Essências de “A Montanha Mágica”.

A “Montanha Mágica”, de Thomas Mann, é um romance intelectual, ou seja, um romance de ideias, que nos fala sobre o tempo e a vida, sobre a doença e a morte.

“Concebi-o, inicialmente, como uma sátira humorística, numa atmosfera de morte e, mesmo, despreocupação”, que ele, Mann, vivenciara ao internar-se e à esposa por algum tempo no sanatório de Davos, em 1914, um pouco antes da Guerra.

“Seria uma viagem à decadência; contudo também a busca da ideia do homem, o conceito de uma humanidade futura que vivenciou o mais profundo conhecimento da doença e da morte” (Mann).

Em 1915, entretanto, Thomas Mann interrompeu seu trabalho, e ficou indeciso sobre a continuidade do romance. Pensou mesmo em descartá-lo. Afinal, ele apoiara a sanha guerreira de sua Pátria. Chegara a vender uma propriedade para ajudar o “fundo de guerra” do Kaiser e a romper com seu irmão, o também escritor socialista Heinrich Mann. De repente, suas convicções se abalavam.

Todos esperavam uma guerra curta, mas ela se prolongou, provocando um morticínio e destruição jamais vistas, que somente uma próxima guerra, a de 1939/45, superaria. Será esta realidade que atingirá o cerne de Thomas Mann e ele se metamorfoseará em um cidadão e escritor democrata e pacifista convicto.

“A Montanha Mágica”, interrompida em 1915, será reescrita e concluída somente em 1925, por este “novo escritor”.

E a história de Hans Castorp se transformará num enorme romance de mais de seiscentas páginas; aquilo que seria uma obra cômica transformou-se numa transição histórica trágica.

Hans Castorp visita o primo Joachim no Sanatório destinado ao tratamento de tuberculose, em Davos, nos Alpes suíços; vitimado de uma simples anemia, Castorp vai aos poucos mostrando sinais de uma possível tuberculose e acaba estendendo sua visita ao sanatório por meses e, afinal, anos.

Nesse período Castorp, pouco a pouco, conquista o que ele chama de “liberdade da vida normal”. Desliga-se do tempo, da carreira, da família e é atraído pela doença, pela introspecção e pela morte. Ao mesmo tempo, amadurece e trava contato mais profundo com a política, a arte, a cultura, a religião, a filosofia, a fragilidade humana e com o caráter subjetivo do tempo (um dos temas mais importantes da obra) e com o amor por certos olhos quirguizes.

Castorp é um espelho do que a guerra realizou com o psique de um dos maiores escritores alemães.

Já o sanatório é um microcosmo da Europa, tanto no pré quanto durante a guerra. As numerosas personagens do livro são representações de tendências e pensamentos burgueses que lá predominavam. Settembrini (humanista e enciclopedista) e Leo Naphta (um jesuíta totalitário), encabeçam a maior parte dos debates.

Essências:

1. Afinal, o que era o humanismo para Mann?

Era o amor aos homens, nada mais, nada menos, e por isso mesmo implicava também a política, a insurreição contra tudo quanto mancha e desonra a dignidade humana.

Haviam censurado ao humanismo o apreço exagerado pela forma, mas ele cultivara a bela forma por amor à dignidade humana, em esplêndida oposição à Idade Média, que vivia não somente entregue à misantropia e à superstição como também enfeada por uma ignominiosa falta de forma.

O humanismo, primo-irmão do iluminismo, desde os seus primórdios defendera a causa do homem, os interesses terrenos, a liberdade do pensamento e o prazer de viver, opinando que o céu, por motivos de equidade, pertencia aos pardais.

2. Sobre a natureza, paz espiritual e ponderação burguesa.

“Na minha natureza sempre houve certa inclinação para a seriedade e uma determinada antipatia contra as manifestações robustas e barulhentas”.

“Resquiat in pace me parece mais simpática que Vivat, crescat, floreat, com sua alegria ruidosa”.

