O humanismo radical de Epicuro está na raiz do pensar do jovem Marx, e constitui uma das bases do marxismo.

Epicuro procura libertar a alma dos temores infundados, das crendices.

Doente, a humanidade transformada em rebanho precisa de tratamento. A fonte do mal, que se alastra pelo contágio da imitação, está detectada: as falsas crenças. O que move a ação curativa é o generoso sentimento de philia, amizade, que, além de sustentar intrinsecamente a filosofia, transborda — enquanto amor à sabedoria — em amor à humanidade.

A ação do médico-filósofo ou do filósofo-médico não conhece, na linhagem epicurista, qualquer tipo de restrição quanto à escolha do paciente-discípulo: todos têm direito à cura, sem limitações sociais, econômicas, raça. Por isso, a mais ampla publicidade deve ser dada ao tratamento: o remédio é oferecido a qualquer um, a qualquer passante, mesmo aos estrangeiros, pois seu valor e benefício são universais, acima das contingências de espaço e tempo.

A dupla natureza da proposta epicurista — aliar razão iluminadora e amor à humanidade, lúcida compreensão dos fenômenos naturais e procura da felicidade terrena, ciência e ética — justifica a formação de uma confraria de amigos, da verdade alcançada pelos sentidos e pela razão; confraria que procura a salvação, sim, mas por meio do conhecimento, não da crença, por meio da filosofia enquanto compreensão clara e comprovável, não da adesão ao mistério, ao intelectual e empiricamente insondável. O preceito “deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade” é, por isso, uma de suas prescrições fundamentais.

Mas, afinal, que remédio é esse, capaz de livrar a humanidade de aflições e tormentos? O remédio é o saber filosófico enquanto portador da verdade aclaradora, o discurso enquanto phármakon, enquanto curativo porque discurso-razão que espanca as trevas das crendices, expulsando os males da alma.

“Não há o que temer quanto aos deuses.

Não há nada a temer quanto à morte.

Pode-se alcançar a felicidade.

Pode-se suportar a dor”.

A ética epicurista também leva à revalorização do tempo presente, passado e futuro. O desvio no tempo, na direção do passado (memória) ou do futuro (esperança) permite a alegria em meio à adversidade. Nem sempre o presente é prazeroso, mas é possível desviar das sensações penosas pela memória de boas sensações passadas ou porvir.

O caminho proposto pela ética epicurista é o resgate da condição original; a volta à vida conforme a natureza das coisas e do próprio homem, colocar a verdade a serviço da felicidade humana. Precisa-se de pouco para ser feliz e alcançar a serenidade.

O jovem Marx.

O humanismo radical e o propósito de colocar a verdade a serviço da felicidade humana, a índole “iluminista” que induz ao combate de toda forma de obscurantismo e crendice, o projeto salvacionista alicerçado na ciência, a defesa do prazer com fundamento materialista, fazem do epicurismo um modelo de pensamento capaz de sobreviver e ressurgir, mesmo parcialmente, no decorrer dos séculos. Essa vitalidade e esses ressurgimentos manifestam-se apesar do acirrado combate que, desde a Antiguidade, recebe de adversários — em particular estoicos e cristãos.

No início da Modernidade, também o materialismo mecanicista de Thomas Hobbes (1588‑1679) remonta a Epicuro. Mais tarde, Lenin alia-se ao epicurismo ao polemizar com Hegel. Porém, é sobretudo Marx — o jovem Marx — que mais profundamente mergulha na filosofia do mestre grego, reinterpretando-a na tese com que pretende obter lugar de docente em Bonn:

“Diferenças entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. ”

Iniciada em 1839, a tese é construída com instrumental teórico que Marx herda da filosofia clássica alemã e de Hegel. Na verdade, faz parte de um projeto mais ambicioso (e não completado): descobrir, pela análise dos sistemas filosóficos pós-aristotélicos — epicurismo, estoicismo, cepticismo, a “forma subjetiva”, o “caráter” da filosofia, ela que faz a mesma “profissão de fé de Prometeu”, o patrono da rebeldia e da libertação humanas “que ocupa o primeiro lugar entre os santos e os mártires”. Afinal, essa índole prometeica, libertária, reaparece, naquele momento, na filosofia cultivada pelo Doktorklub, o Clube de Doutores idealistas e liberais que Marx, enquanto jovem hegeliano de esquerda, frequenta em Berlim e cujo programa consiste em realizar a síntese entre hegelianismo e liberalismo, criando o ideário que permita, em termos alemães, concluir a tarefa libertadora esboçada na Aufklärung e levada à prática pela Revolução Francesa.

