Rebeliões negras no Brasil e o exemplo de Luiz Gama.

Pese existirem registros de revoltas dos escravos desde o século XVII, foi no século XIX que a rebelião negra atingiu seu auge. Enganam-se aqueles que julgam que a fuga do cativeiro, formação de quilombos e sua defesa foram as formas exclusivas da rebelião. Pois os escravos chegaram a organizar insurreições armadas e, inclusive, buscaram a tomada do poder político.

Edison Carneiro, um dos nossos maiores etnólogos, especializou-se em temas afro-brasileiros. Em “Antologia do negro no Brasil”, ele esquematizou a reação do negro contra a escravidão em três formatos básicos:

Revoltas organizadas tendo como objetivo a tomada do poder político.

Carneiro identifica como revolta armada e organizada politicamente os diversos levantes de negros malêses na Bahia, que ocorreram em diferentes oportunidades entre os anos de 1807 e 1835.

Os negros malêses eram muçulmanos, trazidos escravizados ao Brasil no final do século XVIII, oriundos do Sudão africano. Eles possuíam um nível cultural superior ao dos brancos senhores de escravos da época: eram bilíngues, alfabetizados em árabe, tinham conhecimentos de matemática e de plantas medicinais. Em sua luta pela condição de homens livres visavam à destruição do Estado escravocrata e o banimento do cristianismo como religião oficial. Acreditavam que o culto de uma religião ou outra constituía uma decisão absolutamente individual. Os poucos escritos que herdamos dos maleses apontam para a crença em uma economia voltada ao uso cooperativado da terra.

A última dessas revoltas tendo por epicentro a cidade de Salvador, a grande “Jehad” de 1835, ocorreu exatamente um século antes no movimento insurrecional popular da Aliança Nacional Libertadora, de 1935. Infelizmente, a revolta foi precipitada por uma delação e teve de ser deflagrada antes do momento planejado. Os revoltosos sofreram pesadas baixas nas ruas. Eram inferiores em número e em organização bélica, no entanto, suas colunas conseguiram tomar dois quartéis de polícia, somente sendo desbaratados pela ação da artilharia e pelas tropas do Exército Imperial, quando pelo menos dois milhares de negros foram massacrados e o sangue escorreu ladeira abaixo no pelourinho.

Insurreições armadas.

Como exemplo de insurreição armada espontânea, Carneiro sita a Revolta da Balaiada comandada pelo negro Manuel Balaio, um fazedor de balaios, ocorrida no Maranhão, em 1839. Nessa época o Maranhão tinha ao redor de 200 mil habitantes, dos quais, 50% negros. Sem planos e nem diretivas, a insurreição começou como um movimento espontâneo de “caçada ao branco opressor” e de depredação de propriedades senhoriais, de pilhagem de vilas e de aldeias. Acontece que o movimento de revolta alastrou-se, incorporando mais e mais negros, a ponto de colocar em cheque o poder político do Estado, estendendo-se até o Piauí. Explorada politicamente por “brancos liberais”, a insurreição tentou tomar a vila de Caxias e realizou o cerco à capital do Estado. O Império enviou uma força tarefa do Exército sob o comando do futuro do general Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, o qual se gabava de não fazer prisioneiros. Calcula-se que aproximadamente 8.000 negros foram aniquilados nesta ação repressora.

A fuga para o mato e a formação dos Quilombos.

A reação mais geral à escravatura foi, sem dúvida, o quilombo. Era a forma mais simples de revoltar-se e fugir à escravatura.

Quilombo dos Palmares, em Alagoas, foi um dentre os centenas de quilombos que se espalharam pelo Brasil; sua particularidade é que possuiu, no auge, mais de vinte mil negros fugidos, e sobreviveu por sessenta e cinco anos, entre 1630 e 1695. Dezenas de expedições punitivas foram realizadas para destruí-lo. Os negros que se defendiam com azagaias, pedras, cassetetes e alguns arcabuzes, lutavam contra tropas munidas de artilharia e cavalaria, que utilizavam o armamento mais moderno da época. Por seu lado, o conhecimento da mata e a tática da guerra de guerrilha foram utilizados com grande sucesso pelos bravos negros organizados.

Outros Quilombos também tiveram relevância nos séculos XVIII e XIX. Enquanto os Balaios passavam à ofensiva, ao lado dos revoltados maranhenses estava o Quilombo do Cosme, mas eles, entretanto, não uniram suas forças.

Ao mesmo tempo em que as revoltas dos malêses se disseminavam, Duque de Caxias também liquidava o quilombo de Manuel Congo, em Pati de Alferes no Estado do Rio de Janeiro, e o capitão-mor Fernão Carrilho, antes de ser chamado para combater Palmares, tinha destroçado mocambos negros na capitania de Sergipe.

Os quilombos do Cumbe, na Paraíba; de Carlota, no Mato Grosso; de São Tomé, no Maranhão e especialmente, os aquilombados do Rio das Mortes em Minas Gerais tiveram uma repressão implacável. O bandeirante Bartolomeu Bueno do Prado esmagou com uma crueldade inominável o Quilombo de Minas em 1751, levando para o Governador da Província três mil e novecentos pares de orelhas de homens, mulheres e crianças, todos mortos a facadas e trucidados a foice.

