O teatro de Eurípides, em seu maior momento, reflete a desestruturação social pela qual passa a polis e a democracia grega.
Em seu drama, a loucura que impregnou Medéia, será a companheira do maior dos heróis mitológicos, tomando o lugar do comportamento consciente, racional. “Héracles” simboliza um mundo em ruínas, onde os golpes da sorte e o acaso fraturam a ordem estabelecida. Este Hércules pouco lembra o herói da tradição mitológica que com seus trabalhos tornou o mundo mais habitável. Agora ele é um homem livre, não subjugado pelos deuses, retornando para uma vida familiar ansiosamente esperada, junto ao pai, esposa e filhos.
Mas entre ele e a família interpõe-se Lico, o tirano Tebano, assassino de Creonte, pai de Mégara, esposa do herói ausente, que crendo estar Hércules morto, decidi-se por eliminar toda a família, aqueles que poderiam, um dia, despojá-lo do trono usurpado.
Tiranos não conhecem seus limites e possuem a empáfia tradicional dos hoplitas, guerreiros de posses aristocratas, desprezando aqueles que lutam com arco e flecha. Anfitrião, pai de Hércules ausente, defende a “arete”, a honra do filho contra as infâmias do tirano. Relata alguma das façanhas do filho e diz que “o hoplita é um homem escravo das armas, somente pode subsistir ao combate em formação unida de companheiros bravios; já o arqueiro, posto à distância, resguarda da morte a si e aos outros”. “Na luta, o mais sábio é fazer mal aos inimigos sem escudar-se na tické, na sorte… Teu desejo de matar-nos é filho de tua covardia e eu a entendo, pois os filhos de Hércules possuem os mesmos olhos de Górgona, onde tu vês espelhar a própria morte no futuro… Mas se desejas merecer o cetro que ora deténs, deixa-nos partir”.
Dirige-se, então, ao Coro em pedido de solidariedade. A soberba e a brutalidade de Lico tenta impedir os velhos anciãos de se manifestem e os ameaça: “Recordeis que sois escravos de minha tirania”. Ordena, então, que tragam madeira e que queimem toda a família de Hércules no próprio altar de Zeus, onde haviam buscado guarita.
Anfitrião somente pode aconselhar que “prolonguem o tempo de vida, já que todos os humanos são frágeis… afinal, a luz me é cara e amo a esperança”. Responde-lhe Mégara, esposa de Hércules: “A mim também, velho, mas como esperar o inesperado?”. Anfitrião: “No adiamento dos males há sempre alívio… Pois aqueles que são prósperos o são até o fim, porque todas as coisas se afastam uma das outras; o melhor homem é aquele que sempre na esperança confia: o desesperar é próprio do imprudente.”
Como veremos ao final da tragédia, mesmo a esperança carece de sentido no caos, dado que fatores imprevisíveis e atilados com o acaso comandam o resultado das ações dos homens.
Enquanto isto, a mãe prepara as crianças com as vestes funerárias. Mégara: “Quem é o sacrífice destes infelizes, ou o assassino de minha desditosa vida?”
Anfitrião ao recitar os feitos de seu filho, deixa claro a hybris em que aquele herói incorrera: seus feitos, de tão maravilhosos que são, aproximam-no dos feitos dos deuses e descer ao Hades sem estar morto, desejando o retorno, configuraria a maior das desmedidas.
Eurípedes transmite à polis a mensagem de que os tiranos são bárbaros, maus e tratam os homens como escravos. Não constituem solução para a decadência da democracia da pólis. O Coro dos anciãos tebanos responde à altura: “Nunca me dominarás impunemente, nem obterás o que consegui com esforço e fadiga. Volta para o lugar de onde vieste (Lico é estrangeiro em Tebas) e lá pratiques as tuas desmedidas. Enquanto eu viver não matarás os filhos de Hércules… Óh destra mão, como desejaria empunhar a forte lança e não chamarias escravos a homens livres… Não é sensata uma cidade enferma de rebeliões e de más decisões, ou jamais teria te recebido como déspota”.
Enquanto isso, o herói que descera ao Hades para de lá retirar o cão Cérbero, retorna a tempo de salvar sua família. Mégara e Anfitrião vêm a aproximação de Hércules e sem saberem tratar-se de uma sombra ou de um ser de carne e osso, saúdam-no como a um salvador. Colocam Hércules a par da morte de Creonte, a expulsão da própria casa e a condenação à morte a todos, imposta por Lico. Que Euristeu enviara arautos a anunciarem a morte do herói, o que estimulara Lico a agir.
Hércules pergunta onde estariam a deusa Decência e seus amigos e como resposta obtém: “Eles (os déspotas) vivem longe desta deusa e a má sorte não tem amigos”. A primeira reação de Hércules é a própria selvageria: quer destruir o palácio dos tiranos, “arrancar a ímpia cabeça e lançá-la aos cães”; “outros dilacerarei com minhas flechas, e encherei os rios de cadáveres”. Mas o ponderado pai lhe recomenda: “É da natureza, filho, amar os amigos e odiar os inimigos, mas não sejas tão apressado”. E fornece a chave da vitória de Lico contra o rei Creonte: “Muitos pobres têm o tirano como aliado, pois quando se revoltaram o fizeram para pilhar seus vizinhos mais ricos; mas seus bens foram gastos e evaporaram-se pelo ócio”. Pede que o filho ali permaneça, pois Lico não tardará a vir executar a sentença de morte que terminará, numa peripécia, sendo a sua própria.
