa todo o direito de propriedade? O que é para um proprietário de terras a última migalha de uma viúva senão peixe preso? O que é a mansão de um vilão encoberto senão peixe preso? O que significa o ágio que os bancos cobram daqueles que necessitam de dinheirto emprestado senão peixe preso? O que são os salários altíssimos dos alto dignatários senão peixes presos? O que seriam as fazendas herdadas e as propriedades citadinas senão peixes presos? Não seriam as grilagens todas formas de posse que se transformam em propriedade, portanto, peixe preso? O que é o Texas, antigo México para os norte-americanos senão peixe preso?

Apressou-se meu amigo a dizer-me que se a doutrina do peixe preso é bastante disseminada, a do peixe solto o é ainda mais amplamente, sendo internacional e universalmente aplicada. O que era a América em 1492 senão peixe solto quando aqui aportaram os colonizadores ingleses, espanhóis e os portugueses? O que era o Brasil com suas imensas riquezas e seus índios mansos, senão peixe solto, cuja posse tornaram-nos peixes presos? E a Índia para a Inglaterra? E os países árabes para os ianques? Todos peixes soltos.

Mas os que são os Direitos Universais do Homem, a Liberdade no Mundo senão peixes soltos? O que são as mentes e as opiniões de todos os homens senão peixes soltos? O que é o princípio da crença religiosa dentro dos mesmos, senão peixe solto? E as reflexões dos pensadores, dos jornalistas, daqueles que escrevem por possuírem a “pena de aluguel”, senão peixes soltos? Que é o grande globo terrestre senão peixe solto?

Quando vale o critério da propriedade, quer seja do homem, do peixe, da terra ou das águas, a força é o garantidor de eles serem livres ou soltos.

E você que me lê, o que você é? Eu garanto, que assim como eu mesmo, você é peixe preso, mas também peixe solto, senão jamais perderíamos tempo um com o outro.

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