Entrevista com Proust: infância, adolescência, maturidade, velhice e morte.

O Espaço Literário trouxe para seus leitores, há algum tempo atrás, uma das entrevistas realizadas por André Jammes, à época colaborador da “Le Nouvelle Revue Française”, com o escritor Marcel Proust, realizadas entre a primavera de 1914 e até pouco antes do falecimento do escritor, em 1922.

No presente bloco, Proust é instado a falar sobre as fases da vida. Interessava ao repórter da N.R.F. tanto a visão do autor, quanto de seu personagem “Marcel”, a respeito da infância e da adolescência, da maturidade e da velhice, assim como da morte.

Proust, em seu romance, o narrador na maturidade da vida, tem a memória involuntária despertada pelo biscoito molhado no chá de tília, que lhe é servido na biblioteca do palácio de Guermantes; a partir desse instante estabelecem-se as conexões entre o Marcel e seu passado. Conversemos sobre a Infância?

A memória afetiva do narrador o transporta à antiga casa cinza de sua tia Leonie, com seus quartos e sala, o lindo jardim com todas as suas flores de verão, portões por onde se ia até a praça do vilarejo e daí, a dois caminhos: aquele que conduzia a Tansoville onde estão as flores dos jardins de Swann e o outro para os lados de Guermantes, onde o rio Vivone no seu eterno correr, caminha abrigando, tal qual nos quadros de Monet, suas lindas ninfeias. Todo um passado despertado pela a memória involuntária vai então adquirindo, ao nível consciente, consistência e corpo.

Veja que todos os homens, André, queiramos ou não, vivemos no presente de um passado, possuímos cada um, tal qual o Narrador, nossa Combray ao fundo da memória, a própria infância com tantos e tantos sentimentos sepultados sob cinzas, sobre as quais ainda pode soprar um ar reedificador vindo involuntariamente, um cheiro, um ruído, uma imagem nos trazem emoções vividas.

Marcel amou com toda a ternura o mundo mágico de seus primeiros anos. Tanto que conservou por muito tempo, talvez por sentir-se fraco e asmático, a esperança de jamais abandonar aquele tão protegido recanto familiar. E o passado estando presente no adulto, levá-lo-á a relembrar o alívio sentido pelo beijo da mãe em Combray, o mesmo beijo que ele encontraria em Albertine, no amor num tempo futuro.

Assim são também as inquietações experimentadas na infância, que ao apelo de uma nova angústia, retornavam para sufocá-lo. Como outrora, quando sua mãe o deixava sem tê-lo acalmado com um beijo, Marcel iria desejar correr atrás de sua amante no futuro, pois sentia que não haveria mais paz antes de tornar a vê-la.

Quando, Marcel, somente após rompida a magia da infância por força da natureza foi obrigado a conviver e lutar com os homens; acredito, então, poder apaziguá-los à força da doçura, da cordialidade, prestando-lhes favores, tentando reproduzir a infância vivida pois, como disse Molière, cada um apanha o seu ouro onde ele está.

Com o correr do tempo e da vida, entretanto, após conhecer o que é o viver e o poder demolidor das paixões, Marcel foi vendo derreter-se sua doçura, tornando-se mais duro, possessivo e, muitas vezes, cruel.

Diversos elementos contribuirão decisivamente para o desenvolvimento cultural de Marcel, assim como servirão de estímulo para que se volte, quando adulto, para as questões do espírito e possa realizar uma obra de arte, correto?

Sim, o ambiente era muito propício. Tanto a avó materna quanto a mãe do Narrador eram pessoas cultas e leitoras infatigáveis dos clássicos. Adornavam e enriqueciam suas conversações com citações de Racine, Montaigne e da senhora de Sévigné. O narrador era sempre presenteado, o que constituía uma forma de demonstração de amor e carinho, mas estes regalos jamais eram comuns, sempre eram alguma coisa da qual se tirasse um proveito intelectual, ensinando-o a buscar o prazer em outro ponto que não nas satisfações do bem-estar e da vaidade.

O ambiente familiar de criança sensível aliava deste modo uma alta sofisticação intelectual a um afeto protetor. Conversemos um pouco sobre a Adolescência, quer seja a relembrada pelo senhor ou imaginada pelo Narrador, de acordo?

A característica dessa idade, que Marcel julgava ridícula, na verdade ela em nada é ingrata e sim, muito fecunda, quando os mínimos atributos humanos parecem que passam a fazer parte indivisível da personalidade. A tranquilidade nessa época é coisa desconhecida, pois estamos sempre cercados por deuses e monstros. E quase todos os gestos que então fazemos, desejaríamos tê-los suprimido depois. Quando, ao contrário, o que se deveria lamentar era não mais termos aquela espontaneidade que o Tempo nos inspirava. Mais tarde, veem-se as coisas de modo mais prático, mais de acordo com o resto da sociedade, mas a adolescência é a única época em que se aprende para sempre.

