Recordação da Casa dos Mortos: tortura e genocídio em Dostoiévski

Uma companhia toca insistentemente na madrugada primaveril de São Petersburgo; o ano é de 1849. O jovem Dostoiévski, em trajes de dormir, abre a porta de sua habitação espantado, tem medo. Espera-o uma mensagem de violência, de morte. Oficiais e cossacos entram, vasculham todo o simples quarto, levam consigo os papéis que encontram e, acorrentado,  o escritor que recém experimentara o sucesso com o seu romance Gente Humilde.

Durante os próximos oito meses ele vegetará preso em uma solitária na Fortaleza de Pedro e Paulo, sem processo formal ou noção do destino que o espera. Seu crime? Ele não o sabia ao certo, somente presumia. É verdade que participara de um grupo intelectual denominado “Círculo Petrashevski”. O grupo de estudos era dedicado à discussão sobre as condições de vida na Rússia, centrada em obras da biblioteca pertencente ao próprio Petrashevski,que continha livros proibidos pela censura. Também é certo que  Dostoiévski participava há três meses de uma organização radical secreta, liderada por Nikolai Spechniev. Essa sua associação, por sorte, jamais chegaria a ser descoberta pelas autoridades da época, somente vindo a público após a Revolução Socialista.

Afinal, a principal acusação que foi assacada contra Dostoiévski foi haver lido em público uma carta aberta do escritor social- revolucionário Bielínski, então falecido, ao escritor Nikolai Gogol, na qual o autor de “Almas Mortas” era criticado por suas visões políticas e sociais conservadoras.

O espectro das revoluções de 1848 assustava a Europa. Nicolau I ( o mesmo Czar que seria imortalizado por Tolstói no conto Nicolas Palkine) mostrou-se temeroso de que qualquer organização clandestina poderia colocar em risco a autocracia, a exemplo do que ocorrera na França e Alemanha. Nada melhor que inventar uma conjuração contra o Império, denominando-a de “Conspiração Petrachevski”. Em 22 de dezembro, sem nem ao menos a pantomima de um julgamento, O Czar condena os acusados à pena de morte.

Ao amanhecer do dia seguinte, Dostoiévski e seus nove companheiros são retirados da cela e, no pátio de execuções, já amarrados a postes, têm os olhos vendados. Ouvem a leitura da sentença de condenação à morte e, em seguida, o rufar os tambores. O desespero de Dostoiévski e o desejo pela vida, congelam-se por um instante naquele cérebro colossal. O oficial que comanda o fuzilamento ordena o posicionamento, os recrutas apontam suas armas, mas a ordem de fogo não não é dada. A “maldade” do Czar montara a ópera bufa de uma farsa.

Os presos são desvendados e desamarrados. É lhes anunciada a graça, o perdão imperial; Nicolau I transformara a pena de morte em prisão com trabalhos forçados na Sibéria. A Dostoiévski couberam quatro longos anos de reclusão, que seriam seguidos por mais quatro de prestação de serviços ao exército, ainda na Sibéria.

A Bíblia é o único livro que lhe será permitido levar consigo no longo martírio que vivenciará na casa prisional siberiana, onde será  uma sombra entre as sombras, sem nome, apenas um número, esquecido dentre os “mortos sem sepultura”. Quando, chegando a Sibéria os soldados tiraram-lhe das pernas feridas as correntes que as prendiam, o condenado de vinte e oito anos perdera muito de sua saúde. Mas o que lhe permaneceria intocável e indestrutível era a alegria de viver, o desejo de escrever e de tudo anotar em sua prodigiosa memória para, um dia, servir-lhe, talvez catarticamente, de material de criação.

Em carta ao seu irmão, descrita em O Idiota, Dostoiévski comenta sobre o calvário vivido: “ Não me abati e nem senti desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida está em nós mesmos e não fora de nós. Ao meu lado há pessoas, e permanecer sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem e cair no desânimo- eis em que consiste a vida, em que consiste seu objetivo.”

Na “Casa dos Mortos” ele terá como companheiros de jornada criminosos, ladrões, pobres homens do povo que um dia haviam se revoltado contra a fome, alguns aristocratas degradados e uns poucos presos políticos, aliás como ele próprio. Logo descobrirá que na prisão existiam as mesmas diferenças sociais que vivenciara do lado de fora. Ele relatará como os camponeses zombavam dos intelectuais, por sua falta de destreza física nos trabalhos forçados, pois ao fim e ao cabo, embora todos comungassem do mesmo pão amargo, carregando pedras, telhas, limpando neve, cortando madeira, cortando rochas, aos “nobres” cabiam os trabalhos não tão rigorosos.

