A Criação: o “criacionismo” e o pecado.

(“A Bíblia”, o resgate civilizatório necessário, parte 3).

O Livro “Gênese” marca o início da civilização judaica. E o acontecimento da Criação na Bíblia Hebraica é também o ponto de partida do drama cristão da salvação. Trata-se, além do mais, do primeiro diálogo histórico universal homem- mulher que até nós chegou. Portanto, um objeto da mais elevada importância e sublimidade.

Eva é curiosa, relativamente pouco hábil, submissa. Já Adão, de cuja costela ela provém, cumpre a ordem de Deus para dirigi-la. Mas a serpente, quando inverte a ordem estabelecida, faz da mulher o senhor do homem e conduz ambos à perdição. Logo, sob a influência de Eva, Adão, torna-se fraco.

E Adão vacila perante a maçã da árvore do conhecimento. Trata-se, na verdade, de um ato de autoafirmação. Será que ele deveria ter medo de comer algo que Eva já fizera? E ele deseja confiar na mulher! Na narrativa, o diabo não possui poder de influenciar Adão, apenas a mulher e esta a ele.

As Sagradas Escrituras, apesar da linguagem simples que parece destinada a crianças, contém enigmas e segredos sob o formato de Mitos. Seus autores e propagadores não buscam, pois, uma compreensão racional, mas, sim, participação e fé na letra. Santo Agostinho, em suas “Confissões”, ressalta que é necessário lê-las como uma criança, com fé e humildade.

Mas também poderemos compreender o Mito da Criação desde o ponto de vista historicista, racional. E como Mito, a Criação e o pecado original propiciam não uma, mas diferentes interpretações, como são próprias dos mitos.

É bem verdade que ademais de possuir inúmeras semelhanças com mitos ainda mais antigos sobre a própria criação do homem, como o de Gilgamesh, o texto bíblico é mais híbrido e enigmático.

E como Mito, ele não é uma mentira, mas uma narração simbólica de fatos!

A “Gênese” foi escrita por volta do século IX antes de Cristo. A sociedade era patriarcal e o homem de seu tempo, quando se referia ao passado mais longínquo, situava-o na estrutura social em que vivia. E o mito de Adão e Eva é uma prefiguração da fundação da civilização humana.

No processo evolutivo, nossos ancestrais viviam em “guenos”, amplas famílias que, após o matriarcado, eram dominadas por um patriarca que detinha o poder sobre as mulheres. Logo, a figura do patriarca aparece na imagem de Adão e sua posse sobre Eva simboliza o domínio patriarcal.

Esse momento se perde na origem do tempo humano. De certa maneira romântica, é retratado pela simbologia de um paraíso original, anterior à integração do ser humano no difícil e altamente complicado mundo real, o da sobrevivência.

Acontece que nas hordas primitivas não havia só o patriarca e as mulheres, mas também os machos filhos do patriarca aos quais era interditado ao acesso às mulheres. Quando se insurgia contra o patriarca, aquele jovem rebelde era expulso do “guenos”. E o número de machos exilados sempre crescia, cercavam as aldeias, o que colocava em cheque o poder do patriarca.

No mito da Criação, esses excluídos são representados pela figura da serpente. E a serpente é o “tertius” da relação Adão-Eva- serpente. Até que esta ataca mostrando o desejo de possuir a mulher, Eva.

Na horda primitiva, em determinado instante, os rebeldes se juntam e matam o patriarca. Mas o patriarca, embora odiado por deter o poder das fêmeas, também era amado e respeitado, ele era o pai de todos, aquele que dava estabilidade e inteireza ao “guenos”. Assim, ao matar o pai, nossos ancestrais sentem culpa.

Eis que quando isso acontece nos tornamos humanos. Pela primeira vez sentimos culpa e fomos inscritos no real, numa realidade que não era mais a idealização de um paraíso, mas o mundo da Natureza, e passando a conhecer o bem e o mal, nos tornamos seres morais.

No mito, Deus visita o Éden após a transgressão original e nossos primeiros pais se escondem com a culpa. Deus, na realidade, representa psiquicamente a consciência moral do homem que pela primeira vez o visita.

