A figura da Esfinge, misto de mulher e leoa alada, devoradora de homens, inquire Édipo sobre o enigma: “Qual é o ser que é dípous, tripous e tetrapous?”
Nesta tragédia- tipo, as mesmas palavras irão, quando pronunciadas por pessoas diferentes adquirir sentidos ambíguos e mesmo opostos, dado o ponto de vista a que direcionem o seu valor semântico, quer seja o da linguagem religiosa, o do direito, ou o linguajar da pessoa comum.
A casa dos Labdácias trazia em si uma maldição, que principia com Pelops e tem continuidade com o coxo Labdco, pai de Laio. Laio, o pai de Édipo, que cometera na juventude uma desmedida: convidado por um amigo hospedara-se em sua casa e apaixonara-se por Crisipo, seu filho. Ultrapassara suas medidas imitando Zeus em sua pederastia divina, com Ganimedes. Além disso, Crisipo, pressionado pela voracidade sexual do pederasta, suicida-se e o pai amaldiçoa Laio.
Desta maldição decorrerá o oráculo apolíneo de que o filho que ele tivesse o mataria e casaria, em incesto, com sua mulher. Laio evita filhos, mantendo apenas relações anais com Iocasta, sua mulher, até que um dia, embebedado, desvirgina-a. Agora Jocasta engravida e dará à luz o filho destinado a cumprir o oráculo maldito, Édipo, “o dos pés inchados”.
Édipo-Rei passa-se em Tebas, diante do Palácio de Real, onde o coro dos anciões joelhado, representando o povo, é acompanhado pelo sacerdote de Zeus. O fato de estar ajoelhado é um símbolo de que Édipo era tratado como um deus ou como um tirano, pois tudo podia e sabia. “Édipo, tu que és o mais sábio dos homens”. Pela boca do sacerdote o rei será comunicado sobre calamidades que assolam a cidade: a peste que a dizima, a infertilidade do gado e das mulheres. Édipo declara-se condoído pela dor dos tebanos, que, inclusive, “padece as dores de toda a cidade, e as próprias dele.” Declara ter enviado Creonte, seu cunhado ao templo de Apolo para consultar o oráculo sobre o que fazer para salvar a cidade. E assina pela própria palavra a sua sentença futura ao dizer: “considerai-me um criminoso se eu não executar o que o deus ordenar”.
Creonte retorna e tenta fazer com que Édipo tenha com ele uma audiência particular, mas o rei insiste em que o oráculo seja dito perante o povo prostrado. “O deus quer que purifiquemos esta terra da mancha que ela mantém… que urge expulsar o culpado, ou puni-lo com a morte, dado que a cidade está maculada pelo sangue derramado.” O sangue derramado era o de Laio, antigo rei e para o qual o deus exigia a punição do assassino, dele que se encontrava ali mesmo, em Tebas.
Édipo, na busca da verdade, questiona Creonte por não haver investigado, no passado, a morte do rei que partira para ouvir um oráculo em Delfos e fora assassinado durante a viagem. Creonte responde: “Outra calamidade nos afligia, a Esfinge com seus enigmas obrigou-nos a deixar de pensar nos fatos incertos.” Ora, o que é mais incerto que um enigma?
Édipo decide que constitui seu interesse auxiliar o povo na descoberta do criminoso, e que o fazendo, “serviria à sua própria causa.” “Que não recuará diante de nenhum obstáculo … ou seremos todos felizes ou ver-se-á a ruína total”
O que Édipo fará será justamente o oposto, destruindo seus próprios interesses, destruindo-se somente a si mesmo, dentro da anfibologia trágica. O povo satisfeito se retira, assim como Creonte. Entra o coro dos anciãos e perante eles, Édipo lança a maldição, sem saber que a si próprio vitimiza: “Quem quer que saiba quem matou Laio, filho de Lábdaco, fica intimado a vir à minha presença e dizer… o criminoso que fale, antecipando-se ser acusado, pois a única punição que sofrerá será o banimento”.
O ostracismo por dez anos era uma punição recentemente adotada pela democracia grega, que atingia alguns delitos, mas também os dissidentes ou aqueles que se sobressaíssem demais na sociedade, que poderiam ser tentados a se tornarem tiranos.
Temos aqui o mito, de um passado muito remoto, discutindo as instituições do presente da democracia. O rei prossegue: “Que ninguém receba o assassino de Laio porque ele é uma nódoa infamante… eu quero que este criminoso desconhecido seja sempre um maldito! Que seja rigorosamente punido, arrastando, na miséria, uma vida desgraçada..”
Ao rei responde o Corifeu: “Conheço alguém que conhece os segredos profundos: Tirésias!” Mandado buscar, entra Tirésias, cego e velho, guiado por um menino, que, inquirido, responde: “Oh! Terrível coisa é a ciência quando o saber se torna inútil! Do contrário não teria consentido vir até aqui. Ordena que eu seja conduzido à minha casa, será melhor para mim e para ti, oh rei!”