A ponderação burguesa autêntica de Mann, tão bem espelhada em “A Montanha Mágica”, somente se alterará com a barbárie praticada pelos nazistas, nas décadas seguintes.

3. O que esperar da análise psicológica.

Mann possui uma invervenção de extrema importância sobre a psicanálise; a análise psicológica é boa como instrumento de esclarecimento e da civilização; é boa enquanto liberta, quando abala convicções estúpidas, dissipa preconceitos naturais e solapa a autoridade. É boa, em outros termos, enquanto refina, humaniza, enquanto prepara os escravos para a liberdade.

É má, muito má mesmo, quando estorva a ação, quando prejudica as raízes da vida e se mostra incapaz de lhe dar forma.

4. Como encarar e honrar a morte?

A única maneira religiosa (re-ligando-nos corpo e espírito) de encarar a morte é compreendê-la e senti-la como uma parte, um complemento, como condição inviolável da vida, ao invés- que seria o contrário de sadio, nobre, sensato, religioso – separá-la da vida espiritualmente, de pô-la em oposição a ela e de usá-la como argumento contra a vida.

Os antigos adornavam os seus sarcófagos de símbolos da vida e da procriação, e até de símbolos obscenos. Eles,sim, sabiam honrar a morte, pois a morte é venerável como berço da vida, como regaço da renovação.

Mas separada da vida torna-se um fantasma ou um bicho-papão, coisa ainda pior. A morte como potência espiritual independente é sumamente devassa, seu atrativo perverso é, sem dúvida, muito forte, e seria, também sem a mínima dúvida, a mais horrorosa aberração do espírito humano querer simpatizar com ela.

Mas não nos esqueçamos também de que somente a morte dissolve e redime, traz a redenção, nunca a redenção do mal, mas a redenção pelo mal. Dissolve a ética e a moralidade, redime da disciplina e da moderação, liberta para a volúpia.

5. E o que fazer com o tempo.

Alguns dizem que é enfadonho esperar o tempo passar, mas que ao mesmo tempo é mais propriamente divertido, porque assim devoramos quantidades de tempo sem as viver e explora-las enquanto tal.

No entanto, Mann recomenda evitar esse atoleiro, esta Ilha de Circe. “O senhor não é bastante Ulisses para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas, já está mesmo apoiando-se nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado! ” Não vale à pena deixar simplesmente que o tempo se escoa dentre nossos dedos.

6. O tempo e o progresso.

Todo movimento é circular, tanto espacialmente quanto no tempo; é isso o que nos ensinam as leis da conservação da massa e da periodicidade.

“Será que se pode em presença de um movimento fechado, sem rumo constante, ainda falar de um progresso? Quando penso naqueles povos antigos, cheios de sabedoria… qual seria mesmo o significado do progresso? ”

7. Qual a relação natureza, espírito e liberdade?

A natureza não precisa de espírito. Ela própria é espírito.

Já o espírito humano é dualista por natureza. E o dualismo é a antítese, o primeiro motor, o princípio passional, dialético e espirituoso. Já todo monismo é fastidioso.

Acontece que o espírito nunca deve tornar-se o advogado da reação, pois é sempre o advogado da liberdade ou deixará de sê-lo.

E a liberdade é a lei do amor humano e jamais o niilismo ou a maldade.

8. Conhecimento, fé e razão.

Santo Agostinho disse: “Creio para que possa me conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento e o intelecto aqui é secundário. E a ciência incondicional não passa de um mito.

Há sempre uma fé, um conceito de mundo, uma ideia, numa palavra: uma vontade e cabe à razão explicá-la e justificá-la.

9. Verdade e Mentira.

O Verdadeiro é, quase sempre, o que convém ao homem. Nisso se acha resumida toda a natureza: em toda a natureza, apenas ele foi criado e toda a natureza foi feita para ele.

A Verdade representa e se sente a medida das coisas, e a salvação do ser humano tem de ser como critério o da própria verdade.