Lico ao chegar é atacado por Hércules. Estando morto, o Coro começa sua danças: “Danças, e festas ocupam Tebas, as mudanças de lágrimas são câmbios da sorte. Foi-se o novo rei, o antigo domina, a esperança voltou”. “Os deuses buscam conhecer os justos e os injustos. O ouro e a prosperidade tiram o juízo dos “mortais e trazem em seu rastro um poder injusto.” “Ninguém suporta olhar o tempo futuro; ao abandonar a lei e favorecer aquilo que é ilegal, rompe-se o obscuro laço da felicidade.”
No momento seguinte, o Coro transtorna-se; evapora-se a alegria, e um pavoroso espectro é visto rondando o palácio. Íris, a mensageira dos deuses apresenta-se acompanhada de Lissa, a loucura, filha de Nix, a noite. Dirigindo-se ao coro, diz ao que veio: “Agora que o filho de Alcmena terminou os trabalhos de Euristeu, Hera quer atá-lo à derrama de sangue familiar através do assassinato dos próprios filhos e o mesmo quero eu.” (como se mensageiro tivesse opinião a dar). Ordena à indecisa Lissa que derrame sobre Hércules a loucura puericida, ou “os deuses de nada valerão e grandes serão os mortais, caso Héracles não seja punido”. Como Lissa vacila, pois não lhe agrada visitar homens amigos, Íris deixa claro que a esposa de Zeus não enviou “a loucura para que ela seja sensata”.
Lissa toma Apolo por testemunha de que fará o que não deseja, mas que assim mesmo: “Romperei o teto e destruirei o palácio, após aniquilar as crianças; ele ao matar os filhos nada saberá, até livrar-se de meu furor”. E passa a descrever a reação de loucura que acomete o herói: “Sacode a cabeça, gira as pupilas onde se reflete o olhar da morte, não controla a respiração, muge”. Convoca as Erínias a avançarem para dentro do palácio. A tarefa de Íris está cumprida, a ordem dos deuses será seguida. O Coro está fora do palácio onde Hércules caça seus próprios filhos e sua mulher. O prédio parece desabar e ao final de algum tempo, entra um Mensageiro que contará as desgraças ocorridas no seu interior.
No delírio em que entra, Hércules confundirá seus filhos com os de Euristeu, o meio-irmão- inimigo, às ordens de quem tornara o mundo mais habitável. Hércules trucida sua mulher e os próprios filhos. Do massacre salva-se, tão somente, o infeliz pai.
Não fora gratuito o retorno dos reinos que somente aos mortos pertence; à transgressão realizada somara-se o descaminho dado ao cão tricéfalo, guardião da entrada dos Hades. Temos, então, o ser vivente que livrara a terra dos piores monstros, que ao transformar-se no assassino da própria família, tornara-se um avatar dos monstros irracionais que combatera.
Ao final do massacre familiar, o herói está destruído; nem mesmo o consolo na própria morte, por suas mãos manchadas com o sangue familiar, ele consegue perpetrar.
Eurípides coloca Teseu, rei de Atenas, com um deus ex-machine em cena. Toda a peripécia é contada por Anfitrião a ele, que dá ao mortificado Hércules toda a prova de sua philia, de sua amizade. Teseu odeia aqueles que apenas são amigos na bonança. Estende sua mão fraterna e diz “quem é nobre dentre os mortais suporta o que vem dos deuses e não o rejeita”.
Hércules: “Minha vida já não é vida e nem antes o era; Zeus, seja ele quem for, gerou-me inimigo de Hera. Pai eu considero a este velho e não a ele”. Depois de todos os seus feitos, ter na loucura realizado a matança dos filhos, não poder habitar Tebas, tão pouco poder ir a Argos ou estar entre amigos… “Para um homem outrora ditoso, são aflitivas mudanças; já para aquele que esteja sempre mal, este nada sofre: é infeliz de berço”. “Por que terei que viver uma vida ímpia e inútil?”
Mas a firme amizade acena para o antigo herói psiquicamente destruído a continuidade da vida. Hércules já caminha como um simples mortal, triste e moralmente desestruturado. Teseu: “Acompanha-me à cidade de Atenas onde te purificarei e compartilharei contigo tudo o que possuo… Quando morrerdes e fores ao Hades, toda Atenas te honrará com sacrifícios e monumentos… Agora precisas de amigos, pois quando se é estimado pelos deuses, os amigos não tão são necessários, pois o deus ajudando já é o bastante”.
Os deuses, em Eurípedes, deixaram de proporcionar harmonia ao mundo dos mortais; existem, mas num mundo que lhes é próprio, em que “nada lhes falta”. Todo o demais, “são contos dos poetas”.
O mundo euripidiano, reflexo do momento político e social de desagregação social, não comporta grandes reis, tiranos, heróis. O caos, a incerteza, a instabilidade e imprevisibilidade da sorte se instalaram no universo que, outros antes dele, acreditavam unificado e harmonioso.