E é justamente em Epicuro — “primeiro teólogo da morte de Deus” — que Marx vai encontrar o combate desalienador à ética e à religião tradicionais, o mesmo combate que reencontra ao ler, no começo de 1842, “A essência do cristianismo”, de seu amigo Feuerbach. Tanto em Epicuro quanto em Feuerbach, Marx se defronta com um materialismo que sustenta uma filosofia libertária, permanecendo, todavia, nos limites da liberdade apenas interior.

Ultrapassá-la e forjar armas teóricas para a ação libertadora no nível social e político exigirá a reformulação do próprio materialismo, exigirá a construção do marxismo.

Mas, de qualquer modo, parece claro: é na companhia de Epicuro que Marx esgota as possibilidades de uma dimensão da liberdade e chega à fronteira além da qual prosseguir significa criar suas próprias ideias. A luta de classes, como uma de suas estruturas centrais, o Marxismo.

Epicuro viveu vida difícil, em tempos difíceis.

Epicuro nasce em 341 a.C., na ilha de Samos, de família ateniense. Desde cedo, Epicuro pode verificar como as pessoas estão geralmente dominadas por temores e crendices. Aos catorze anos é mandado acompanhar as lições de Nausífanes, discípulo do atomista Demócrito de Abdera. O cosmos com todos os seres lhe é então apresentado como resultando de átomos que se movem desde sempre no vazio infinito e que se aglutinam segundo leis estritamente mecânicas, sem intervenção de qualquer finalidade exterior.

Pobre, migrante e com saúde extremamente frágil, Epicuro vive, a partir de 322 a.C., em diversas cidades da Ásia Menor, enquanto elabora sua filosofia: “menos um sistema de pensamento do que um sistema de vida”. Finalmente, em 306 a.C., vai para Atenas, onde funda sua escola filosófica, o Jardim, na verdade uma confraria ou comunidade que admite entre seus membros também mulheres e escravos.

Epicuro compra primeiro uma casa, e a certa distância, um jardim. Da casa passam a sair, abundantemente, livros, panfletos e cartas, enquanto no Jardim (Kepos) acomodam-se os discípulos que depois vão difundir a doutrina por toda parte, permanentemente alimentados, do ponto de vista doutrinário, por novos textos e pela frequente correspondência. Kepos não é propriamente um parque, mas uma horta, útil para a alimentação frugal dos que ali se recolhem, em convivência amigável junto ao mestre e inteiramente apartados das questões e distúrbios das cidades, pólis.

Após uma vida marcada por ascetismo, serenidade e doçura, apesar da dolorosa doença — calculose renal — que nunca lhe dá trégua, Epicuro morre em 271 a.C. Diógenes Laércio descreve assim sua morte: “Sentindo-se morrer, ele se fez colocar numa banheira de bronze cheia de água quente e pediu um copo de vinho puro, que bebeu. Tendo exortado seus discípulos para que se lembrassem de suas lições, expirou”.

Pouco tempo antes, Epicuro escrevera a alguns discípulos, anunciando estar prestes a morrer. É o que se lê neste fragmento da Carta a Idomeneu:

“Eu te escrevo neste dia feliz da minha vida em que me sinto próximo da morte. O mal prossegue seu curso na bexiga e no estômago e não perde nada de seu rigor. Mas, contra tudo isso, tenho alegria em meu coração, ao recordar minhas conversas contigo. Cuida dos filhos de Metrodoro: creio que posso contar com isso pela antiga devoção à minha pessoa e à filosofia”. A cena descrita por Diógenes Laércio traz inevitavelmente à lembrança outra cena de morte: Sócrates, segundo o relato do Fédon de Platão. Ambos, Epicuro e Sócrates, morrem serenamente, como exemplos de mortes sábias ou de sabedoria até a morte. Ambos bebem antes de morrer: Sócrates a cicuta que o envenena, Epicuro o vinho puro que lhe oferece a última sensação de prazer. Sócrates permanece tranquilo porque, enquanto espera o momento final, tece argumentos que ampliam os horizontes da espera e a transformam em racionalização da esperança na sobrevivência da alma.

Epicuro permanece imperturbável até o fim, justamente pela certeza de que a morte não lhe diz respeito, pois, ao chegar, não o encontra: seu corpo e sua alma feitos de átomos.

Referências:

  1. Pessanha, J.A., Etica, Companhia de Bolso.
  2. Lucrécio, Da natureza. Abril Cultural.
  3. Epicuro, Antologia de Textos. Abril Cultural.

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