Em “O Fim do Homem Soviético”, Nobel de 2015, a escritora e jornalista bielorussa Svetlana Aleksievitch inclui uma “conversa conduzida com a russa Natália Igrunova”:
“Mas que somos pessoas de desgraça e do sofrimento é a cultura russa profunda e antiga. Vai pelo campo e fala em qualquer cabana. De que é que falarão? Só da desgraça […] O sofrimento, a luta e a guerra, tal é a experiência da nossa vida e da nossa arte. ”
Este para- texto situado no epílogo da obra cumpre uma função importante, a de dar a conhecer o tom geral, a motivação estética e o programa narrativo da produção literária da autora sobre a “Grande Utopia” do século XX, a da primeira tentativa de construção do homem novo, modulado pela ideologia marxista (?)-leninista-stalinista soviética e da tragédia vivida pelo povo russo, agora na era de um novo autocrata, nascido nos porões da KGB, Vladmir Pútin.
“O comunismo tinha um plano insano: refazer o velho homem, o antigo Adão. E conseguiu… Depois de setenta anos, no laboratório do marxismo-leninismo, cultivaram um espécime peculiar, o “homo sovieticus”. Uns o consideravam um personagem trágico, outros, um sovok (aquele que aderia cegamente à ideologia oficial). ” (Svetlana)
Se olharmos retrospectivamente – diz Svetlana noutro contexto – para a totalidade da nossa história, quer a soviética, quer a pós-soviética, ela é uma imensa vala comum e um rio de sangue. Um eterno diálogo entre os executores e as vítimas. As amaldiçoadas questões russas: o que fazer, a quem culpar.
“A revolução, os gulags, a segunda guerra mundial, a guerra soviética-afegã que foi escondida do povo, a queda do grande império, a queda da gigante terra socialista, o desafio de dimensões cósmicas, Chernobyl! Isto é um desafio para tudo o que tem vida na terra. Eis a nossa história. E é este o tema dos meus livros, o meu caminho, os círculos do meu inferno, de homem para homem”.
O povo russo e a sua história recente e a contemporânea ocupam o primeiro plano e assumem o papel central na escrita de Svetlana Aleksievitch.
Ao falar dos efeitos da insensatez e dos desmandos da experiência política soviética, seu livro prefigura as razões da ocorrência de eventos sucedidos ou ainda por suceder noutros tempos e lugares, noutras cronologias e geografias culturais. Por isto, os efeitos da leitura dos livros de Svetlana tendem a cumprir a função catártica que a grande literatura trágica pode desempenhar junto a cidadãos que livremente se deixam guiar pela força da consciência crítica e examinadora do peso da história, das ilusões ideológicas e dos mitos de um irrefutável futuro do progresso.
Svetlana adotou a forma do designado “romance coletivo” ou “romance evidência”, isto é, uma modalidade narrativa que combina um conteúdo temático feito a partir de testemunhos plurais e diversificados sobre acontecimentos reais, com uma expressão despojada de efeitos retóricos e marcada por um tom de oralidade.
“Procurei o meu gênero– disse Svetlana – durante muito tempo para escrever da mesma maneira que o meu ouvido ouve.
No livro “O Fim do Homem Soviético”, Svetlana pratica com mestria essa técnica dando assim expressão a uma vontade de representação da realidade com uma evidente finalidade catártica.
Tendo nascido em 1948, ela, à semelhança de milhões de compatriotas seus e de milhões de outros cidadãos do mundo inteiro, teve como sua a ideologia comunista: uma doutrina messiânica de salvação, infalível, inscrita nas leis de desenvolvimento necessário da história da humanidade.
O seu desencanto e o seu posicionamento crítico relativamente a essa doutrina, que necessariamente impregnou a formação da sua personalidade, foram, porém, crescendo à medida que o seu alcance utópico passou a ser negado pela evidência das contradições, dos absurdos, dos malefícios e das injustiças da sua aplicação real.
O capítulo introdutório “Notas de uma Cúmplice” deixa implícita a ideia de que a opção da autora por “escutar todos os participantes do drama socialista” visou compor não um libelo, mas um réquiem por um regime político e um sistema económico e social cujo balanço tem de ser feito à luz do contexto histórico em que esse regime e sistema vigoraram e por contraste com os que lhes sucederam.
