Do “Inferno de Dante” surge o moderno sentir feminino.

Dante Alighieri foi político (um dos dirigentes de Florença), poeta, estudioso da cosmologia e da ética de São Tomás de Aquino. Quando seus inimigos chegaram ao poder, refugiou-se e viveu no exílio o restante da vida. E no ostracismo escreveu sua obra prima, “A Comédia”, denominada por Boccaccio de “A Divina Comédia”, o maior poema de todos os tempos!

Dante, para aventurar-se pelos caminhos que conduzem ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso, necessitava um guia. No poema, ele escolheu Virgílio, poeta criador da “Eneida”, o poema que unira o mito grego ao Império Romano, mais de dez séculos antes do nascimento do poeta. Afinal, o Império Romano triunfante necessitava substituir seu “Rômulo e Remo”, amamentados por uma loba plebeia, por um mito fundador! E o escolhido foi Eneias, fugitivo da destruída Troia pelos gregos, filho do rei troiano.

O poeta Virgílio, representa a Razão e a Sabedoria Divina. Um longínquo platônico amor da juventude, Beatriz, que em sua pureza ascendera ao Paraíso após a morte, intercedera pelo poeta que estava “perdido” em seu exílio e lhe enviara Virgílio, Mestre e condutor do para leva-lo a conhecer o Inferno e o Purgatório terrestres, e deles dar conhecimento aos seres viventes. A própria Beatriz o conduzirá pelo Paraíso.

No Inferno, que também o é terreno, surge o Feminino Moderno.

Aquele que nós julgamos ser um dos ápices do poema, seu Canto V, ocorre num dos primeiros círculos do Inferno.

Dante se depara com um casal todo entrelaçado, que é açoitado e embalado pelos ventos mornos, Francesca e Paolo de Rimini.

E será esse Canto que podemos considerar como fundador da essência do moderno sentir feminino!

Pelos idos de 1280, vivia Francesca, uma nobre de Ravena, afamada pela beleza, aquela que inspirará Dante Alighieri; era filha de Guido da Polenta, hospedeiro do poeta exilado, anos após. Guido era o governante da cidade, que estivera em guerra com a cidade vizinha de Rimini. Por um acordo de paz, o pai concedera Francesca em casamento a Giovanni Malatesta, muito mais velho e de péssima aparência. Como ele soubesse que a filha não concordaria em casar-se, o enlace foi realizado por procuração, através de um irmão jovem do noivo, Paolo Malatesta. Acontece que os cunhados não tardaram em se apaixonar e, atraídos para uma cilada pelo marido enganado, foram ambos assassinados.

Até aí basta-nos a história, pois a Francesca de Dante é antes de qualquer coisa uma criação de artista, de gênio, a “primogênita, a primeira mulher viva e verdadeira surgida no horizonte poético dos tempos modernos (1)”, personalidade poética de um ideal cabalmente levado a termo, com todos os conceitos prevalentes na poesia da época: amor, elegância, pudor, pureza e, principalmente, coragem, determinação e gentileza.

Ao adentrar nos domínios do Inferno, Dante leu no letreiro escuro:

“Por mim se vai das dores à morada,

Por mim se vai ao padecer eterno,

Por mim se vai à gente condenada…

Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança.”

Com Dante, um homem vivo a visitar os mortos, ocorreu precisamente o oposto, pois criou uma Francesca que se tornou imortal, símbolo de o “eterno feminino que nos atrai para o alto”, primeira mulher a adquirir vida na literatura moderna!

Dante, que tecia versos por um amor puro localizado no Paraíso onde reinava sua Beatriz, uma criatura pouco mulher, mais para uma “angelleta bela e nuova”, encontrou o verdadeiro Amor, aqui no princípio do Inferno, em Francesca. E onde existe o Amor, rescinde-se à Vida.

E Francesca nada tem de divinal, ela é humana e terrestre, um ser frágil e corajoso, apaixonado, capaz de assumir sua culpa e de culpar, com todas as faculdades feminis que geram emoções irresistíveis e para falar a verdade, a Vida é isto.

Ela não tem qualidades vulgares como o ódio, o rancor, a inveja. Tampouco qualidades tidas como positivas, boas, caridosas, divinais. De seu íntimo exala exclusivamente Amor, Amor, Amor! E neste está sua ventura e sua desdita!

Não busca desculpas pela cilada montada pelo marido que a levou à morte. Abraçada ao espectro do amante, Paolo, sua palavra é de uma brutal sinceridade: “Ele me amou, eu o amei, é tudo!” “O Amor é para ela força a que não se pode resistir! Uma onipotência e fatalidade que se assenhora de toda a alma e a conduz ao incontrastável, ao inevitável”! (2)

A criação de Dante foi a primeira florescência da qual surgiram as personagens mais amadas e marcantes da poesia moderna: seres delicados feitos para o amor, nos quais nada há que resista e reaja, flores para as quais o forte vento chega a ser mortal, como Sonia Marmieladovna ( “Crime e Castigo”, Dostoievski), Albertine (Proust), Helena (Machado de Assis), Ofélia e Julieta ( “Hamlet” e “Romeu e Julieta”, Shakespeare) … Mulheres arremessadas num mundo que não compreendem e onde também não são compreendidas, mas dele participam e lutam pelo Amor.