O conhecimento, coisa terrível! Édipo, o decifrador de enigmas que não consegue decifrar o seu próprio! Perante a cólera de Édipo, Tirésias que preferia o silêncio, mas dizendo entre – palavras que a tudo conhece, rende-se: “Será a verdade? Pois eu é que te ordeno que obedeças ao decreto que tu mesmo baixaste, e que, a partir deste momento, não dirijas a palavra a nenhum destes homens, nem a mim, porque o ímpio que está profanando a cidade és tu!”…”És tu o assassino que procuras!… eu te asseguro que te uniste, criminosamente, mas sem o saber, aqueles que te são mais caros e que não sabes ainda a que desgraça em que te lançaste.”
Édipo não o escuta; aquele tirano orgulhoso que tudo pensa saber, que não conhece seu “metron”. Acusa Tirésias, o vidente, de estar em conluio com Creonte para tirar-lhe do poder. Tirésias é claro: ”Creonte nada concorreu para o teu mal; tu somente és teu próprio inimigo!” Édipo, em sua desmedida, busca algum culpado na cegueira da alma: “Oh riqueza, oh poder, glória de uma vida dedicada ao saber, quanta inveja despertais contra o homem- o decifrador de enigmas- que tantos admiram”. Tirésias como a “boca pela qual fala Apolo”, coloca-se ao mesmo nível de Édipo, recusa qualquer subordinação a mortais como Creonte e lhe diz: “Tu tens os olhos abertos para a luz, mas não enxergas teus males, ignorando quem és, o lugar onde estás, e quem é aquela com quem vives. Nem sabes de quem és filho e és o maior inimigo dos teus. Pensas veres tudo claramente, mas em breve cairá sobre ti a noite eterna… pois nenhum mortal mais que tu sucumbirá ao peso de tamanhas desgraças.”
Édipo o insulta e Tirésias que lhe responde: “Essa grandeza é a causa da tua infelicidade… O assassino de Laio está aqui! .. ver-se-á que ele é ao mesmo tempo irmão e pai de seus filhos, filho e esposo da mulher que lhe deu a vida , e que profanou o leito de seu pai, a quem matou. Vai Édipo, pensa sobre tudo isso em teu palácio..”
Tirésias reposicionou o enigma da Esfinge. Aquele proposto e respondido por Édipo, como sendo o do homem “genérico”: “quem caminha sobre duas, três e quadro pernas? ”; na verdade a pergunta era um enigma sobre o futuro dele mesmo, Édipo, o homem “real”: sobre duas pernas quando enfrenta a fera, sobre três no desespero e cego e sobre as quatro pernas com sua filha no exílio!
A cena a seguir é protagonizada por Édipo e Creonte. Acusado pelo primeiro de traição e que quer aplicar-lhe, como tirano, a pena de morte, exige obediência. Creonte contesta que ele somente seria obedecido se “o que ordenasse fosse justo, pois, apesar do cetro, a cidade não lhe pertence”. Apenas o coro, simbolizando os cidadãos, conseguirá fazer com que o tirano desista da condenação do cunhado, que encerra desta forma o discurso: “Um caráter como teu é fonte de dissabores.”
A conversa seguinte será entre Édipo e Jocasta, quando ela, para acalmá-lo lhe diz que é impossível que ele tenha sido o assassino de Laio, conforme dissera Tirésias: “Nenhum mortal pode devassar o futuro… Um oráculo foi outrora enviado a Laio… o destino do rei seria o de morrer vítima do filho, fruto do casamento comigo. Ora, todo mundo garante que Laio morreu assassinado por salteadores estrangeiros, numa encruzilhada de três caminhos. Quanto ao filho que tivemos, muitos anos antes, Laio amarrou-lhe as articulações dos pés e ordenou que fosse precipitado de uma montanha inacessível. Logo, deixou-se de realizar o que Apolo predissera… Não te aflijas, pois o que o deus julga que deve anunciar, o faz pessoalmente.”
Pois é justamente esta narrativa de Jocasta que conturba, pela primeira vez, a alma de Édipo: o local e o número de acompanhantes que tinha Laio quando fora morto! “Ai de mim! Receio que tenha proferido uma tremenda maldição contra mim mesmo, sem o saber. “Ele pressente ter tudo descoberto, mas é apenas como o matador de um agressor e preponte Laio, que aquele que se crê filho de Políbio, se vê.