Após matar o patriarca, diante da culpa, nenhum rebelde ousa tomar seu lugar ou apossar-se das mulheres. Por isso Instituíram para si mesmos o “tabu do incesto”, uma interdição simbólica que proibia o acesso às mulheres da horda. E no lugar do patriarca foi colocado um totem, um símbolo religioso, que passava a representar a antiga autoridade.

Assim, o mito de Adão e Eva nada mais seria que uma encenação simbólica da fundação da humanidade.

Mas voltemos à teoria do “Criacionismo”. Perguntamo-nos, mesmo recorrendo à leitura da Bíblia “feita para ser lida por adultos-crianças” de Santo Agostinho, como se poderia lidar com questões como a predileção de Deus por Abel em detrimento de Caim, Caim, o primogênito? Qual teria sido a sua falta de respeito, Caim que a Deus oferecera os frutos de seu cultivo da terra, enquanto Abel, mais preguiçoso, apenas oferecera de Deus as primícias de ovelhas que apascentava? Que injustiça do amor divino que gera o primeiro ato de homicídio, aliás, fratricídio, que marcará a história do homem desde seu nascedouro? E o amor divino condena Caim para sempre a “ser fugitivo e vagabundo”, o primeiro homem trabalhador!

Como lidar com que Caim, que obrigado a vadear, casa-se e constitui sua gente para os lados do oriente. Com quem? Se Adão e Eva eram os primeiros humanos?

E Adão e Eva tiveram, após o assassinato de Abel, um filho mais novo, Sette. Não havia outra mulher ainda gerada. Seríamos todos descendentes de quem? Frutos de um enorme incesto? Aqueles que, como crianças em sua fé não conseguem interpretar os mitos inseridos na Bíblia, optam sempre por não raciocinar sobre essas questões.

E como se conceber o sacrifício de Isaac pelo próprio pai Abraão, assassinato este ordenado por Jeová? Somente um demônio do mal poderia exigir isto de um pai! E como pode Abraão perdoar o Pai depois da caminhada por três dias para praticar o assassinato do filho, ao saber que era apenas um teste pelo qual passara? ? E qual foi o sentimento posterior de Isaac em relação ao pai que já o manietara para o sacrifício, por ordem de um Deus que somente a ele ordenava? Um Deus que, afinal, se satisfaz com o sangue da degola de um cordeiro!

E a Torre de Babel? Qual a natureza da transgressão que levou à torre? De que modo a utilização de uma língua única ofende Jeová? E por que deveria ser considerado um castigo a posição de poliglota, tão importante para o desenvolvimento do gênio humano?

E, na formação das Doze Tribos de Israel, que mistérios e ambiguidades nos esperam na desventura do honesto Esaú e nas velhacarias e malandragens de Jacó, filhos de Isaac, que afinal, tantos frutos renderam ao espertalhão? Qual a mensagem para os seres humanos? Vale à pena a falsidade, a desonestidade? Esaú, que perde o legítimo direito da progenitura à herança, se distanciará para sempre de Jacó, o qual de Jeová receberá o título de “guerreiro de Deus” e será o fundador das Doze Tribos de Israel?

São inúmeras as incongruências para aqueles que do púlpito ou dos televisores concitam seus seguidores a tomarem a “Gênese” e a Criação ao pé da letra, escrita por tantas e tantas mãos, revisadas e traduzidas por outro tanto, há mais de dois mil e oitocentos anos.

O surgimento do Pecado e da Queda.

Esta é uma das interpretações, válida como tantas outras, do Mito da Queda e do Pecado de Adão e Eva.

Alguém acredita que Adão nunca havia transado com a bela Eva, estando os dois juntos e nus naquele idílico paraíso, onde cada animal tinha seu par? Transado tinham, sim, e muito, como um casal de animais.

Mas a “coisa” somente virou pecado por causa da árvore do conhecimento, da eterna e inocente maçã que dela frutificou. A Sodoma da maçã!

O homem provou da árvore do conhecimento e ficou com vergonha de si mesmo.