“ O Fim do Homem Soviético” é uma narrativa que se constrói por testemunhais sobre a ausência, denegação, ilusão ou vulgarização do tema da aspiração à vivência da liberdade. Um contraste que tem por pedra de toque a ideia de liberdade, ideia que serviu de mote à pesquisa de Svetlana e que, de modo assimétrico, lhe permitiu estabelecer uma distinção entre as gerações de concidadãos que nasceram e os que não nasceram nos tempos de URSS.
À pergunta feita aos seus entrevistados “O que é a liberdade? ”, as respostas dadas pelos pais e pelos filhos não podiam ser mais contraditórias, dado que são “pessoas de planetas diferentes”.
Os pais: a liberdade é a ausência de medo; uma pessoa que escolhe numa loja entre cem variedades de salames é mais livre do que uma pessoa que escolhe entre dez variedades; não ser espancado; o homem russo não compreende a liberdade, precisa do cossaco e do látego.
Os filhos: a liberdade é o amor; é a liberdade interior; um valor absoluto; quando não temos medo dos nossos desejos; ter muito dinheiro, e nesse caso teremos tudo; quando se pode viver de tal maneira que não se pensa na liberdade. A liberdade é o normal.
A narrativa rememora também o apogeu e a queda do regime soviético, num tempo ulterior de desencanto e desorientação ideológicos, num misto de sombra trágica projetada quer sobre a utopia da construção do homem novo, justo, igualitário e comunista, quer sobre uma nova utopia: a do homem pós-soviético, liberal, democrático, consumista, sem segurança mínima social, desiludido do mundo.
Esse esquema de estrutura bipolar se distribui pelas vinte histórias que integram as duas discretas partes “Consolação pelo apocalipse” e o “Encanto do Vazio”. Cada delas é temporalmente delimitada pelos dez anos que decorreram entre 1991 e 2001 – os anos de governo de Gorbatchov e de Boris Eltsin –, isto é, entre o golpe de agosto que precipitou o fim do regime comunista soviético e as tentativas de criação de um “regime democrático” e de uma economia de mercado na Federação Russa – e o decénio de 2002 a 2012 – que também foram os anos de consolidação da governação autocrata de Putin, numa Rússia economicamente dominada pelos oligopólios e pelo agravamento das desigualdades sociais.
Justapondo utopia e história, nostalgia e decepção, idealismo e pessimismo, liberdade e repressão, tragédia e farsa, coragem e delação, esperança e desilusão, cada uma das histórias é simbólica e inscrita pela predominância de um vetor semântico que oscila entre duas possibilidades narrativas temporalmente balizadas por aqueles dois decênios: as que são contadas “num interior vermelho” e as que o são “sem decoração de interiores”.
As primeiras, “num interior vermelho”, são as que refletem a fé – “Quero morrer comunista. É o meu último desejo”, diz uma vítima das purgas estalinistas, Vassili Petróvitch, de 87 anos, membro do partido comunista desde 1922. Ao mesmo tempo “ quem éramos nós?” pergunta Tíkhonovna, vizinha de Aleksandr Porfírevitch, 63 anos, marceneiro reformado, que se suicidou pelo fogo, deprimido e alcoolizado por ter sido abandonado pela mulher e pela razão de viver o ideal comunista da URSS que terminara.
“Quem éramos nós? Inimigos do povo … kulaks ou favoráveis aos kulaks . Na nossa aldeia todas as famílias remediadas foram deskulakizadas; se tinham dois cavalos e duas vacas já eram kulaks. Mandavam-nas para a Sibéria, abandonavam-nos ali na floresta da taiga … As mulheres estrangulavam os filhos, para que não sofressem”.
As segundas histórias, as narradas “sem decoração de interiores”, são as que traduzem, sem qualquer preocupação de reorientação ideológica, a deriva e a corrupção moral causadas pela dissolução dos rígidos mecanismos de doutrinação leninista- estalinista.
Diz a entrevistada Alissa Z-er, diretora de publicidade na narrativa “Uma solidão muito parecida com a felicidade”:
“Hoje é raro quem se deixe pasmar de amor. Consagram todas as forças a saltar! À carreira! Entre nós as raparigas novas agitam-se, e se alguém tem um sentimento verdadeiro, têm pena dela: coitada, é parva, está lixada. As agências turísticas de Moscou propõem distrações especiais para clientes endinheirados e entediados. Por exemplo dois dias na prisão […] vestem-lhes roupas de presidiário empurram-nos pelo pátio com os cães e espancam-nos com um bastão de borracha […] e eles ficam felizes. Experimentam novas sensações! ”
Essa dissolução dos valores políticos e ideais de fraternidade humana atingiria, porém, o seu momento mais paradoxal com a irrupção dos preconceitos nacionais e dos conflitos étnicos provocados pelo exaurir da força centrípeta do sistema de administração imperial e transnacional soviético.