“Estou no presídio e esta vai ser minha vida por anos, o lugar em que irei sentir tão inverossímeis, tão mórbidas impressões. E quem sabe, ao deixá-la sinta saudades – com uma mescla dessa maliciosa impressão que as vezes degenera na necessidade de remexermos propositalmente na ferida, pelo desejo de distrairmo-nos com nosso próprio sofrimento, reconhecendo que no exagero de toda infelicidade há também prazer”.

Suas “Recordações”  serão uma coletânea interminável de suplícios físicos e psíquicos que o poder, através de seus esbirros, aplica aos pobres condenados. Afinal, “os presídios e o sistema de trabalhos forçados não melhoram os delinquentes, aos quais apenas castigam”. Presídios nada mais são que depósitos de escravos a serem destruídos física ou espiritualmente; uma forma clara de sinalizar aos marginalizados do processo econômico e político o que os aguarda se transgredirem certas normas.

A mesma forma de exercer o poder que nos transporta ao mal que varreria o século XX chegando aos dias de hoje: a tortura generalizada contra os pobres marginalizados, a morte banal, os campos de concentração e extermínio, presídios e casas de detenção onde “o mal radical”, que no dizer de Immmanuel Kant, destrói e aniquila não somente suas vítimas diretas, mas também os meios com que poderiam tentar reagir a ele.

“Não é em vão que em toda a Rússia, o povo chama desgraça ao crime e desgraçado ao criminoso”, nos relata o sensível narrador.

Os torturadores

Como “quase todas as manifestações espontâneas da personalidade de um preso são consideradas como crime”, os motivos para a tortura e aniquilação física de um prisioneiro na Casa dos Mortos são banais. Como concluiria  Arendt, um século após, o mal radical, descrito por Kant  e a banalidade do mal têm o mesmo significado, pois dizem respeito ao mesmo fenômeno: os das massas tornadas supérfluas, quando os seres humanos na sua distinção, singulariedade e plurariedade se tornam supérfluos. E quem é mais supérfluo que um presidiário pobre e esquecido?

Dostoiévsk, em 1856, escreveu: “A natureza do verdugo encontra-se em germe em quase todo homem contemporâneo. Mas as qualidades brutais do homem não se desenvolvem por igual.” Hanna Arendt identificaria em todo ser humano, onde não se desenvolva a capacidade de pensar, um potencial para o genocídio.

O narrador identifica dentre os torturadores dois tipos de verdugos: os voluntários e os obrigados por força burocrática. “O verdugo voluntário é, sob todos os aspectos muito pior que o obrigado…”.

O verdugo que age por “dever de ofício”, embora o bater lhe cause algum nível de prazer, não sente nenhum ódio supérfluo contra a vítima. Ele se esmera na destreza do golpe, no conhecimento do ofício, “em seu desejo de destacar-se ante os seus camaradas que esporeiam o amor-próprio”. “Esse torturador “de ofício” esforça-se na função pois sabe muito bem que é um réprobo para a sociedade, que em todos os lados encontrará um terror supersticioso que o seguirá por toda a parte e que isto tem sobre ele a influência de fomentar o seu ardor, as suas inclinações bestiais”.

Quando Dostoiévski refere-se aos verdugos voluntários, ele força nas tintas e os compara a “tigres ávidos de beber sangue humano”.  São seres sádicos, psicopatas no melhor estilo do mundo do Marquês de Sade, que saem da literatura instalam-se no mundo real.

Independentemente do gênero de torturadores ao final, “quem exerceu esse poder, esse ilimitado domínio sobre o corpo e a alma de um semelhante seu, de uma criatura; quem conheceu o poder e a plena faculdade de infligir a suprema humilhação a outro ser, que traz em si a imagem de Deus- converte-se em um escravo de suas sensações.”

A tirania torna-se um costume que possui a faculdade de desenvolver-se e degenerar-se numa doença. “O melhor dos homens pode embrutecer-se e, embora por efeito do hábito, descer ao nível de uma fera enlouquecida”.

“Seja como for, o verdugo antes do castigo, encontra-se em excitação, sente a força que possui, reconhece-se poderoso; nesse minuto é um ator: o público admira-o e teme-o e é com prazer que ele grita para a pobre vítima antes de comandar o espancamento: “aguenta que queima”. Custa a acreditar a que ponto pode corromper-se a natureza humana!”

Sartre, ao referir-se ao processo de torturas a que o Exército Francês submeteria o povo argelino nos anos 50 do século XX, disse: “ A tortura não é desumana; ela é simplesmente um crime ignóbil, crapuloso, cometido por homens e que os demais homens podem e devem reprimir. O desumano não existe em nenhuma parte, exceto nos pesadelos que o medo engendra.”

Na rotina da Casa dos Mortos o poder absoluto sobre o outro ser destrói o escravo e modifica o seu senhor: “O sangue e o poder embriagam, engendram o embrutecimento, a insensibilidade, de tal forma que a inteligência e o sentimento acabam por achar aquilo natural e, por fim, aprazíveis as manifestações de anormalidade. O homem e o cidadão morrem para sempre no tirano; é lhe quase impossível regressar à dignidade humana, ao arrependimento, a uma nova vida.”

