“Estamos no dia 3 de novembro de 1923 e um maço de cigarros custa 4 bilhões de marcos. A maioria das pessoas perdeu toda a fé no futuro”.
Este comentário de apresentação abre “O ovo da serpente”, realizado pelo cineasta sueco Ingmar Bergman e o título desse filme indica claramente que significado do seu autor desejou metamorfosear.
Os espectadores mergulham numa Alemanha onde, sobre o fumo da miséria, todas as coisas não passam de objeto de tráfico, inclusive as vidas humanas
E esse período do pós-guerra pareceu a Bergman o ponto de partida do nazismo.
Suas imagens mostram o crescimento do antissemitismo, as manifestações de violência nos grupos nazistas, o terror sempre latente, a impotência e o desespero da população, num governo democrata, a chamada República de Weimar, que definiu regras democráticas pela primeira vez na história moderna, fruto do desmoronamento do Império, após a derrota na Primeira Guerra.
O objetivo de Bergman, seguramente, não foi proceder a uma reconstituição histórica fiel aos primeiros anos da República. Ele tinha necessidade, antes de tudo, de um fundo de desordem moral que pudesse justificar a situação de confusão, solidão e de angústia sobre a qual se projetavam suas personagens.
Como em todos os seus filmes, está preocupado com a presença do mal no mundo que, segundo ele, se conformou ao esquecimento de Deus. O homem, despojado do sentimento do divino, não pode deixar de ser presa do medo e da morte. Assim, o herói “O ovo da serpente”, o acrobata judeu Abel Rosenberg, se encontra natural e drasticamente aprisionado pelos laços das forças do mal.
Essa visão fatalista é mais ou menos comandada pela evolução posterior da Alemanha, como se a crise dos anos 1930 se houvesse superposto à evocação dos anos 1920, momento do filme. Ora, o Partido Nazista fora fundado em 1920, e suas sessões de assalto, as SA, em 1921. No entanto, ele conta com apenas 9 mil membros em 1923, e só obtém nas eleições legislativas de maio de 28, insignificantes 2,6% dos votos. A sociedade alemã não estava gerando, quase imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, um regime fascista, MUITO PELO CONTRÁRIO!
Em contrapartida, “O ovo da serpente” consegue traduzir com força e verossimilhança, um aspecto da atmosfera consecutiva ao fenômeno da inflação. Esse aspecto é o da miséria em que se debatiam milhões cidadãos, reduzidos a expedientes para sobreviver!
Uma das sequências mais sugestivas do filme apresenta, no fim de noite, um cavalo morto em plena rua, que ainda atrelado a sua carroça é logo desmembrado por duas ou três pessoas e cuja carne é imediatamente oferecida aos raros notívagos a um preço exorbitante, por uma mulher de cujas mãos corre sangue.
Argentina, um século após, 2023.
Um candidato fascista denominado Javier Milei, nas prévias realizadas, surpreendeu a todos ao chegar em primeiro lugar, com um pouco mais de 30% dos votos. Foi o discurso de ódio, de negação da cultura, dos valores civilizatórios, da vida! Um discurso que se difundiu pelas redes sociais, tal qual aqueles proferidos pelos neofascistas Trumps e Bolsonaros.
Os canalhas do século XXI seguem a mesma cartilha, a mesma “filosofia”!
A democracia argentina foi erguida às custas de muita luta, suor e lágrimas, arrancada das mãos dos ditadores militares, tal qual a Alemanha de 1918, após uma derrota militar desmoralizante e desorganizadora da sociedade: a guerra das Malvinas.
A República conseguiu punir torturadores e assassinos, militares e policiais. Manteve-se e enquadrou as forças armadas dentro dos limites da Constituição Democrática aprovada em 1994.
No entanto, a crise econômica se agiganta. A inflação em 2023 pode alcançar até 200%! O desespero social se alastra. O desgosto, as desilusões com a política tradicional, com a corrupção de atores políticos, a sonegação que sufoca os governantes, criam espaço para aqueles que querem “destruir tudo”.
Com o neoliberalismo globalizante, os empregos foram substituídos pelos subempregados, por autônomos, por desamparados de qualquer legislação, pelos desesperados!
Nos dias seguintes às eleições prévias de 2023, redes sociais exortaram os “humilhados e ofendidos” a provocarem o caos, invadindo pequenos comércios, destruído “mercaditos”, nas periferias de todas as grandes cidades do país.
E o caos social se associa às gangues do narcotráfico, cada vez mais fortes!
A situação é muito séria!
Apesar disto tudo, não acreditamos em uma vitória do candidato fascista em outubro de 2023. Cremos que a sociedade argentina reagirá! Que as forças democráticas ainda se unirão contra o inimigo comum: o fascismo! Que as organizações os movimentos populares impulsionarão o processo!
No entanto, de toda forma estará plantado “O ovo da serpente”! E os anos de chumbo e dor de 1976 poderão voltar a se repetir, agora pela via eleitoral.
4 respostas
Penso q foco central deva ser a discussão sobre capitalismo e socialismo. Ambas são teorias datadas com prazo de validade vencido. Este o motivo porque direita e esquerda vão se alternando no poder, nenhuma tem solução para os desafios atuais
Caro Ronaldo, os democratas e humanistas sabemos hoje o que não queremos, ou aquilo que não queremos mais!
A gema deste não seria a desigualdade social, a ganãncia dos mais, a esploração dos mais pobres, a entrega das riquezas do país para os gringos? Vamos pensar?
Não aprendemos ainda a lidar com o poder das mídias sociais; mais forte que o das midias tradicionais. Na guerra híbrida de (des)construção dos discursos políticos e da pós/verdade ganha a truculência, a anti-ciência, a desumanização: componentes de sempre do fascismo. Os filhotes de cobra estão aí. Não morrem e podem crescer, lá, cá e alhures.