A heroína de Dante abraçada a Paolo é um casal tangido pelo vento de sua própria paixão, que se aproxima mais e mais do abismo que eles próprios cavaram e onde podem se precipitar. Mas não importa, isso eles o fazem despreocupadamente, desde que enlaçados, antes mesmo de terem sorvido a vida, a beleza e a juventude.

Paolo que se mantém na derrota como indomável e rebelde, se deixa conduzir pelo Inferno. Ele é a expressão muda de Francesca, o corpo que acompanha a voz. Francesca fala, Paolo chora.

Francesca é uma mulher e como tal, vencida, derrotada pela paixão, pois a poesia da mulher consiste em mesmo quando é vencida, manter seu espírito imaculado, e “o não sei o que de macio, puro, e delicado, que é o eterno feminino, ser gentil e puro”(3). Em Dante, o feminino em sua debilidade e na desgraça da luta conserva intocadas as qualidades essenciais, arranca lágrimas do poeta, o viajante mortal e o derruba como se também morto fosse.

Francesca é autêntica! Nada disfarça, nada oculta e confessa com doçura o seu amor. Não possui uma só queixa ou arrependimento, nem sequer busca atenuante ou revolta-se contra Deus ou o destino. “Paolo me amou, porque eu era bela, eu o amei porque me comprazia ser amada e no prazer dele sentia o meu prazer.” E isto é confessar um amor, que pessoas vulgares não o fazem nem a si próprias.

E quando Paolo lhe beijou a boca toda tremente não era de medo que tremia, mas de paixão, paixão autêntica e verdadeira, desejo de posse e de volúpia.

Agora, unida a ele, o sentimento os purifica e dentro de uma aura de doçura e de ternura que sopra levemente de todos os lados, cria-se uma rara delicadeza de sentimentos e tal suavidade só nos alcança a languidez da mulher apaixonada.

“Ma se a conoscer la prima radice

Del nostro amor tu hai cotanto affeto”.

Através do afeto Francesca exprime o seu desejo de vida e morrer para ela é somente perder-se a “bella pessoa” que tanto agradava ao homem amado! Nada mais!

E se o Amor para Paolo foi uma necessidade do coração apaixonado, para ela foi uma necessidade de mulher amada:

“Amor ch’a com gentille rato s’apprende…

Amor ch’a nullo amato amar perdona…

Amor condusse noi ad uma morte”.

Nestes três versos está todo o romance eterno do Amor tal qual se apresenta à mulher: Amor que o coração rapidamente prende a si, Amor que a amado algum dispensa, Amor que a somente juntos a morte pode carregar.

Pois aqueles dois estão “colados” e se amam por toda a Eternidade, não porque estejam danados no Inferno, mas precisamente porque foram “condenados” por Amor. Eles jamais poderiam estar num etéreo Paraíso, pois somente no Inferno o que é terrestre, dantesco, o ser humano pode permanece imutável!

Pois os pecadores de Dante, habitantes do Inferno, conservam as mesmas paixões, e são impenitentes, embora condenados; carregam todas as suas qualidades e paixões, por isso Francesca amou, ama e amará e não afastará de seu coração este Paolo.

“…Eterno… martir…sottera…oimé…ne aspeta!

Paolo eterno fia Il nostro amoré.”

Eternal amor, eternidade de martírio, o pecado praticado (a traição ao marido ao qual fora forçada a se ligar) o poeta o lança à sombra. O pecado do sexo é o ponto alto da tragédia, mas é um “pecado” que está entranhado na própria alma dos amantes! E por coexistirem nas almas amor, pecado e culpa, eles não podem se destruir ou excluir. Se destruirmos a consciência do pecado e culpa teremos destruído Francesca de Dante!

“Questi, que mai da me non fia diviso,

la bocca mia bacio…”

Isto é alegria e é dor, é amor e é pecado, terra e inferno, o amargor do amor que tem por herança um inferno, um sentimento complexo, contraditório por ser anjo e demônio, paraíso e inferno: é, enfim e ao cabo, o coração do próprio homem!

Frauda-se o próprio Dante Alighieri ao insistir que a angelical Beatriz seja sua musa.

Não, a Musa em todo o canto é o próprio Dante, que transpira piedade, fraternidade, enlevo pelo Amor e pela Dor de Francesca e de Paolo, suas criaturas! Dante é o homem vivo no reino dos mortos, que leva para lá um coração de homem e que torna profundamente humana a poesia daqueles que já não vivem.

Nessa produção genial proliferam os germes mais delicados das criações da poesia moderna, centrada na mulher liberta das abstrações e do misticismo, que sai de suas páginas, Ama e Vive!

Referências: ¹ J. W. Goethe, ² F. de Santis, ³ E. Auerbach.

Observação: A primeira pessoa que me encorajou e me introduziu no caminho de Dante, foi meu amigo e companheiro, aquele com quem com- partilhei “il pane”, Alípio Viana Freire. No dia de sua partida trabalhei neste texto, o qual lhe dedico. Até sempre Alípio, que sua presença me sirva de guia tal qual Virgílio, o Mestre de Dante, nos sombrios tempos em que vivemos, onde nos defrontamos com a loba, com o leão e com a pantera do terror e do fascismo.

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