E é tão curta essa radiosa manhã, em que também o sexo é descoberto, que a gente acaba por não gostar senão dos meninos ou meninas muito jovens, aqueles cujas carnes se acham ainda em elaboração. Parece que cada um é sucessivamente a estatueta de alegria, da seriedade juvenil, da graça, do espanto, modelada por uma expressão franca, inteira, mas fugaz. Verdade é que esses atributos serão também indispensáveis no homem e na mulher feita, mas a partir de certa idade, não despertam mais as suaves flutuações numa face que as lutas pela existência enrijeceram e tornaram para sempre militante ou estática.

Pois bem, nessa fase gloriosa da vida, Marcel sentia a sensualidade se espalhando por todos os recantos de sua imaginação, o que fazia com que seu desejo não tivesse limites. A verdade é que durante muito tempo ainda permaneceria nesta idade em que não abstraímos o gozo da posse de diferentes seres que a vida se nos oferta. Nós mal pensamos no gozo como um prazer a obter, mesmo porque não pensamos em nós e sim em sair de nós.

Quanto a mim, Marcel Proust, posso lhe assegurar que jamais superei a urgência por estar rodeado de ternura e gentilezas, viver em um mundo menos áspero, menos competitivo, menos hipócrita e mais moral.  Saiba, caro André, dentre as qualidades que mais admiro nos homens estão a delicadeza intelectual, a vontade de servir e a cordialidade, virtudes que se creem femininas. E nas mulheres, a determinação, a gana de lutar pelo que creem, que se dediquem à amizade com os homens, virtudes tidas como masculinas.

Maturidade e velhice

La Rochefoucauld dizia que nem o sol e nem a morte podem ser vistos de frente. Tão grande é a dificuldade do ser humano em aceitar a vida e a morte, quanto o fato de que a maturidade constitui já o topo de uma escada, após a qual principia a decadência até o final do ser mortal. Esses são temas de extrema importância em sua busca de um tempo reencontrado.

Falemos primeiro do tal topo da escada. Ao atingirmos a maturidade é quando o Tempo desenvolve todo o seu poder de conduzir nossos corpos e nossos espíritos à decadência; acontece que demoramos a nos apercebermos disso e essa é a razão pela qual aceitamos a decadência sem mesmo a notarmos, pois ela se instala sorrateira e lentamente. Quando, finalmente, ela é conscientemente aceita, tem como resultado tornar as pessoas menos exigentes no tocante àqueles com quem se resignam a conviver, menos exigentes quanto ao espírito como quanto ao resto. Tal negligência produz, entre outros resultados, o de agravar esta tendência, tão comum quando se atinge certa idade, a considerar agradáveis as palavras que lisonjeiam o nosso modo de pensar e as nossas inclinações e nos animem a segui-las; essa é a idade em que um grande artista prefere, ao convívio de espíritos originais, o de seus discípulos, que só têm em comum com ele a letra de sua doutrina, mas que o escutam e o incensam.

É na maturidade que começamos a compreender o que é a velhice, a velhice que de todas as realidades, é talvez aquela de que guardamos na vida uma noção meramente abstrata, observando os calendários, datando nossas cartas, vendo os amigos se casarem, os filhos de nosso amigos, sem compreender por medo ou por preguiça exatamente o que significa tudo isto.

Quando uma doença, um duelo ou um cavalo alucinado nos fazem ver a morte de perto, somos sacudidos por sentimentos como de que maneiras poderíamos haver gozado imensamente a vida, a volúpia e os países desconhecidos de que iríamos ser privados. E, uma vez que o perigo passa o que descobrimos é a mesma vida morna onde nada disso existia para nós. Sabe que será tarde quando aprendermos a amar o que nunca será visto duas vezes.

Marcel tinha em seu tio Adolphe o protótipo do homem solteirão, já com idade mais ou menos avançada, extremamente rico, que absolutamente não aceitava a sua velhice. Para isso fazia-se rodear de artistas e cocotes, de preferência as mais belas de Paris. Enquanto Marcel enxergava aquela vida como uma alternativa mundana recheada ao mesmo tempo de vacuidade e de felicidades momentâneas.

Enfim, os homens se tornam velhos quando no dia de Ano-Novo deixam de desejar Boas-Festas, não por falta de educação, mas porque não acreditam mais no Ano-Novo.

Sem alterarmos o rumo de nossa conversação, ocorreu-me agora uma observação de Anatole France em que ele se refere a Marcel Proust como “o autor, que sendo jovem, é velho da velhice do mundo”.

Muito me envaidece esta observação de Anatole France. Acontece que já nos meus trinta anos já me acreditava ser um velho. Acontece que todo grande escritor só é ele mesmo quando deixa falar suas vozes interiores, que tão somente na solidão e no recolhimento se fazem ouvir. E isto requer tempo; quem me dera me fosse dada uma parcela maior desta velhice do mundo para escrever minha obra.

Enfim, essas minhas vozes interiores buscam ser as vozes do meu tempo e meu escrever é sobre a psicologia do tempo, não de um tempo infinito, mas o tempo do homem, aí sim, realmente, tão velho quanto ele próprio o é.

Falemos um pouco mais sobre as “metamorfoses” da velhice. Aquele moço cheio de vida, que buscava frequentar em Paris os salões da duquesa de Guermantes, em Balbec o castelo alugado pelos Verdurins, que lutava para fazer-se convidado pela princesa de Guermantes, o que restará, afinal, de toda aquela agitação, de toda aquela energia?

