Multiplicidade de nossos eus e seus sentires, em Proust

Um dos assuntos que Proust se dedica a explorar com profundidade  são as diferentes facetas que o “eu” apresenta, a dissociação dos estados da alma, a independência dos elementos que compõem a vida interior, e, em decorrência disso, a multiplicidade da personalidade.

Para o autor, o homem é o ser que se dissipa e dissocia. Nada permanece estável e uniforme nem mesmo naquilo em que se toca. Tudo se move e decompõe incessantemente, resultando a precariedade da realidade: “O relativo para mim é o absoluto e quaisquer valores permanentes ou supremos perderam seus sentidos, quer se trate de valores sociais quer psicológicos.”

O que se chama experiência não passa da revelação a nossos próprios olhos, um traço de nosso caráter que reaparece naturalmente, e o faz com tanto mais força quanto o havíamos revelado a nós mesmos uma vez, de tal modo que mesmo um movimento espontâneo se encontra reforçado por todas as sugestões da lembrança.

“Marcel pondera que talvez nele, e em muitas outras pessoas, o segundo homem em que se tornara, o seu duplo, fosse simplesmente uma faceta do primeiro, exaltado e sensível ao lado de si próprio, daquele Marcel ajuizado.” A dúvida é em qual deles Marcel desejaria se transformar? Ou não seria o caso de transformação e como a deusa das duas faces dos romanos, cada uma delas virada para o lado oposto à outra, ele apresentaria socialmente  a que mais lhe agradasse a cada momento. Essa capacidade de multipliciadade transforma o homem em um ser sempre múltiplo, complexo e dificilmente acessível.

É importante assinalar que, diferentemente de Pirandello, tanto a multiplicidade quanto a dissociabilidade do eu mantém como paradigma a permanência de um elo, que Proust caracteriza como a matéria essencial de todo o ser. Ela permanece sendo a mesma e única até a morte, dando consistência àquelas diferentes facetas da personalidade. “Em muitos seres há diversas facetas que não se assemelham; conhece-se uma, depois a outra, mas no dia seguinte a ordem se inverteu, mas é e será sempre o mesmo ser, em sua essência.”

“Podemos nos entregar, à nossa escolha, a uma ou outra de duas forças: uma se ergue de nós mesmos, emana de nossas impressões profundas; a outra nos vem de fora. Acredito que trabalhamos a todo instante para dar uma forma à nossa vida, mas copiando, malgrado nosso, como um desenho, os traços da pessoa que somos e não daquela que nos agradaria ser.” Isso de certa forma desenvolve em nosso íntimo uma certeza de nossa incapacidade de nos transformarmos, como se perseguíssemos uma sombra sem jamais conseguir tocá-la.

O Tempo transforma nosso “eu”. O narrador utiliza como exemplo um livro que já lemos, uma música que ouvimos no passado, que se associaram tão fielmente ao que éramos então, que só podem ser sentidos e repensados pela pessoa que éramos naquele tempo. “Mas não nos afligimos de nos havernos tornado outro devido à passagem do tempo, mais do que nos afligiríamos, em certa época, por termos sido, alternativamente, indivíduos contraditórios. O malvado, o sensível, o delicado, o patife, o desinteressado, o ambicioso, como alternativamente o somos também todos os dias.”

“Alguns desejam apaixonadamente que haja uma outra vida, onde seriam iguais ao que idealizariam para si nesse mundo. Mas não é necessário esperar pela outra vida; nesta daqui mesmo, ao fim de alguns anos, tornamo-nos infiéis ao que fomos, ao que desejaríamos imortalmente permanecer. Ainda sem supor que a morte nos modifique mais do que essas mudanças que se dão no curso da vida, se nessa outra vida encontrássemos o eu que já fomos, desviar-nos-íamos de nós mesmos, como dessas pessoas com quem já não nos damos há tanto tempo. Sonha-se muito com o paraíso, ou antes, com inúmeros paraísos sucessivos, mas são todos, ainda antes que se morra, paraísos perdidos e onde a gente se sentiria, por sua vez, perdido.”

As sucessivas “personnas” que terminamos sendo, entretanto, interagem e dependem da nossa vontade.“Vejo a vontade como uma serva perseverante e imutável de nossas personalidades sucessivas; ela oculta-se na sombra, mesmo que desdenhada, mas incansavelmente fiel, trabalhando sem cessar e sem preocupar-se com as variações de nosso eu, para que não lhe falte nada do que necessite. Tudo quanto tem de mutáveis a sensibilidade e a inteligência, tem-no ela firme; mas como é calada e não expõe seus motivos, quase parece que não existe, e as partes restantes do nosso eu obedecem às decisões da vontade sem dar por isso, ao passo que, por outro lado, percebem muito bem suas próprias incertezas.”

Mesmo a imagem que possuímos das pessoas está em nós mesmos e não naquela que se encontra em frente da gente. “Nossos leitores devem saber que descobrir a verdadeira vida do próximo, o universo real que subexiste sob o universo aparente,  causa-nos  tanta surpresa como visitar uma casa de boa aparência  e encontrá-la cheia de tesouros, cadáveres e ferramentas; e não é menor a surpresa quando, em vez da imagem que havíamos formado de nós mesmos, graças ao que dizem da gente,  certificamo-nos pelo que essas pessoas dizem quando estamos ausentes da imagem inteiramente diversa que guardam de nós e da nossa vida.”

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