O gênio da cultura grega subverteu um dos paradigmas de George Orwell: “a história é escrita pelos vencedores”. “As Troianas” foi escrita pelos vencedores, sim, mas do ponto de vista dos perdedores!
Essa tragédia, considerada uma das mais ousadas jamais realizadas, foi apresentada pela primeira vez em 415 a.C., na velhice do autor. A história se desenvolve após Troia ser tomada pelas armas dos gregos, sob o comando do mitológico comandante Agamemnon.
Os vencedores são os nossos conhecidos heróis gregos, aqueles que venceram uma guerra graças à malícia (a introdução na cidade fortaleza do Cavalo de Troia); eles são implacáveis homicidas, depravados que se regozijam com o sacrifício humano, infanticidas, estupradores e impiedosos, não respeitando nem mesmo seus próprios deuses, que também são os mesmos dos troianos.
Na vida real do final do século V a. C., as tropas da decadente democracia de Atenas haviam perpetrado uma matança na ilha de Melos. Poucos anos após, surge uma nova guerra, pois o imperialismo ateniense decidira reduzir às cinzas as colônias da Sicília.
Soa, então, o alerta do artista ao povo de Atenas: Eurípedes era um inimigo da política imperialista de sua cidade, queria a paz! Afinal, quem desencadeia uma guerra também pode perdê-la! Vejam os destinos dos vencidos!
Viva a paz! Esta é a essência do grito de alerta de Eurípedes! Mas a corrompida democracia ateniense não conseguiu impedir sua ganância imperial! A guerra contra Sicília foi desencadeada.
Atenas foi derrotada e, em seguida, desmoronou sua democracia. A cidade foi invadida e tomada por Esparta! “Vai victus”, ai dos vencidos, diria a César o chefe gaules antes de sua execução, cinco séculos após!
O único cenário da peça é exterior às muralhas da cidade de Troia, que está sendo destruída e consumida pelo fogo. Ao fundo se veem as tendas onde os gregos aprisionaram as mulheres troianas.
Hécuba, a mulher de Príamo, o rei de Troia assassinado, em seu desespero; Cassandra, filha de Príamo, entoando o hino desesperado de um casamento renegado; o carro em que levam Andrômaca, esposa do guerreiro troiano Heitor, abatido por Aquiles, e seu pequeno filho Astinax, a criança que lhe será tomada dos braços para também ser assassinada. A invocação das pobres troianas aos mortos é desesperada, em diapasão com a cidade incendiada que desmorona!
O coro passa a exercer um papel mais de coadjuvante, quase sempre falando pela boca do Corifeu: Pobre dos vencidos!
Mas quanta honra os vencidos demonstram e demonstraram: a começar pelo comandante troiano Heitor, morto em combate por Aquiles na defesa da família e da Pátria, passando pelo rei Príamo, assassinado desarmado no altar dos deuses e, pela a rainha Hécuba, em sua resistência bravia.
A abertura de “As Troianas” contém um monólogo épico do deus Poseidon, invisível aos mortais: o deus conta a história do povo derrotado, fala dos negros navios gregos carregados dos espólios de guerra e de mulheres feito escravas. Canta a saga das desgraças de Hécuba, de todos os seus filhos homens mortos, de sua filha Polixena sacrificada para que seu sangue irrigue o túmulo do grego Aquiles, e de Cassandra, que será escrava e concubina de Agamemnon.
Mas os negócios humanos são quase uma diversão e jogo entre os deuses. A virgem Cassandra foi estuprada por Ajax no templo do deus, sem que os chefes gregos nem o tivessem censurado ou punido.
Poseidon, no entanto, sentencia uma mensagem de profunda humanidade: “O homem que destrói cidades é um demente e aquele que profana templos e abandona túmulos, cedo há de perder-se!”
Retiram-se os deuses.
Hécuba grita sua dor, enquanto o coro formado por moças troianas diz: “Desventuradas, míseras troianas! Iremos conhecer as provações que nos aguardam. Iremos suportar ignóbeis provas: ou nos estarão reservados os leitos gregos (maldita seja essa próxima noite!) ou nos constrangerão a carregar água, criadas dignas apenas de piedade!”
Entra Taltíbio, arauto do exército grego, e comunica que decisões definitivas foram tomadas e que a cada prisioneira fora definido um destino: Cassandra será levada como concubina por Agamemnon; Andrômaca será a prenda de Neoptólemo, filho de Aquiles; Hécuba, escrava de Ulysses.
Hécuba, que durante a guerra garantira a incolumidade do inimigo Ulysses, diz sobre este chefe dos invasores: “A sorte impiedosa fez-me escrava de um ser abominável, duro, pérfido, um inimigo da justiça, monstro sem lei que difama os outros, língua duplamente falsa que espalha o ódio onde reinava a paz!”
Ora, o grande herói da “Odisséia” de Homero é um patife e ingrato!
