A literatura e a filosofia sobreviverão em tempos de sociedade líquida?

A literatura e a filosofia chegam cada qual a um entendimento do mundo e dos humanos recorrendo a meios diferentes, na justa medida em que tanto a racionalidade quanto a sensualidade são caminhos necessários para a compreensão do dos mesmos.

A literatura, por seu lado, pode instigar nas pessoas uma reflexão profunda revelando tanto o estranhamento do mundo, quanto a ansiedade na busca e na perda de rumo na vida, manifestando detalhes e minúcias da natureza humana.

Logicamente, ela tem a propensão a inquietar e despertar, sendo muito superior a qualquer coisa que a análise semântica pós-moderna e os jogos de palavras possam oferecer.

Por outro lado, a filosofia apoia-se na especulação metafísica racional para interpretar e tentar questionar o homem e o mundo.

Logo, há dois tipos básicos de pensadores: um deles é o filósofo, que se apoia na especulação, o outro é o autor literário, que se vale de imagens. Desde a Grécia Antiga, cada qual recorreu a métodos diferentes para proporcionar às gerações futuras o conhecimento a respeito da situação existencial humana, seus dilemas e a própria natureza humana.

A ideia de uma “sociedade líquida” deve- se, como todos sabem, a Zygmunt Bauman. Ela começou a se delinear com a corrente de pensar dita pós-moderna, um termo guarda-chuva que percorre os mais diversos fenômenos sociais, dentre os quais a filosofia e a literatura.

Outro pensador, Bordoni, já classifica o pós-modernismo como um movimento de caráter temporário, pelo qual passamos quase sem perceber e que um dia será estudado como o pré-romantismo. O pós-moderno seria, então, uma espécie de balsa que nos levou da modernidade a um presente sem nome, líquido na essência.

Hoje, a maré deste pensamento pós-moderno surge num crescendo e, diante desta vertiginosa época de empobrecimento espiritual, as pessoas devem buscar inspiração tanto na literatura, quanto na relação das pessoas com suas comunidades, naquilo que conhecemos sobre o nome de política.

Afinal, que rumo a humanidade está seguindo? Serão os seres humanos capazes de preverem o futuro, ou será que um novo conjunto de utopias será estabelecido?

Seja qual for a resposta, a literatura pode sem dúvida proporcionar até certo ponto um relato da sociedade na qual as pessoas se veem envolvidas hoje, embora não consigamos mais “nos afogar na orgia literária”, como se propunha Flaubert no século XIX. Teremos de uma forma ou de outra de recorrer ao raciocínio metafísico, à filosofia e à relação comunitária, isto é, à política.

É claro que a literatura não se resume a replicar a realidade. A literatura clássica anglo-americana, o realismo e o naturalismo europeus foram grandes correntes literárias, e desde meados do século XIX até o início do século XX. Os escritos modernistas do século XX se voltaram para o inconsciente, abrindo um novo e incrível universo literário.

Na atualidade contemporânea, entretanto, a racionalidade já não consegue oferecer respostas para o absurdo da “sociedade líquida”, nem para as questões relacionadas ao significado da existência.

A própria filosofia afasta-se de seus temas tradicionais e tende a se encolher. Vivemos um outro momento que Bauman denominou de “modernidade líquida”.

Uma crise no conceito de comunidade de cidadãos, de onde emergiu um individualismo desenfreado, onde ninguém é mais companheiro de ninguém, mas seu adversário. Com a crise do Estado e dos partidos políticos o indivíduo foi levado também à perda de qualquer apelo a uma comunidade de valores onde pudesse se abrigar. Juntamente com o indivíduo, a própria sociedade vive um processo contínuo de precarização.

Nesse ponto cabe a pergunta: será que a literatura ainda é capaz de refletir a realidade social?

Nossa resposta é um profundo sim! Trata-se de uma questão de libertar-se da estrutura conceitual e dos dogmas, afastar a pregação do politicamente correto sem tropeçar no negativismo, tentar um retorno às tradições mais significativa dos povos, retornar às percepções genuínas do autor e narrar com a voz firme e independente do indivíduo.

Mesmo que essa voz seja extremamente fraca ou que desagrade ao ouvinte, trata-se de uma voz verdadeira, e isso tem valor enquanto literatura, pois a literatura é a afirmação que um homem faz de sua própria existência.

É claro ser relevante que o autor tenha de fato pensamentos próprios a expor, e que não se limite a meramente repetir afirmações amplamente difundidas pelas autoridades e pela mídia.

A independência espiritual do indivíduo foi e é a própria substância da literatura, e responde pela independência e autonomia da mesma.

A literatura, de toda maneira, é o despertar da consciência do indivíduo no sentido de que o autor se arma com esse conhecimento intuitivo quando observa o mundo humano e analisa a si próprio. Ele infunde seu entendimento lúcido em sua obra. E o entendimento único de um indivíduo em relação ao mundo é inegavelmente o desafio que a existência da entidade individual faz ao seu ambiente existencial. Portanto, o entendimento conquistado numa obra literária sempre traz a marca do autor individual.

É precisamente cada uma dessas histórias individuais que faz da literatura algo interessantíssimo e insubstituível.

Enquanto a especulação da filosofia se apoia no abstrato, a literatura promove um retorno à vida, às percepções das pessoas vivas e às emoções. Em outras palavras, a literatura começa em lugares que são inalcançáveis para a filosofia, e o tipo de entendimento proporcionado por aquela não pode ser substituído por esta.

Quando a filosofia clássica se imbuiu de conceitos e racionalidade para construir um sistema de especulação, que proporcionasse ao mundo um exemplo perfeito, tudo aquilo que não pôde ser perfeitamente explicado foi deixado nas mãos de Deus.

Entretanto, não há limites para aquilo que a literatura pode dizer, e ela não se apressa em se propor a definir certa visão de mundo. Ademais, sempre mantém a mente aberta e preenche a consciência das pessoas com pensamentos e emoções.

Cada autor apresenta uma visão única, mas ele não usa essa visão única para substituir os demais autores. Não é como na filosofia, na qual a crítica é a premissa para o estabelecimento de uma teoria que, com frequência, é promovida como única verdade correta e definitiva.

Apesar de a filosofia “pós-moderna” defender a ambiguidade e até a eliminação do sentido, ela é independentemente disso estabelecida com base na premissa da morte de todas as filosofias predecessoras. O raciocínio filosófico em tempos de sociedade líquida sabe que todos os movimentos sociais, cada um a seu modo sabem o que não querem, mas não o que eles querem. A própria sociedade vive um processo contínuo de precarização.

Existe um modo de sobreviver à liquidez? O primeiro passo é reconhecermos que vivemos em uma sociedade líquida, que para ser compreendida e, talvez, superada, exija instrumentos que necessitam ser ainda descobertos.

O mesmo não se dá com a literatura que nem exclui e nem abre para si mesmo um caminho por meio da crítica; em vez disso, o que ocorre é que cada pessoa apresenta seu próprio discurso, coisa que possibilita uma variedade infinita.

Nisto ela se supera na sociedade líquida e mantém sua vitalidade!

Extraído do livro: “Ensaios: 11 Pensadores e Prosadores”, de autoria de Carlos Russo Jr.

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