Nós jamais somos os mesmos no dia que passa; Marcel, quando finalmente inicia o seu trabalho em busca do tempo a ser reencontrado, já recluso, única forma de se reencontrar na vida da criação artística, sente os efeitos da decadência do corpo. Ele constata que a partir de certo grau todo desregramento torna-se um fastio. Aliás, até mesmo o prazer momentâneo já se acabou, pois o corpo e o espírito estão muito desprovidos de forças para que possam acolher agradavelmente o que parece uma diversão ao leitor. O aniquilamento da maturidade, a destruição de uma pessoa cheia de força e agilidade já é um primeiro passo rumo ao nada.

A velhice nos torna primeiro incapazes de empreender, mas ainda mantemos o desejar. Só num terceiro período é que aqueles que vivem até uma idade muito avançada renunciam ao desejo, assim como já haviam tido de abandonar a ação. Ele se limitam-se a sair de casa acompanhados, a comer, a ler os jornais, a sobreviverem a si mesmos.

Conversar sobre a morte é sempre um assunto difícil, pois assinala a nossa finitude. Dentre os seres vivos, somente o homem conhece a morte, embora no fundo ninguém acredite em sua própria morte, ou no que dá no mesmo, em seu consciente ou em seu inconsciente, cada um está persuadido de que sua própria individualidade irá, de alguma forma, perpetuar-se.

Realmente, crer na própria morte como um evento mais do que possível, mais do que provável, absolutamente inapelável, apenas sem um tempo definido, constituiria o pior dos pesadelos para a maioria da humanidade. Veja o exemplo do soldado da linha de frente da batalha. Ele está convencido que tem diante de si um espaço de tempo infinitamente adiável antes que o matem; o ladrão, antes que o prendam; o homem, em geral, antes que o arrebate a morte. Este é o amuleto que preserva os indivíduos, às vezes os povos, não do perigo, mas do medo do perigo; na verdade, na crença do perigo, motivo pelo qual o desafiam em certos casos sem que sejam necessariamente bravos.

Sabemos que a hora da morte é incerta, mas, quando falamos isso, afiguramos essa hora como situada num espaço vago e longínquo, não imaginamos que ela tenha uma correlação qualquer com o dia começado, e possa significar que a morte, ou sua primeira posse parcial de nós, após a qual não nos larga mais, poderá ocorrer nessa mesma tarde, tão pouco incerta, essa tarde em que o emprego de todas as horas está previamente agendado. A gente se empenha para cumprir os nossos compromissos, o dia está inteiro para nós, gostaríamos que amanhã fizesse um bom tempo para visitarmos uma amiga e não desconfiamos que a morte que caminhava entre nós em outro plano escolheu precisamente aquele dia para entrar em cena e talvez entre em cena dentro de alguns minutos. Para Goethe, a morte de um ser próximo é sempre incrível e paradoxal, uma impossibilidade que se transforma em realidade. Esta aparece como um castigo, um erro, uma irrealidade.

A morte de milhões de desconhecidos apenas nos causa um arrepio, aliás, menos desagradável do que o provocado por uma corrente de ar. Rapidamente as tragédias que não nos atingem são sucedidas por outras e jamais nos recordamos daquelas em que tantos morreram.

A morte próxima é a única real. De certa forma, os mortos continuam vivendo em nós, seus pais ou filhos. Marcel observa pela primeira vez que “aquele olhar fixo e sem lágrimas que tinha a minha mãe desde a morte de minha avó, estava detido naquela incrível contradição da lembrança e do nada. No entanto, logo que a vi entrar com seu manto de crepe, apercebi-me que não era mais a minha mãe que eu tinha diante de meus olhos, mas a minha avó”, como que se por um fenômeno de metempsicose ou do modo que nas famílias reais, o morto apodera-se do vivo que se torna o seu sucessor semelhante, o continuador da sua vida interrompida. Nesse sentido é que se pode dizer que a morte não é inútil, que o morto continua a atuar em nós.

No caso dos “desaparecidos” então, saber que nada mais se tem a esperar, não impede que continuemos a esperar. Vive-se à espreita, à escuta: mães cujo filho embarcou em perigosa expedição imaginam a cada instante, e quando, desde muito está adquirida a certeza de sua morte, que o filho vai chegar miraculosamente salvo e de boa saúde. E esta espera, segundo a força da lembrança ou a resistência dos órgãos, ou as ajuda a atravessar os anos ao fim dos quais suportarão que o filho não mais exista, a esquecer de pouco a pouco e sobreviver, ou então, mata-as.

Creia-me, André, que só a morte, ao romper todas as nossas ligações com a vida e as coisas, é única capaz de nos curar do desejo eterno e onipresente de imortalidade, portanto, oferecer-nos a total liberdade.

Nota da Redação: André Jammes é um personagem, que dialogará com Proust sobre as temáticas mais relevantes encontradas em “Em Busca do Tempo Perdido”. A presente entrevista é parcela do livro “Entendendo Proust”, de autoria de Carlos Russo Junior.

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