As mensagens do Iluminismo num momento em que a estupidez avança.

Vivemos tempos em que a estupidez, o obscurantismo e o autoritarismo mostram suas garras.

Mentiras, deturpações da história, crendices manipuladoras. A burrice se eleva a intelecto de frases feitas e acabadas, de verdades inquestionáveis extraídas do Instagram, WhatsApp, do “doutor” Google, dentre outros. A razão é sempre substituída por uma intuição emocional.

A futilidade, a incultura, a ausência de racionalidade e a boçalidade são as mães da intolerância e da desconstrução dos valores civilizacionais que a sociedade demorou séculos para consolidar!

Este é, precisamente, o momento de relembrarmos um dos movimentos que alterou a história de toda a civilização ocidental:

O Iluminismo, que surgiu na França no século XVII, atingindo seu auge no século seguinte, naquele que foi denominado de “O Século das Luzes”.

E são exatamente Luzes que faltam na sociedade líquida e distópica em que vivemos!

Os pensadores tinham o propósito de iluminar “as trevas” na qual se encontrava a sociedade europeia do século XVII. O domínio da razão obtusa e da religiosidade dogmática e intolerante dominara, desde a Idade Média.

Os iluministas acreditavam que o pensamento racional deveria substituir as crenças e o misticismo, que bloqueavam a evolução do homem.

O homem que deveria ser o centro do universo! Que a busca de respostas para questões que, até então, eram justificadas somente pela fé cega e manipulada, deveria ser guiada pela razão.

E o Iluminismo foi uma das principais fontes da Revolução Francesa, assim como dos movimentos sociais em outros países e continentes, como a independência das colônias inglesas na América do Norte e a própria Inconfidência Mineira no Brasil.

“A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, redigida na França no ano de 1789, foi um dos mais importantes documentos humanistas e democráticos, elaborado pela absoluta inspiração dos ideais do Iluminismo.

Os principais pensadores do Iluminismo foram:

John Locke, filósofo inglês conhecido como o “pai do liberalismo”; o genebrino Jean-Jacques Rousseau, com o seu ideal de um estado democrático que garantisse igualdade para todos; Montesquieu, defensor do poder político tripartite e independente (legislativo, executivo e judiciário); Diderot e d’Alembert, “Os enciclopedistas”.

Finalmente, Voltaire, o mais influente de todos eles, o grande defensor da liberdade de pensamento.

Nesse ensaio vamos nos deter no maior dos mestres do Iluminismo: Voltaire.

Escritor e polemista prolífico, ele produziu cerca de 70 obras em quase todas as formas literárias, assinando peças de teatro, poemas, romances, ensaios, trabalhos científicos e históricos.

E Voltaire principia colocando o comércio numa posição mais elevada que a religião! Aliás, ele chega mesmo a ridicularizar as religiões dogmáticas de seu tempo, tanto o catolicismo quanto o protestantismo. Por isto, na passagem seguinte, não cita uma atividade humana produtiva como o comércio, mas a especulativa para compara-la à religião.

“Entrai na bolsa de valores de Londres, lugar mais respeitável que muitas cortes. Ali se vêm reunidos deputados de todos os países para a utilidade dos homens. Lá o judeu, o cristão e o maometano tratam uns aos outros como se fossem da mesma religião; somente dão o nome de infiéis aos que vão à bancarrota. ” Afinal, entre os especuladores, não há distinção de raças e credos!

E prossegue:

“A vida comercial internacional livre, ditada pelo egoísmo internacional, é útil para a sociedade humana, dado que reúne os homens para uma atividade comum e pacífica; as religiões por sua vez são absurdas, e o absurdo fica comprovado… tanto quando cada uma delas afirma ser a verdadeira, quanto pela falta de sentido de seus dogmas e cerimônias… As coisas só ficam feias quando elas se perseguem e combatem entre si. ”

Quando trata dos seguidores de Moisés e de outros credos religiosos, Voltaire não o faz do ponto de vista do fundamento de suas convicções. Por isto emprega para uns a causa da circuncisão, para outros, a tina batismal.

Acontece que Voltaire utiliza pela primeira vez uma técnica genial, denominada de a TÉCNICA DO HOLOFOTE, praticada desde o Iluminismo até os dias de hoje. E não apenas na literatura!

A técnica consiste em iluminar intensivamente uma pequena parte de um grande e complexo contexto, deixando na escuridão todo o restante. De tal forma que se diz a verdade por dados parciais que não podem ser negados, não obstante todo o conjunto seja falsificado, dado que a verdade exige toda a verdade, assim como a correta ligação entre as partes!

Isto tudo para comprovar as origens dos diferentes tipos de obscurantismos e de manipulação das mentiras quando se tornam “verdades”.

Sabemos que o público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação social. Mesmo que o truque e a manipulação sejam fáceis de serem descobertos, falta à massa, ao vulgo, o desejo sério de fazê-lo.

E este constitui um dos truques utilizados a posteriori por todos os candidatos a manipuladores no mundo!

Voltando à cena da Bolsa de Valores de Voltaire, ele conclui com saudação: “viva à tolerância”! Deixa que cada um maneje seus negócios e diversões, onde o que importa é ficar rico! Eis uma forma de aplicação da técnica do holofote, que ilumina em demasia o que é ridículo, absurdo, ou repelente no inimigo. Voltaire tem uma forma particular e ímpar de desenvolvê-la, num tempo rápido, com enorme graça.

E pontifica a liberdade, o livre pensar!