Por fim temos os “caifazes” de Luís Gama e de Antônio Bento que serviam de auxiliares e mesmo organizadores do movimento geral de fuga dos escravos das fazendas paulistas, buscando refúgio nos quilombos do Jabaquara e da Serra de Cubatão. Devido a sua importância, falaremos um pouco de seu principal organizador.

Luiz Gama, “um baiano, o herói da abolição da escravatura em São Paulo”, nas palavras de Afonso Schmidt.

Luiz Gama nasceu em Salvador, filho um fidalgote português e de Luísa Maheu, africana liberta da nação Nagô, em 1830. Sua mãe, da qual Gama sempre se orgulhou, teve toda a vida envolvida em insurreições de escravos, como a Revolta dos Maleses, em 1835. Em 1837, acusada de participação na Sabinada, ela foi deportada para o Rio de Janeiro e “desapareceu” pelo caminho.

“Quando Gama ficou crescidinho, o pai tentou vendê-lo ilegalmente como escravo a um comboieiro, dos que andavam pelo Norte, comprando carne humana”. Mas o menino era muito esperto e fugiu. Seu pai, então, levou-o a visitar um navio que estava no porto e enquanto o moleque percorria os porões e conveses, “o português aproveitou e fugiu, apertando no bolso o dinheiro da transação.”.

O navio pertencia a um comboieiro que tinha partes com a polícia e Gama foi transportado como escravo pelo navio até a cidade de Santos, e de lá até a Praça de Campinas, onde foi anunciado no mercado humano um lote de carnes, do qual ele fazia parte, com as palavras de sempre: “rapaziada moça e sadia, de virar e romper”.

A mercadoria ficou exposta, conta-nos Schmidt, na porta da igreja Matriz, num domingo à hora da missa. Os fazendeiros foram chegando, com botas enlameadas, chapéu do Chile e chicote na mão e passavam em revista a “negrada”: faziam avançar os que pareciam melhores, examinavam os dentes como aos cavalos e depois iam discutir com o comboieiro o preço da peça.

“Quando o melhor da leva havia sido comprado, o mercador de negros fez o leilão do refugo. Mas Luiz Gama nem assim foi vendido”. Luiz Gama, então, foi trazido para São Paulo e exposto durante uma manhã inteira na Rua da Imperatriz. Aí o acaso acudiu-o. Um fazendeiro liberal vindo de Minas, que procurava não um escravo, mas uma companhia para seu filho que estava matriculado na Faculdade de Direito, comprou-o.

O sinhozinho gostou de Luiz Gama, tornaram-se amigos e o alfabetizou; dentro em breve eram os dois a estudar Direito. Apesar de não ser admitido na Academia, começou a participar das rodas estudantis, onde brilhou e conquistou grandes amizades. Fizeram-se seus amigos Conselheiros Carrão e Crispiniano, José Bonifácio, José Maria de Andrade, futuros jurisconsultos, que muitas vezes ouviriam sua opinião em questões de Direito.

Um dia, Conselheiro Furtado deu-lhe o emprego de amanuense na Polícia. Trabalhou no fórum com Lins de Vasconcelos e Américo de Campos. Foi quando ganhou demandas de centenas de contos de réis, mas nunca guardou um tostão para si, pois empregava todo o dinheiro que lhe pagavam na propaganda abolicionista, quando não comprava diretamente a alforria de negros escravos.

De Luís Gama, disse Raul Pompéia: “… não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor… E Luís Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente e toda essa clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, outro a liberdade, alguns um conselho fortificante. E Luís Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro… E, por essa filosofia, empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bom… Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das mãos de clientes mais abastados.”.

Ao lado de Américo de Campos e de outros republicanos participou da fundação da loja maçônica “América”, em cujo salão azul e enfeitado com estrelinhas de prata, nasceria de verdade a campanha abolicionista da Província de São Paulo.

Na década de 1860, Luiz Gama deixou o funcionalismo público e tornou-se jornalista e poeta de renome, ligado aos círculos do Partido Liberal. Fundou, em 1869, o jornal Radical Paulistano, juntamente com Rui Barbosa. Participou da criação do Club Radical e, mais tarde, da criação do Partido Republicano Paulista (1873), ao qual se manteve ligado até à sua morte, em 1882. Por volta de 1880, foi líder da Mocidade Abolicionista e Republicana.

Em determinado momento de sua vida abolicionista Luiz Gama foi acusado de açoitar um escravo fugido. Levado como réu aos tribunais, Gama dispensou defensor e, desconhecendo a acusação forjada da qual era acusado declarou que “os senhores de escravos deveriam TODOS responder por pelo menos um crime: o de roubo! Roubo da liberdade de seu semelhante.” E nesse momento lançou a frase que daria um novo aspecto jurídico à campanha abolicionista:

“Para o coração não há códigos: e, se a piedade humana e a caridade cristã se devem enclausurar no peito de cada um, sem se manifestarem por atos concretos, em verdade vos digo aqui, que afrontando a lei, que todo escravo que assassina o seu senhor pratica um ato de legítima defesa.”

O réu foi absolvido por unanimidade. Os circunstantes aclamaram-no e o conduziram em triunfo pelas ruas da capital. À passagem da multidão, negras velhas ajoelhavam-se nas ruas e estendiam os braços para Luiz Gama aos gritos de: liberdade, liberdade!

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