Vitória, uma obra-prima de Joseph Conrad

Vitória é, sem dúvida, uma obra-prima do romance psicológico. A história embora contada em tom comedido, sem alarde, requer certa analise literária para que se possa desfrutar de toda a extensão de um trabalho impecável, ao qual Jack London se refere como “um dos porquês de se estar vivo para ler”.

Publicado em 1915, Vitória nada tem a ver com a tragédia da guerra que devastava a Europa. Vitória  é do espírito, de Alma, em sua luta contra a morte.

Axel Heyst é um europeu, irresoluto e sonhador, desiludido com a perspectiva de inserção num mundo ao qual despreza, e despreza por ter adquirido o hábito de pensar. “ O pensamento é o grande inimigo da perfeição. O hábito da profunda reflexão é o mais pernicioso de todos os hábitos contraídos pelo homem civilizado… A utilidade da razão é justificar os desejos obscuros que movem nossas condutas, impulsos, paixões, preconceitos e loucuras, e também nossos temores.”

O personagem central é um sujeito incapaz de uma maldade preconcebida, estando sempre pronto a gestos de autêntica solidariedade, na medida em que estes não acarretem envolvimento e muito menos recompensas materiais. Conrad coloca o sueco Heyst como uma figura que nos sugere francamente o Príncipe Michkin de “O Idiota” de Dostoievski, mas já dentro da perspectiva da complexidade do homem moderno.

Após o falecimento de seu pai, um filósofo shoppenauriano, Hyest deixa a Europa e se transforma num pária sem rumo e sem lar fixo, vagando pelos mares do sul da Ásia. Escrevera o pai de Hyest: “Clarividência ou não, os homens amam seu cativeiro. À conhecida força da negação eles preferem o leito miseravelmente desfeito de sua servidão”.

Heyst, primeiramente conhecido como “O encantado”, é um sujeito para quem nada mais havia a conhecer além de “fatos”. O andarilho somente buscará uma fixação após uma primeira inserção pouco voluntária no mundo. E o faz exclusivamente por insistência do amigo Morrison, para “não desgostá-lo”, quando assume responsabilidade pela exploração de carvão mineral para uma insignificante empresa de Londres. No dizer de seu patrão de tão curta permanência, ele era um “cavalheiro perfeito, mas um tanto utópico”.

Será, após o previsível fracasso do empreendimento comercial, que Heyst se voltará para os livros e mobiliários que herdara do pai, excluindo-se do mundo dos homens na ilha-vulcão no mar de Java, Surubaia.

Dizia para Davidson, um navegante que raramente o visitava:“A natureza humana é como é, com seu lado tolo e mesquinho”. “ Creio que causei certo dano quando me deixei ser tentado a agir. Parecia bastante inocente, mas toda a ação tende a ser danosa. É diabólico. É por isso que o mundo, no todo, é ruim. Mas eu não quero mais nada com ele! Jamais moverei um dedo de novo. Houve uma época em que pensava que a observação inteligente dos fatos era o meio de iludir o tempo que nos é concedido, mas agora, acabei com a observação também.”

Dizia ainda: “O mundo é um cão azedo. Ele lhe morderá se o senhor lhe der uma chance; mas creio que aqui (na ilha),poderemos desafiar os fados com segurança.” Não era um ermitão, mas tentara exilar de si, o mundo. A vida, entretanto, prepararia uma nova cilada para tornar a enreda-lo.

Certa vez, em uma de suas poucas escapadas, na hospedaria de um “teuto”, Schomberg, ele conhece Alma, o nome pelo qual era tratada Magdalena, uma pobre e explorada violinista inglesa, acorrentada a um grupo mambembe de músicos viajantes. Alma vive o desespero de um mundo que a violenta e a oprime. Ela precisa socorrer-se dos desejos lascivos de um Schomberg assim como do organizador do grupo musical, outro teuto travestido de italiano.

Tal qual fizera antes com Morrison, Hyest se deixa atrair por Alma e a ampara, raptando-a e dando-lhe refugio na distante Surabaia. “Havia naquele rosto algo indefinivelmente audacioso e infinitamente infeliz”. O espírito de Heyst é atraído pelo desespero da jovem e impelido a protegê-la por compaixão, embora a beleza jovem e espontânea também cumpra seu papel de atração. Retornando ao “O Idiota”, temos a figura de Nastasia Filipovna a se delinear até o sacrifício.

“O encantado” mantinha pelo mundo um total desencanto. Recentemente ele concluíra que só o fracasso faz o homem entrar dentro de si mesmo e avaliar seus recursos. Antes, na solidão e no silêncio, costumava pensar claramente, vendo a vida além da lisonjeira ótica da esperança, das convencionais auto ilusões, da sempre esperada felicidade. Mas, agora, perturbava-se pois Magdalena, Lena, despertava nele uma ternura, ainda indistinta e confusa, mas prazerosa, complementar.

Lena, por seu lado, se entrega na esperança de esquecer tudo o que ficara para trás, todo o terror, todo o desespero. “Sem sentimento de culpa, por um desejo de segurança e por uma profunda necessidade de depositar sua confiança onde seu instinto de mulher orientava-a”. Hyest dera à sua vida um sabor, um movimento, uma promessa mesclada de ameaças que ela não desconfiava que se pudesse encontrar, não uma moça casada com a miséria como ela. Sua alma naufragada tinha que agarra-se a ele.

Shomberg, o teuto enciumado, espalha rumores sobre Heyst, sobre as relações deste com o finado Morrison, a respeito de possível dinheiro escondido na ilha, o que, afinal, guiará até ela três ladroes e facínoras.

“O poder da calunia aumenta com o tempo. É insidioso e penetrante. Pode mesmo destruir a fé de uma pessoa em si mesma… apodrecer a alma”.