10. O que esperar das revoluções vindouras? A predição do surgimento do Nazismo.

Aquele que acredita que o resultado das revoluções vindouras será a liberdade, iludiu-se redondamente. O princípio da liberdade cumpriu o seu destino e chegou a ser antiquado nos últimos quinhentos anos.

As organizações educadoras decidirão, em realidade, qual deva ser o objetivo da pedagogia: a autoridade absoluta, a obrigação de ferro, a disciplina, o sacrifício, a renúncia a si próprio, o domínio da personalidade”.

Em última análise, tempos vindouros dirão que não ama a juventude quem pensa que ela sente prazer diante da liberdade. O que ela mais aprecia é a obediência.

Pois o segredo e a existência de nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela mais necessita, o que mais deseja, o que recriará- é o terror. E o terror se plamasmará nas diferentes faces do fascismo, do nazismo e do stalinismo.

Afinal, a alma do Estado é o dinheiro! “O dinheiro será sempre o imperador, uma profecia do séc. XI”.

11. Existem perspectivas futuras de um mundo moral?

O espírito é soberano, sua vontade livre é o que determina o mundo moral.

De todo modo, as contradições podem se reconciliar.

Somente o meio termo e a mediocridade são irreconciliáveis.

12. Nossos sonhos.

Sou tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente de nossa própria alma. Sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual.

“A grande alma, da qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti, à tua maneira. Sonha com coisa que sempre lhe enchem os sonhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua felicidade, sua paz e também sua ceia sangrenta”.

13. O amor e a morte.

A morte e o amor, não, isso não permite rima. O amor enfrenta a morte; só ele e não a razão inspira pensamentos bondosos. Também a bela forma também não consta senão de amor e bondade!

“Eu sempre te amei! Porque és o “tu” de minha vida, meu sonho, minha necessidade, meu desejo eterno. O corpo, o amor, a morte, são só uma face da mesma coisa. O corpo é doença e depravação. É o que produz a morte. Amor e morte são a fonte de sua magia cruel. Amor é mística, nobreza, pureza e eternidade. Ah, arrebatadora beleza orgânica, não feita de óleos ou de pedras, mas de matéria viva e corruptível, completa do febril segredo da vida e da decadência! Considere a simetria maravilhosa da estrutura humana, os ombros, os quadris, os seis florescendo de cada lado, as costelas dispostas em pares, o umbigo rodeado da barriga macia, e a escuridão pubiana entre as coxas! Veja as omoplatas mexerem sob a pele sedosa das costas e a coluna descendo na dobra exuberante das nádegas, a grande rede de veias e nervos ramificando-se para fora, e a forma como a estrutura dos braços correspondem às pernas. Oh, o doce da superfície interna do cotovelo e a cavidade do joelho, com a sua abundância de delícias orgânicas sob a carne estofada! Que festival imenso de lugares para acariciar!”

“Quero conservar o meu coração fiel à morte e, contudo, recordar-me claramente de que fidelidade à morte e ao passado é apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos homens, quando determina os nossos pensamentos e atos de governo. Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos”.

Enquanto existimos não existe a morte e quando ela existe, nós já deixamos de existir; por conseguinte, não há, entre nós e a morte nenhuma relação real e ela é a única coisa que para nós não tem absolutamente nenhum interesse e que, quando muito afeta ao mundo e a natureza.

Finalmente, Thomas Mann destaca o efeito purificante e santificador da literatura, a destruição das paixões pelo conhecimento e pela palavra, a literatura como caminho à compreensão, a indulgência ao amor, o espírito literário como o fenômeno mais rico do ser humano em geral e o poder salvador da língua.

“A literatura não era outra coisa senão isso: a associação do humanismo com a política, associação que se realizava com a maior naturalidade, visto o próprio humanismo ser política e a política significar humanismo…”

“A Montanha Mágica” é, sem dúvida, uma obra soberba! Suas reflexões profundas buscam discernir um pouco o fulcro da alma humana e dos tempos que vivemos.

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