Dostoiévski, a seguir, detém-se na descrição do comandante do presídio, um Major do Exército: “A um homem como ele era absolutamente necessário oprimir sempre alguém, tirar algo qualquer de um outro, despojar um terceiro de seus direitos, em suma, alterar a ordem de qualquer maneira”. O castigo fez-se para a insolência- assim pensam esses indivíduos- Estes inflexíveis cumpridores da lei não compreendem que a sua aplicação estrita, sem discernimento, nem compreensão da sua alma, conduz diretamente à desordem.” E o comandante vivia com toda a sua família num anexo do Presídio, de tal forma se sentia um “fiel cumpridor das regras”, um “homem de bem”.

Um segundo personagem é escrutinado, o chefe de disciplina, um tenente. Dostoiévski incorpora ao tipo físico nauseabundo uma personalidade pervertida: “era um homem de uns trinta anos, de estatura mediana, gordo, com umas bochechas coradas, regurgitando de gordura, uma dentadura enorme e um sorriso ameaçador, inquietante. Gostava muito de castigos, de dar pauladas, excitava-se quando era designado como executor. O tenente era comparável a um gastrônomo refinado na sua maneira de ser carrasco. Gostava imensamente da arte de ser verdugo e amava-a como uma arte. Deleitava-se e como um patrício do Império Romano enfastiado pelos prazeres e inventava vários requintes, várias modalidades antinaturais, com o fim excitar-se um pouco e de fazer agradáveis cócegas na sua alma atafulhada de gordura”.

A visão do autor de Recordações da Casa dos Mortos sobre a tortura é perene, atual e de certa forma, sinaliza a transformação social radical pela qual passaria a Rússia meio século depois: “ A sociedade que contempla com indiferença esse espetáculo está minada pela base. Em resumo: o direito de impor castigos corporais, outorgados a uns sobre os outros, é uma das pragas da sociedade, um dos meios mais poderosos para aniquilar nela todo germe de civilidade e a base completa para a sua dissolução inevitável e infalível.”

A respeito dos torturados

Todos os condenados, por mais temerários  e duros que sejam, têm medo de tudo num presídio. “Quanto o preso está por sofrer um castigo, esse é um outro caso. Não há dúvida alguma  que os momentos que antecedem o castigo são terríveis para o presidiário…” Os réus quando eram castigados deviam, infalivelmente, gritar e perdir compaixão ao verdugo, sob pena de que aplicassem mais força às varas de suplício.

“Esforçava-me por imaginar o estado psíquico daqueles que se encaminhavam para o suplício. Disse já que, perante o castigo, raro era aquele que conservava o sangue frio. Quase sempre o condenado sentia um medo terrível, puramente físico, involuntário, e inevitável, que afetava todo o ser moral da criatura.”

O narrador descreve dezenas de desgraçados condenados a morrer sob a vergasta e a ação reservada ao médico do presídio, no processo da tortura: “O médico só mandou suspender a execução quando viu que se prolongassem o suplício, o sentenciado corria o risco de morte”. A continuidade da tortura far-se-ia após a recuperação física do sentenciado.“Quando por acaso a pessoa encontrava presos sentenciados à espera do retorno à tortura, jamais se esqueceria  dos rostos espantados, consumidos e pálidos, de seus olhares de delírio.”

Um delator

Quando Dostoiévski se debruça na análise de um delator, é enorme o desprezo que flui de sua pena: “Ele (o delator) não era mais que um pedaço de carne com dentes e estômago e com uma sede insaciável dos mais grosseiros e bestiais prazeres carnais. Era capaz de matar e assassinar a sangue frio conquanto aquilo lhe proporcionasse satisfação do mais repelente e caprichoso dos prazeres. Era um exemplo daquilo a que pode chegar um homem quando não é, interiormente, obstado por nenhuma norma, nenhuma lei. Como me repugnava aquele eterno sorrizo trocista daquele quasímodo moral, daquele monstro.”

Conclusão

Anos após o exílio forçado na Sibéria, Dostoiévski retornaria a Petersburgo e editaria seu romance semi auto-biográfico Recordações da Casa dos Mortos. Como os ex-forçados eram proibidos de escrever memórias e relatos, Dostoiévski disfarçou a obra como ficção, dizendo-a ser o diário de um homem preso por assassinar a esposa em crise de ciúmes. O romance causou tal impacto na Rússia, que até mesmo o próprio Czar Nicolau I mandou que se divulgasse que ele havia chorado ao lê-lo. O caminho de  Dostoiévski como escritor de prestígio acabava de abrir-se e o genocídio praticado na Sibéria, ganhava pela primeira vez, seu lugar na literatura.

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