“A cidade das mulheres” e os deuses afro-brasileiros.

No momento histórico em que o bolsonarismo ressentido e excludente ataca de modo boçal a religiosidade afro-brasileira, convém recordarmos os trabalhos de Ruth Landes.

Ela foi uma antropóloga norte-americana que, em princípios de 1938, obteve um contrato de pesquisa para estudar as relações raciais no Brasil. Esteve no Rio de Janeiro, depois na Bahia, onde conheceu o intelectual Édson Carneiro, que a introduziu nos cultos afro-brasileiros. A antropóloga também compartiu seus pensares com Jorge Amado e outros artistas de vanguarda.

Entretanto, em 1940, durante seu trabalho de campo, foi expulsa do Brasil pela ditadura do Estado Novo, pois pairavam sobre ela suspeitas de filiação ao “comunismo internacional”.

Somente após a Guerra, em 1947, Landes publicou os resultados de sua pesquisa no livro intitulado “A Cidade das Mulheres”.

O empoderamento feminino no candomblé baiano.

Contradizendo os padrões da antropologia de sua época, recusou-se a produzir um retrato etnográfico do candomblé e da cultura afro-brasileira como homogêneos integrados e estáticos; descreveu os conflitos internos, diálogos e contestações do significado do candomblé em um contexto de mudança e fluidez, situando historicamente a riqueza da cultura afro-brasileira.

Nesse sentido, Landes antecipou um estilo de antropologia reflexiva, dialógica e experimental, em que a alteridade é pensada enquanto construção, e assim como a subjetividade desempenhariam um papel central, tese que iria encontrar sua mais larga expressão em Edgar Morin, décadas após.

Com uma percepção fina e sensível, ela foi capaz de apontar algumas singularidades do candomblé baiano como, por exemplo, a tendência ao aumento gradual do poder feminino sobre o masculino, assim como o aumento do número de mães-de-santo, as “yalorixás”, em relação a pais- de- santos nos candomblés mais tradicionais.

E teve, ainda na primeira metade do século XX, a coragem de identificar a influência do “homossexualismo passivo” nos candomblés de caboclo.

A religiosidade afro-brasileira como libertadora.

Ela considera o candomblé “uma força criadora” e, especialmente, os lugares das mães-de-santo e de suas “sacerdotisas” na sociedade baiana a impressionaram. É a partir dessas mulheres que ela passa a refletir sobre a condição feminina, fazendo uma leitura sensível do poder que detinham.

“Dá às pessoas coragem e confiança e faz com que se concentrem na solução dos problemas desta vida, e não na paz do outro mundo. Não sei onde estariam os negros sem o candomblé! ”

Em “A cidade das mulheres” o que está em jogo é muito mais a narrativa de um “lugar de encontro” do que um retrato que se pretenda “objetivo” de uma “realidade social”. Sua proposta foi viver o trabalho de campo como uma experiência que alterasse sua própria vida. Aos poucos, vamos compartilhando com essa antropóloga incomum suas descobertas. Uma verdadeira metamorfose vai se processando durante uma viagem narrada em detalhes. O encontro com Mãe Menininha no Terreiro do Gantois, ao qual é conduzida por Carneiro e Amado, é um dos ápices de sua experiência, em que ela descobre uma mulher independente, admirada, dona de si.

Ruth Landes, em seu livro, também explora a diferença do modo de pensar entre americanos e brasileiros. Por exemplo, relatando uma discussão acalorada com Édson Carneiro em que este afirma que os norte-americanos se importavam apenas com o “vil metal”, desprezando a cultura, Landes retruca: “os norte-americanos pensam em termos de raça. Um preto é inferior a um branco por causa da sua raça. Não se imagina que um negro tenha cultura alguma, a não ser a que lhe vem do branco”.

Termina seu livro tecendo um elogio às mulheres baianas do candomblé e comparando-as com as norte-americanas: “Penso que elas ajudam a engrandecer o Brasil. Acreditarão os americanos que haja um país em que as mulheres gostam realmente dos homens, sentem-se seguras e à vontade com eles e não os temem? ”

Por seu ineditismo e vanguardismo somente em 1967, portanto, vinte anos após sua edição em inglês e graças ao empenho de Édson Carneiro, o livro foi traduzido e lançado pela Editora Civilização Brasileira. 

Os deuses afro-brasileiros, a tradição africana que incorpora valores cristãos.

Em publicação para o “American Folk- Lore” de 1940, Ruth Lande resumiu para o leitor norte-americano a origem dos deuses afro-brasileiros que, abaixo, resenhamos:

O pai de toda a criação e de todos os deuses é o ocioso Olorum, a respeito do qual pouco se pensa. Ocasionalmente é relacionado com o Deus sionista-cristão.

Oxalá, seu filho, ocupa a primazia das divindades, sendo correlacionado a Jesus Cristo.