Em Voltaire a velocidade, a ligeireza do expressar-se está a serviço da simplificação. O problema é sempre reduzido a uma antítese e a narrativa é divertida e rápida, onde se coloca sempre o preto no branco.

Temos de sua autoria um quadrinho rococó em que um cavaleiro vê a jovem Morton caminhando graciosa pela estrada, levando uma cesta no colo e indo ao mercado vender seus produtos. “Sir Robert movido pela cobiça desce num salto e a aborda com franqueza: Tenho vinte escudos em minha valise, é tudo o que tenho; tomai também o meu coração, tudo vos pertence…”

“É para mim uma honra, diz a jovem Marton.”

Voltaire expressa num curtíssimo tempo os motivos essenciais da ação humana, assim como os entende, essencialmente materialistas, mas sem chegar a ser grosseiro. Não existe nada de espiritual e nem de elevado neste quadro gracioso. Tudo são arabescos que encobrem a relação sexual acertada e a ser paga.

Mas existe o frescor herdado do Classicismo!

O romance “Cândido” contém uma polêmica contra o otimismo metafísico do pensamento do matemático e filósofo Leibniz acerca “do melhor dos mundos possível”.

A jovem Cunegundes relata o ataque dos búlgaros ao castelo de seus pais. Pai, mãe e irmão trucidados. Ela estuprada reage, ganha um corte de faca no seio e vai mostra-lo sensualmente a Cândido. “Tudo o que ocorria no castelo de mau pai era usual”.

Os horrendos acontecimentos parecem cômicos, dada a velocidade com que são narrados, frutos da vontade divina e inevitabilidade para os ofensores, em contradição com o horror dos atingidos. As desgraças correm uma atrás das outras e sempre são interpretadas como necessárias, ordenadas e razoáveis, dignas do melhor dos mundos possíveis, o que evidentemente é um disparate!

Voltaire absolutamente discorda de Leibniz no pensamento da harmonia mundial metafísica. Ela é uma quimera herdada.

Por outro lado, Voltaire falseia propositalmente a realidade na medida em que simplifica a causa dos inumeráveis acontecimentos e desgraças que se abatem sobre Cândido. As causas dos destinos humanos ou são naturais ou nela imperam a maldade, os instintos e, sobretudo, a estupidez.

Voltaire absolutamente não considera que possa existir ligação entre o caráter e o destino de um indivíduo, omitindo sempre tudo o que se refira à moral e à história em questão.

Um exemplo é a explicação de “Pangloss” para a sífilis que contraíra. Começa com a deliciosa criada Paquette, que por sua vez a contraíra de um sábio franciscano, que o recebera de uma velha condessa, que a herdara de um capitão, que o devia a uma marquesa contaminada por um pajem, herança de um jesuíta em ligação direta com um dos seus companheiros e que chega até à sífilis de Cristóvão Colombo.

Tal representação que só considera as causas naturais, e que no plano moral só salienta a sátira com relação aos padres (incluindo a homossexualidade), suprime na ligeireza todos os dados históricos e individuais que levaram ao surgimento de cada relação amorosa, “isentando” de responsabilidade os seres humanos que apenas seguem os instintos sexuais.

Voltaire está sempre inclinado a simplificar e a simplificação sempre ocorre de tal forma que a razão prática e iluminista, tal como estava se formando no seu tempo e com a sua colaboração, torna-se a única escala de julgamento e que todas as condições sob as quais se desenvolve a vida humana são exclusivamente de caráter material-natural. As condições históricas e sociais são por ele desprezadas e descuidadas.

Para o Iluminismo a sociedade humana deveria ser liberada de tudo o que se oponha ao progresso racional, inclusive condições econômico-sociais e históricas.

Por isto Voltaire constrói a realidade adaptando-a a seus propósitos. Logo, a realidade é conscientemente simplificada, incompleta, satírica e superficial. Estilisticamente Voltaire rebaixa a posição do homem.

A tendência do séc. XVIII, ao interromper o irracionalismo e a obtusa religiosidade escorrega para outro extremo e já não se dirige para o sublime, mas para o gracioso, o elegante, espirituoso, o racional e útil.

Voltaire ao completar os 67 anos, fraco e envelhecido, escreve um bilhete de agradecimento à Madame Nacker, que a ele enviara o famoso escultor Pigalle com o objetivo de esculpir sua face no bronze, aquela face macilenta que todos nós conhecemos:

“Quando minha gente viu o pessoal chegar disse: vão disseca-lo, será divertido! Todo o tipo de espetáculo diverte os homens, seja o de marionetes, de estúpidos políticos e negocistas, e até mesmo os enterros. Minha estátua fará sorrir alguns filósofos, e fará franzir o cenho de qualquer hipócrita sem vergonha: vaidade das vaidades! Mas nem tudo são vaidades, meu reconhecimento a alguns amigos e à senhora não é vaidade. ” 1770.

Aqui a ousadia iluminista na ironia diante da própria fama, a alusão polêmica aos inimigos e o termo vaidade no ancião ainda amável e vivaz, no “Século das Luzes” que ele ajudou a formatar com tanto amor e dedicação!

E este “Bilhete Rococó- iluminista”, na expressão de E. Auerbach, constitui um símbolo do Iluminismo de Voltaire, que se deve recordar nos dias de hoje!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Cadastre-se para receber novidades

Receba as novidades do site em seu e-mail

© 2022 por Carlos Russo Jr – Todos os direitos reservados