Frei Dolcino, reformador social e cristão, imortalizado por Dante e Eco.

A alma de Maomé se aproxima de Dante Alighueri no Canto XXVIII, no Oitavo Círculo do “Inferno”, aquele destinado aos cismáticos da fé católica, pedindo para que ele transmita um aviso a uma pessoa ainda vivente, quando retornasse a seu tempo, o da vida. O destinatário do aviso é Frei Dolcino.

Eis o recado de Maomé passado a Dante:

“E que esse Frei Dolcino se abasteça

Dize-lho tu, que o sol verás em breve,

Se ele de aqui me ver não tiver pressa.

De víveres, pra que um cerco de neve

Não entregue a vitória ao Novarês*,

Que de outro modo obter não seria leve.”

A seita dos “Irmãos Apostólicos”, fundada por Padre Dolcino, pregava a volta da religião católica à simplicidade dos tempos dos apóstolos.

Dolcino expôs sua doutrina em uma série de cartas endereçadas a seus seguidores. Inspirado em Joaquim de Fiore, acreditava que estaria chegando um tempo no qual a ordem e a paz seriam finalmente restauradas e as degenerações da Igreja, revertidas.

Ao mesmo tempo, Padre Dolcino pregava reformas sociais, como o fim da propriedade privada, a comunhão dos bens terrenos e a igualdade entre homens e mulheres.

Os dolcinianos além de fazerem voto de pobreza, roubavam alimentos e gado dos ricos para distribuir aos pobres, numa atitude que seria reproduzida na Inglaterra, no mito de Robin Hood.

Em termos de fé sustentava que a eucaristia não podia conter o corpo de Cristo, que a confissão dos pecados a padres humanos e pecadores era inútil e que a Cruz não deveria ser adorada como símbolo do Divino. A Cruz simbolizava apenas o sacrifício de Cristo, a dor!

Que a verdadeira simbologia do Divino deveriam ser os exemplos de humildade e de fraternidade de Cristo. Já liturgias tais quais batismo e água dita benta não teriam valor espiritual algum.

De certa forma, padre Dolcino era, teologicamente, um seguidor tardio e radical de Giovanni di Pietro di Bernardone, mais conhecido como São Francisco de Assis, que um século antes, voltara-se para uma vida religiosa de completa pobreza, fundando a ordem mendicante dos “Frades Menores”.

No entanto, diferentemente de Francisco de Assis, Frei Dolcino admitia a violência para a realização de suas reformas sociais e religiosas. Seu grito de reconhecimento era o “penitenziate”, penitencia-te, para todo aquele que decidisse ser seu seguidor.

Para a igreja, a doutrina de Dolcino era extremamente perigosa por causa de suas posições contrárias às Roma e por influenciar tantos seguidores, em número maior e maior.

A pregação de Dolcino ocorreu, inicialmente, na região do Lago de Garda, depois, na região de Arco di Trento. Em 1303, enquanto pregava nos arredores de Trento, conheceu a jovem Margherita, que se tornaria sua companheira.

Dolcino e seus seguidores, depois, se instalaram entre Vercelli e Valsesia. Em 1304, com o apoio armado oferecido por Matteo Visconti, ocupou militarmente Valsesia e transformou-a numa espécie de território livre, onde criaria o tipo de comunidade teorizada em suas pregações. A Irmandade, então, contava com mais de dez mil seguidores.

A perseguição à seita dos “Irmãos Apostólicos” começou sob o papado de Bonifácio VIII e seu sucessor, Clemente V. Este ordenou uma perseguição implacável. O Bispo Vercelli (* O Novares, citado por Maomé a Dante) organizou uma Cruzada, que também contou com o apoio de milícias pagas.

Dolcino e seus seguidores, então, se refugiaram nas proximidades de Novara, no Piemonte, onde resistiram às forças armadas durante um ano. Apenas o cerco continuado fez com que Dolcino e seus seguidores se rendessem, vencidos pela fome, na Semana Santa de 1307.

Frei Dolcino e sua companheira, Margareth de Trento, foram condenados à fogueira. Antes da morte, torturados cruelmente.

Margareth foi queimada primeiro lugar, em fogo lento, diante de Dolcino.

Dolcino, depois de assistir à morte da companheira, foi preso a uma carroça puxada por bois, que desfilou por várias ruas da cidade. Em sua volta havia vários potes de ferro cheios de brasas. Mergulhadas nas brasas, grandes pinças de ferro, incandescentes. Durante o desfile pela cidade, as pinças eram aplicadas em várias partes do corpo nu, até que toda a pele fosse arrancada. Ao final, depois de desfilar por toda a cidade, a carcaça martirizada foi jogada sobre os ossos em chamas de Margareth.

Apesar da implacável repressão, os ideais de Dolcino permaneceram vivos, assim como alguns seguidores que secretamente escaparam do massacre de Novara. Por todos os cantos da Itália, quando capturados, estes sempre eram submetidos a torturas exemplares e, a maior parte deles, queimados na fogueira penitencial.

Dante, em sua “Divina Comédia”, pese toda sua escolástica estrita, não coloca Frei Dolcino no Inferno, nem mesmo prevê que seu lugar lá seja, o que havia feito com o Papa Bonifácio VIII. Apenas, pela boca de Maomé, anuncia o possível lugar de um cismático. Que Dolcino se precavesse com estoques de comida ou seria destruído! E, assim, ele o imortalizou!

Ainda outra obra de arte tornaria Frei Dolcino imortal. Em seu livro “O Nome da Rosa”, o escritor e historiador Umberto Eco narra episódios onde religiosos são acusados de heresia, por seguirem princípios da seita de Dolcino.

Referências biográficas:

1. Ornioli Raniero, “Fra Dolcino. Nascita, vita e morte di un’eresia medievale”. Milano, Jaca Book, 2004.

2. Centro Studi Dolciniani, Fra Dolcino e gli Apostolici tra eresia, rivolta e roghi. Roma, DeriveApprodi, 2000.

3. Mornese Corrado. Eresia dolciniana e resistenza montanara. Roma, DeriveApprodi, 2002.

4. Bossi Alberto, ” Fra Dolcino, Gli Apostolici e la Valsesia ” . Borgosesia, Ed. Corradini 1973.

5. Gabriella Pantò, “Contro fra Dolcino. Lo scavo delle postazioni vescovili nel Biellese”, ed. DOCBI Centro Studi Biellesi, 1995.

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