Os três são desesperados errantes em busca de dinheiro fácil. Parece que, em algum momento, todos esses tipos extravagantes haviam tido  que optar por alguma maneira de afastamento social, e uma comunhão de renegados se fez, dividida em compaixão e esperança de uns, e astúcia e malícia de outros, violência de todos.

Jonesé um pseudo cavalheiro inglês de estranha espécie, que devotava supremo ódio e desprezo a todas as mulheres.

Martim Ricardo tinha a agressividade de uma fera, que olhava todas “as criaturas domesticadas da Terra” como suas potenciais vitimas naturais. Violentar ou matar era tudo a mesma coisa para ele, contanto que o ato liberasse a alma sofredora daquela selvageria por tanto tempo reprimida. Era o único do trio que conhecia a existência de uma mulher na ilha.

Po terceiro do trio era um bruto, simplesmente.

O mundo do qual Hyest e Lena julgavam desconectar-se voltara até eles, numa forma de absoluta violência. Os bandidos surgem como uma espécie de enviados do mundo, com o qual Hyest havia rompido há anos.

Martim Ricardo tenta submeter fisicamente Lena que lhe resiste com uma impossível força , num momento em que não era mais apenas o ser humano que contava. Ela não se defendia por si mesma apenas, mas pela fé que nascera nela, a fé no homem de seu destino e talvez nos céus que o haviam feito cruzar seu caminho. Além da força ela usara a duplicidade. “Duplicidade- refugio dos fracos e dos covardes, mas dos desarmados também! So a duplicidade separava o encantado sonho de sua existência de uma cruel catástrofe. Parecia-lhe que o homem sentado a sua frente era uma presença inevitável, que acompanhara toda a sua vida. Era o mal do mundo corporificado e por isso não se envergonhava de sua duplicidade”.

O Sr. Jones dirá a Hyest: “Sou uma espécie de destino, o castigo que espera a oportunidade…” O sueco desarmado sabia que um bandido insano é uma combinação mortal!

Ao saber que havia uma mulher na ilha, Jones advinha que Martim deveria querer mancomunar -se com ela e destrui-lo, além do sueco. Ao tentar baleá-lo, acerta um tiro em Lena.

Mas vitória sera de Lena, que consegue capturar a morte- a morte súbita, irresponsável, selvagem, que rondava o homem que a possuía. Ela termina por salvar a vida de Hyest.

Ferida, nos braços de Hyest, enquanto os bandidos se auto aniquilam, o espirito da moça apegava-se ao seu triunfo, convencida da realidade de sua vitória sobre a morte. “Eu salvei você, porque não me tira desse lugar solitário?” murmura em seu estertor.

Hyest mesmo nesse momento mantinha seu verdadeiro grito de amor longe dos lábios, em sua infernal desconfiança sobre a vida. Confessa ao amigo Davidson, que chega em socorro- “Infeliz do homem cujo coração não aprendeu quando jovem a ter esperanças, a amar, e a confiar na vida!”

Ao final, a vida nada tinha mais a oferecer-lhe. Com sua Lena nos braços, suicida-se.

As primeiras analises realizadas sobre “Vitória”, apontaram um tom melodramático na história, mas, na realidade, o melodrama em Conrad é consequência da descida ao abandono de cada um.

Os locais exóticos são típicos dos romances de Conrad, onde a natureza de alguma forma determina a personalidade do personagem. A ilha é, obviamente, sinônimo de solidão, mistério, de afastamento. Reflete muito bem a solidão de almas que Conrad procura retratar, perfilando-as ao meio ambiente onde habitam.

O mar permanece como um obstáculo, uma barreira quase que impenetrável, embora único caminho para o relacionamento com outros seres. Como na própria vida, as relações entre os homens são sempre perigosas na ausência de amizade, de amor … Ou seja, para estabelecer esses laços, é necessário atravessar o mar que separa um dos outros, enfrentando os perigos que a viagem implica.

Morrison e Hyest simbolizam claramente a possível ponte entre ilhas com suas viagens. Eles são os amigos por excelência, dispostos a ajudar outros que operam em mares perigosos, sem esperar recompensas e sem questionar a vida de outro homem, permanecendo como um observador à distância, sem julgar nem a realidade e muito menos seus semelhantes. Há nessas personagens, e no gesto final de Lena manifestos claros da moralidade que Conrad quer observar, sem os preconceitos e premissas tão característicos do homem vulgar.

“Vitória”, verdadeira obra de arte, não é uma espécie de combinação de temas de ressonância que sensibilize o leitor. E a marca do amor como pano de fundo, um paraíso perdido por causa do mal, do mal que surge a partir da inveja e se introjecta em outras vidas, negligenciando sua própria, como no caso de Shoemberg. Algo que acontece todos os dias em nossa sociedade.

Conrad recria a realidade da maneira mais sutil, através da projeção de uma vida, Hyest, seus pensamentos, sua figura. Um personagem que será gravado na consciência do leitor em toda a sua magnitude e importância, porque mais do que um episódio, ele termina identificado em muitos de seus sentires, laços e decepções.

Vitória é a vitória da Alma, de Magdalena, da vida que se entrega à morte pela Vida.

O romance foi adaptado para o cinema por diversas vezes. Um primeira versão foi no cinema mudo, em 1919 dirigida por Maurice Tourneur; uma segunda, em 1930 quando William Wellman dirigiu “O Paraíso Perigoso”; em 1940, terceira versão dirigida por John Cromwell; e, finalmente, a última, de 1995 por Mark Peploe , com Willem Dafoe , Sam Neill , Irene Jacob e Rufus Sewell .

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Cadastre-se para receber novidades

Receba as novidades do site em seu e-mail

© 2022 por Carlos Russo Jr – Todos os direitos reservados