Aparece Cassandra e traz na mão direita um archote. Comporta-se como se em um delírio celebrasse seu próprio casamento e profetiza: ”Agamemnon terá em mim esposa mais funesta que Helena; fá-lo-ei morrer e arruinarei sua casa e raça como ele a minha, vingando assim meu pai e meus irmãos finados… Os homens deste rei foram dizimados em árduas lutas cujo prêmio não seria nem a sobrevivência do país natal nem a preservação de muralhas ancestrais… Em terra estranha jazem seus corpos sofridos; nos seus lares moram desditas iguais, pois morrem viúvas as mulheres sem arrimo e sobre os seus túmulos ninguém oferecerá sacrifícios”.
Aí está o merecido panegírico à expedição grega!
Quem é tresloucado? Quem é o delirante? Pela voz de Cassandra fala Eurípides em favor da paz, contra os belicosos de sua Atenas. A única luta guerreira que se possa justificar é em defesa de próprio país.
E segue Cassandra: “Desde logo, da parte dos troianos estava a glória inigualável: morriam pela Pátria.”
Os Vencidos são os Verdadeiros Heróis!
“Deve o mortal sensato detestar a guerra; se ela, todavia for inevitável, os louros não serão dos que morrem lutando por uma causa sem honra.”
Taltíbio intervém e diz que jamais teria aquela doida em sua cama. Ao que lhe responde Cassandra: “Por que ostentam o pomposo nome de arautos esses detestáveis componentes da corja, com razão por todos desprezados, esses pretenciosos moços de recado, abjetos serviçais dos reis?”
E conclui anunciando as desgraças que sobre os gregos se abaterão: “Odisseu desventurado! Ele não imagina os sofrimentos incríveis que o aguardam! Os meus males e dos troianos hão de um dia lhe parecerem invejáveis.” Caminha para a nau de Argos.
Andrômaca, preparando sua própria desdita, diz: “Morrer deve ser como não haver nascido e a morte talvez seja melhor do que a vida de dor e mágoas, pois não sofre quem não tem a sensação dos males”.
Nisto chega Taltíbio com nova ordem dos aqueus: “Ulisses convenceu os gregos de que a criança Astinax deve morrer para que, no futuro, não vingue o pai, Heitor”… Astinax será atirado do alto das muralhas de Troia.
Os vencedores são capazes das maiores covardias e brandem ameaças e chantagens contra mulheres indefesas.
“Ah gregos, inventores de suplícios bárbaros! Por que matais esta criança inofensiva? Que seja assim, arrebatai-me esta criança, levai-a já de mim, lançai-a das alturas se vos apraz! Fartai-vos desta carne tenra! Os deuses decretaram nossa perdição e não posso impedir a morte de meu filho”, diz a pobre Andrômaca.
Entra, então, um dos comandantes vitoriosos, o espartano Menelau com escolta, em busca de Helena, que mitologicamente provocara a guerra ao deixar o marido pelo troiano Paris. Hécuba reza para que Menelau ganhe coragem e mate Helena. “Mas vejo que tens receio de enfrentá-la, pois o olhar de Helena atrai o olhar dos homens e os cativa, arruína povos e os incendeia.”
Menelau concorda com os argumentos de Hécuba de que, por vontade própria, Helena abandonara seu lar. Mas não tem coragem de matar Helena e a manda embarcar de volta a Esparta, dizendo que lá ela seria sentenciada à morte.
Assim são os “heróis” agressores pintados por Eurípides: fracos, pusilânimes e covardes!
Taltíbio com soldados trazem o cadáver do pequeno Astinax colocado sobre o escudo de Heitor. Hécuba: “Gregos, tão vaidosos de vossas proezas bélicas! Mas pela inteligência não vos orgulheis após esse assassinato insólito! Que poderiam recear de uma criança? Que ela fizesse Troia reerguer-se das cinzas? Merecem só desprezo as almas pusilânimes que não ponderam as razões de seus temores!.. .E que palavra escreveria um poeta sobre sua lápide? “Aqui repousa uma criança trucidada pelos vitoriosos gregos que a temiam”…Que enorme opróbio para a Grécia esta inscrição!.. Trazei mulheres alguns adornos para eu preparar o morto”.
“Aos que morreram pouco importam o luxo e o valor das oferendas fúnebres; elas apenas alimentam a vaidade dos vivos, sempre ansiosos por glória e por vaidade”.
Taltíbio transmite a ordem de que nada seja deixado sem arder em Troia, que os soldados destruam tudo pelo fogo. E que Hécuba siga para a nau do odioso Odisseu. Hécuba foge às mãos dos soldados para atirar-se ao fogo, mas eles conseguem evitar que ela arda com a cidade.
Nada mais resta a fazer; após suas lamentações as mulheres são empurradas para o navio grego que as espera para partir.
Eurípedes contou-nos a guerra de Troia baseada na Ilíada de Homero, mas do ponto de vista dos vencidos!