Gavkar Djuraeva, dirigente do Centro “A Migração e a Lei”:
“Ano de 1992, em vez da liberdade que todos esperávamos começou a guerra civil. Os de Kuliab matavam os do Pamir, os do Pamir matavam os do Kuliab. Os de Karateguin, os de Guissar, os de Garm – todos se dividiam. Nas paredes dos prédios havia cartazes: “Russos, fora do Tajiquistão! Comunistas vão-se embora para a vossa Moscou”.
Ao longo desta narrativa há também um fio temático que a enleia e a atravessa e que diz respeito ao valor cultural e pedagógico da literatura enquanto território de conhecimento intelectual e estético do mundo dado e imaginado, enquanto veículo de resistência moral e de proclamação da incoercível liberdade do espírito humano.
“Dantes ia-se parar à prisão por causa do Arquipélago Gulag. Liam-no em segredo, batiam-no à máquina, copiavam-no à mão. Eu acreditava … acreditava (diz Anna M, arquiteta, 59 anos) que se mil pessoas o lessem tudo mudaria”.
“Eu acreditava em Tchékhov … (diz Aleksandr Laskovitch, soldado, empresário, emigrante entre os 21 e 30 anos). Foi ele que escreveu que o homem deve espremer de si o escravo até à última gota, e tudo nele será excelente: a alma, e as roupas, e os pensamentos. Mas acontece o contrário! ”.
“ Mas agora devo falar-lhe de Iura (diz a empreendedora Irina Vassíleva)… Na aldeia chamam-lhe «o vaqueiro leitor» porque pastoreia as vacas e lê. Vi em casa dele muitos livros de filósofos russos”.
Na última narrativa “A coragem e o que vem depois” a entrevistada, a jovem estudante Tânia Kulechova diz e questiona, aludindo à prática das torturas infligidas contemporaneamente pelo regime ditatorial bielorusso:
“Na escola diziam-nos. «Leiam Búnin, Tolstoi, esses livros salvam as pessoas». A quem se pode perguntar: porque é que isso não se transmite, e o puxador no ânus, ou o saco de plástico na cabeça asfixiante se transmite? ”.
Na contramão de Kulechova, a verdade é que a própria escrita da obra de Svetlana Aleksievitch é uma comprovação de que há livros como os seus que, se não salvam total e religiosamente os seus leitores, pelo menos permitem salvá-los da inconsciência de si, dos efeitos nefastos das suas ilusões, dos seus tédios, dos seus poderes, e de não se tornarem, por essa via cúmplices da transmissão das mais variadas formas de torturas e assassinatos.
Quando os arquivos da polícia secreta soviética foram abertos, os russos ficaram sabendo de parte da história que permanecera escondida deles, muitas por mais de setenta anos.
Svetlena nos faz recordar de algumas das “preciosidades históricas” encontradas, referentes ao terrível período da Guerra Civil, pós Revolução de 1917:
“Devemos arrastar conosco noventa milhões dos cem que povoam a Rússia Soviética. Com os demais é impossível falar: é preciso destruí-los” (Zinoviev, o autor do termo “homo sovieticus”, 1918).
“Enforcar pelo menos mil kulaks inveterados… tomar-lhes o pão, designar reféns… fazer de tal forma que num raio de 100 verstas o povo veja e estremeça” (Lênin, 1918).
“Moscou está morrendo de fome”(Kusnetsov a Trotski). “Isso não é fome. Quando Tito tomou Jerusalém, as mães judias comeram seus filhos. Quando eu fizer as mães comerem seus filhos, aí você poderá dizer que estamos morrendo de fome” (Trotski, 1918).
Era a geração e a gestação de um Stalin! O “homo sovieticus” recebia seus primeiros retoques.
Em entrevista à Revista Piauí, Svetlana reporta uma entrevista realizada recentemente com um professor universitário. E ele diz:
“No fim dos anos 1990, os alunos riam quando eu relembrava a União Soviética; eles tinham certeza de que um novo futuro se abria para eles. Agora o quadro é diferente… os alunos já descobriram na pele o que é o capitalismo: desigualdade, pobreza, riqueza descarada; eles já viram bem de perto a vida dos pais, para quem não sobrou nada da pilhagem realizada no país. E eles adotaram uma postura radical. Sonham com a própria revolução. Usam camisas vermelhas com retratos de Lênin e Che Guevara.