“Adorno afirma que há um processo real na sociedade capitalista capaz de alienar o homem das suas condições de vida”, explica Rita Amélia Teixeira Vilela, doutora em Educação pela Universidade de Frankfurt. E esse processo desenvolve-se, sob condições de desestruturação social, desde a infância!
Theodor Adorno, um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt, estudou filosofia, sociologia, psicologia e música na Universidade de Frankfurt, durante a República Democrática de Weimar, cuja derrocada pariu o nazismo de Hitler.
Em meio à moda desfrutada pelo existencialismo e pelo positivismo na Europa do início do século XX, Adorno avançou uma concepção dialética da história natural. Nesta se insere o texto “Mau camarada”, incluído na coletânea “Minima moralia”, escrita por ele no exílio.
“O mau camarada”.
“A rigor, eu deveria poder deduzir o fascismo das recordações da minha infância. Como um conquistador nas províncias mais longínquas, ele tinha para ali enviado os seus emissários, muito antes de aparecer: os meus colegas de escola”.
Se a classe burguesa abrigava já, desde tempos imemoriais, o sonho da rude comunidade do povo, da opressão de todos por todos, então foram crianças que encenaram o sonho, antes de os adultos estarem historicamente amadurecidos para o realizar.
“Senti a violência da imagem terrível a que aspiravam, com tal evidência que toda a sorte ulterior me pareceu provisória ou falsa”.
“A irrupção do Terceiro Reich colheu de surpresa o meu juízo político, mas não a minha angústia inconsciente”.
Todos os motivos da permanente catástrofe ele os vivera tão de perto, “tão indeléveis estavam em mim as marcas de fogo do despertar alemão, que imediatamente os pude reconhecer nos traços da ditadura hitleriana; e no meu louco assombro imaginava amiúde que o Estado total tivesse sido expressamente inventado contra mim, para ainda me fazer aquilo de que na minha infância, na minha pré-história, ficara temporalmente dispensado”.
As cinco crianças patriotas que se lançaram contra um companheiro sozinho, o espancaram e, quando ele se queixou ao professor, o acusaram de traidor, não são os mesmos que torturaram os prisioneiros para desmentir aos estrangeiros, que falavam da tortura daqueles?
Reportando-se ao ginasiano judeu que tentara suicidar-se, Adorno diz: “A sua gritaria não tinha fim, quando o primeiro da turma falhava – não eram os mesmos que, surpreendidos e sarcásticos, rodearam o judeu retido para dele escarnecer quando, com pouca habilidade, tentara enforcar-se? ”
Os que não sabiam construir uma frase correta, mas achavam as minhas demasiado compridas – não eram os que acabaram com a literatura alemã, substituindo-a pelos seus garranchos?
“Alguns cobriam o peito de insígnias enigmáticas e queriam ser oficiais da marinha em terra, quando já há muito não havia marinha: declaravam-se chefes de batalhão e porta-estandartes, legitimistas da ilegitimidade”.
Os inteligentes obtusos, mas macilentos na aula tiveram tão pouco êxito como no liberalismo o amador dotado, mas sem contatos que lhe facilitassem a vida; que, por isso, e para agradar aos pais, se dedicaram a trabalhos de marchetaria ou, para prazer próprio, a passar longas tardes diante do quadro fazendo complicados desenhos com tintas de cores! “Todos eles ofereceram ao Terceiro Reich as suas sinistras aptidões a fim de, mais uma vez, serem enganados! ”
Mas os que incessantemente se revoltavam contra o professor e, como se dizia, perturbavam as aulas, com os mesmos professores e à mesma mesa, com a mesma cerveja, tornaram-se apaniguados, rebeldes, em cujo impaciente soco sobre a mesa ressoava já a adoração dos senhores!
Bastava-lhes estar sentados para ultrapassarem os que tinham acabado o curso, e deles assim se vingarem. “Desde que, como funcionários e candidatos da morte, emergiram visíveis do sonho e me desapropriaram da minha vida passada e da minha língua, já não preciso de sonhar com eles”.
“No fascismo, o pesadelo da infância voltou a si próprio”. 1935.