E o sentir, que era só instinto, antecedeu a consciência. Foi quando o macho Adão olhou para si mesmo, possivelmente em seu reflexo nas águas cristalinas de alguma lagoa e, depois, para sua fêmea Eva e disse-lhe: “O que está acontecendo entre nós? O que estamos fazendo? Eu tenho algo que você não tem que história será essa, Eva?”

Pois assim começa o conhecimento, a consciência. O conhecimento do sangue, do instinto, da intuição e não o da mente, que este veio depois. Veio com a maçã, aquela da serpente demoníaca. E quando o demônio interno, o mesmo que assolava Sócrates, se apossa de seu ser ele se transforma em COMPREENSÃO.

Eva também se interrogou, pois os dois queriam saber os porquês de certas coisas, o que, definitivamente, não acontecia com os seus parceiros animais, que não tinham como se questionarem.

E quando Adão foi lá, junto ao montículo de forração que lhes servia para o descanso, e possuiu Eva depois da maçã, nada que não houvesse feito um monte de vezes antes, aconteceu algo insólito. E o mesmo valeu para Eva. Era a consciência!

Os dois queriam saber o que um e o outro estavam fazendo. Queriam saber! Antes da maçã era diferente, eles fechavam os olhos, transavam e suas mentes escureciam. Agora olhavam, se espiavam, imaginavam e se constrangiam!

E assim nasceu o pecado, não pela prática, mas pelo conhecimento de sua existência. Eles se olharam, examinaram, chegaram até a sentir constrangimento pela nudez: “Transar é pecado, disseram um ao outro”, e esconderam-se. E Deus, vendo contrariada a regra inventada e imposta por ele mesmo, expulsou-os do Paraíso. Sendo suas as leis, o que mais poderia ter feito?

Agora o pecado estava criado e praticado; hora da maldição! Acionado pelo Empíreo, berrou-lhes o anjo pretoriano Miguel: “Fora com os imorais!” De espada flamante em punho expulsou-os!

E foi “A Queda”!

O pecado é uma coisa esquisita. Ele não é a ruptura de um mandamento divino, e sim, a ruptura de nossa própria integridade. Por exemplo, o pecado de Adão e Eva somente foi pecado porque os dois fizeram o que acharam que era errado fazer, o que haviam gentilmente praticado. Se quisessem realmente ser amantes, e se tivessem tido a coragem sincera de sua própria paixão, não haveria pecado mesmo que o desejo fosse apenas passageiro.

Mas foi exatamente o fato de fazerem aquilo que eles próprios achavam errado que criou o principal encanto do ato!

Pois o homem inventa o pecado para poder desfrutar do sentimento da transgressão. E também para esquivar-se à responsabilidade de suas atitudes. Um Pai Divino lhe diz o que fazer. E o homem, travesso, não obedece. Depois, trêmulo, o homem ignóbil abaixa as calças para apanhar.

Logo o pecado é sempre a consciência dos próprios atos, a vigilância das atitudes.

Já o instinto, por detestar ser conhecido, se dá muito melhor na privacidade. A consciência espiritual do homem, de algum modo, detesta a força obscura do instinto, tenta ocultá-lo, mantê-lo numa certa privacidade, em penumbra.

Acontece que o homem nunca deveria fazer aquilo que acredita ser errado. Porque, se o fizer, perde sua simplicidade, sua integridade, sua honra natural. Quando se quer fazer alguma coisa, das duas uma: ou acredita-se sinceramente que fazê-la é de sua natureza ou, então, tem que esquecê-la. Uma coisa na qual se acredita de fato não pode estar errada, na pior das hipóteses, será uma mentira.

Pois, na vida e mesmo na morte, só existe um castigo real: a perda da própria integridade!

Referências:

1. Bíblia Sagrada. S.B.B., 1969.

2. Lawrence, D.H.. Estudos sobre literatura clássica americana. Zahar, 2012.

3. Lawrence, D.H.. Tudo que vive é sagrado. Crisálida, 2010.

4. Deleuze, G.. Crítica e Clínica. Ed. 34., 2011.

5. Steiner, G.. Nenhuma paixão desperdiçada. Record, 2001.

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