Conta à mãe o que presume ser a sua história: “Meu pai é Políbio, rei de Corinto e minha mãe, Merope…durante um festim em Corinto, um homem pôs-se a me insultar, dizendo-me que eu era um filho enjeitado… no dia seguinte, parti até Delfos e o oráculo não respondeu à pergunta que lhe fiz ( sobre a paternidade) mas anunciou-me uma série de desgraças, horríveis e dolorosas: que eu estava fadado a unir-me em casamento com minha própria mãe, que apresentaria aos homens uma prole malsinada e que seria o assassino de meu próprio pai. Decidi, diante de tais predições, exilar-me para sempre de Corinto, para que aquelas torpezas jamais se realizassem. Foi quando, numa encruzilhada como a que descreveste, matei um agressor e seus acompanhantes. Se aquele velho for Laio, terei sido o seu assassino.”
Continua cego aquele que se crê sábio e vê a luz do dia. É, então, convocado ao palácio o único sobrevivente da luta em que fora morto Laio, aquele que dissera que a comitiva real havia sido vítima de salteadores. Neste ínterim, chega também ao palácio um mensageiro que diz que, em Corinto, Édipo fora proclamado rei, após a morte de Políbio e que o povo o espera. Édipo pergunta sobre Merope, que viva, ainda os oráculos lhe inspiram o receio de incesto. O mensageiro lhe diz que deve se sentir livre e tranquilo pois Políbio jamais fora seu pai de sangue e nem Merope sua mãe, a criança fora entregue aos reis por suas próprias mãos, recolhida que fora numa gruta e salva por ele mesmo, o mensageiro. Outro detalhe faz com que o infeliz Édipo comece a enxergar o que não queria ver: a criança tinha as extremidades do corpo furadas e era “oidipos”, tinha os pés inchados, como os seus próprios. Finalmente o mensageiro conclui que outro pastor dera-lhe, na verdade, a criança e esse, por coincidência, era o mesmo servo que sobrevivera à luta na encruzilhada de três caminhos, quando do assassinato de Laio.
Jocasta a tudo entende e tenta demover o filho da convocação do pastor e que “esqueça tudo”. Mas Édipo, do começo ao final do drama permanecerá psicologicamente o mesmo, diz Vernant: “o homem de ação e decisão, possuidor de coragem que nada pode abater, inteligência conquistadora e nenhum erro moral, nenhuma falta deliberada cometida.” Ele irá até o final. “Infeliz, tomara que jamais venhas, a saber, quem é”, diz a mãe.
Mas a cegueira ainda o não abandonou. Questiona sua origem, não como filho de Laio e Jocasta, mas como a de um enjeitado de baixa extração social, ainda se considera um afortunado aquele que é o mais digno de piedade dos homens. O servo convocado tira-lhe as últimas vendas, obrigando-o, finalmente, a ver a verdade de sua origem.
“Ai de mim, está tudo claro, óh luz, que eu te veja pela derradeira vez! Tudo me era interdito: ser filho de quem sou, casar-me com quem casei, ter matado aquele que não poderia matar”.
O coro dos anciões: “Condoído, eu choro tua desgraça, com lamentações de sincera dor! Para dizer-te, também, que foi graças a ti que um dia pudemos respirar tranquilos e dormir em paz.”
Jocasta suicida-se e Édipo perfura ambos os olhos com a fivela de ouro de seu manto, dizendo: “Não quero mais ser testemunho de minhas desgraças, nem de meus crimes! Nas trevas não verei aqueles a quem nunca deveria ter visto, nem reconhecerei a quem não quero reconhecer… Sim, foi Apolo o autor de meus sofrimentos, mas ninguém arrancou os meus olhos; fui eu mesmo… uma criatura odiada pelos deuses.”
O Corifeu encerra a tragédia: “Habitantes de Tebas, minha Pátria! Vede este Édipo, que decifrou os famosos enigmas! Deste homem tão poderoso quem não sentirá inveja? No entanto, em que torrente de desgraças se precipitou! Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida.”
Édipo tirano foi glória e peste; instalara-se no poder através de um casamento oportuno e desejava perpetuar-se no poder. Os cidadãos de Atenas que presenciam a tragédia desejam a alternância do poder, a base da democracia. Os tiranos haviam trazido benefícios, como figurativamente Édipo ao derrotar a Peste-Esfinge, mas isto não lhes concedia o direito a perpetuarem-se no poder.
Finalmente, cumpre-nos recordar a publicação de Vernant: “Édipo sem Complexo”, onde se contrapõe à generalização de Freud relativa ao “Complexo de Édipo”, insistindo em que: Édipo jamais teve consciência do incesto por ele praticado; que tinha por mãe e por pai outras pessoas, das quais se afastara para evitar justamente o oráculo que o mancharia; quando se casa com Jocasta o faz por uma imposição da cidade de Tebas, que ele livrara da peste e este casamento, com uma mulher muito mais velha, nada tinha a ver com complexos ou sentimentos ditos “edipianos” de posse e incesto e, finalmente, que o parricídio em nenhum momento reveste-se de algum sentido psicológico, pois fora a reação de um jovem orgulhoso à agressão desmedida de um rei presunçoso que o chicoteara na face.