Outras divindades são identificadas com vários santos católicos, assim como Exu com o Satanás.

Oxalá é geralmente idealizado como um ser tão velho que deve procurar o calor do sol. O seu lar é o interior de uma colina na África ocidental. “Quando desce nos seus médiuns, curva-se sobre um pesado cajado, suas pernas tremem de frio e ele resmunga rabugentamente. ” As vestes são muito ricas, em branco e prata, símbolo de seu “anima”.

Oxalá tem duas esposas. A mais velha é Nanan, mãe dos três deuses Molu, Loko e Oxunmarê. Identifica-se com Santa Ana, mãe da Virgem Maria. Seu lar é no fundo de um rio angolano e as algas são seus cabelos. O sentimento que desperta nos povos negros, expresso em homenagens que lhe são realizadas, é de temor. Suas cores são o branco e o azul-claro, simbolizando a senectude e as águas onde vive.

A esposa mais jovem e mais amada de Oxalá é Yemanjá, simbolizando na cultura ocidental a Virgem Maria, mas com ancas largas e sexualmente potente. Como vive nas águas, perto de Oxalá, suas cores também são o branco e o azul-claro. É muito querida entre as mulheres e as canções e danças de seu ritual são suaves e agradáveis.

Oxalá tem um filho muito amado, um rei deificado com o nome de Xangô, grande guerreiro, namorador e herói de lendas escandalosas. Costuma-se compará-lo a São Jerônimo. Muitas vezes é considerado o “rei” de toda África. Depois da morte manifestou-se como o relâmpago e reina nos céus, encarregado dos raios. Seu símbolo é um machado, sua cor é o vermelho vivo. Por ser um deus muito popular, “desce” em muitos “cavalos”.

Xangô foi magistralmente orquestrado por Villa Lobos em “Xangô, a morte de um rei yorubá”.

Xangô é casado com Yansan, que alguns dizem ser também sua irmã. Ela é a parte feminina de Xangô, uma guerreira que adora uma “peleja”, uma mulher de muitos amantes. Depois de sua morte e deificação, tornou-se a senhora dos ventos e tempestades, tal qual Santa Bárbara da Inglaterra.

Alguns etnólogos com Édson Carneiro e Artur Ramos, afirmam que Xangô e Yansan são uma única figura, portadora da bissexualidade.

Oxun, a mãe adotiva de Yansan, é uma das deusas africanas favoritas. Ela é a mimada de Oxalá, nascida com uma colher de prata na boca, portadora de grande encanto e nobreza de caráter. Traz consigo a eterna juventude. Oxun é tão homenageada quanto Xangô, como símbolos perfeitos de seus respectivos sexos.

Oxóssi, por sua vez, é um príncipe caçador, completamente ligado à vida na selva. Os seus emblemas são o verde dos matos e o bronze com tonalidades em azul e vermelho, usa roupas de couro e uma aljava. Seus gritos aproximam-se a latidos.

Ogun é um deus solteirão, de caráter enérgico que controla os desastres, a guerra, o mal. Sua cor é o azul-escuro. Quando vivia em África, antes de sua imortalidade, era ferreiro de nobre casta. Os Exus são seus criados. Muitas vezes é invocado junto com os auxiliares para fazer o mal.

Omolu é um personagem antipático, mas que exerce horrível fascinação sobre homens e mulheres. É o deus das pestes. Os seus “cavalos” o representam como um velho horroroso, contorcido. Entretanto, se corretamente solicitado, provê a cura de enfermidades, ilustrando a ambivalência de todos os deuses afros- brasileiros. É identificado com São Roque e São Lázaro.

Omolu e seus irmãos, Loku e Oxunmarê, são importantes na teologia, mas dificilmente baixam nos terreiros. Loko, com funções de cura, é relacionado a São Francisco de Assis, tendo como cor a branca. Oxunmarê, também relacionado a curas, é correlacionado a São Bartolomeu, tendo o formato de arco-íris ou de cobra.

Estes deuses são a espinha dorsal de um culto extremamente criador de espontaneidade e de resistência de nossos afrodescendentes.

“A Cidade das Mulheres” ganhou as telas do cinema nacional, em um filme dirigido por Lázaro Faria. O argumento, roteiro e trilha sonora (interpretada por Elza Soares) são da escritora paulistana Cléo Martins. O filme foi uma homenagem à antropóloga americana judia Ruth Landes (falecida em 1991).

5 respostas

  1. : Axé!

    : Essa é há História importânte, do Brasil que o Sistema Branco Racista, escondeu por Séculos e muitos Anos: Há Sociedade Anti – Racista Consciente; precisar divulgar essa história.

    : Motumbá Axé.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Cadastre-se para receber novidades

Receba as novidades do site em seu e-mail

© 2022 por Carlos Russo Jr – Todos os direitos reservados