O dia em que o capitão Lamarca não morreu.

No dia 4 de novembro de 1956, a Assembleia Geral da ONU aprovou o envio de tropas internacionais para a manutenção da paz no Oriente Médio. O Brasil, por seu lado, enviou tropas para a missão naquilo que foi denominado “Batalhão Suez”.

Em 1962, integraria uma das tropas do Batalhão Suez  o então tenente Carlos Lamarca, que lá permaneceria por 18 meses, ao final dos quais foi promovido com distinção a capitão.

Ao mesmo batalhão pertencia o então tenente Maurício Lima, sempre ressentido com o colega Lamarca, que brilhava e o desprezava. Maurício nutria-lhe um ódio pessoal.

Em 1968, Carlos Lamarca decide com diversos de seu companheiros trocar a farda do exército do Golpe de 64 pela resistência revolucionária à ditadura, tornando-se um dos comandantes mais procurados pela repressão.

Um gesto heroico.

Era já madrugada quando Alexandrino foi despertado pela abertura da cela-forte. Disse-lhe o carcereiro cognominado Marechal: “Você vai pra outra cela”, que era a coletiva.

Traziam das salas de tortura, amparado nos braços, alguém que iria substituí-lo no isolamento. Alexandrino por instantes pode ver o rosto de uma pessoa que o impressionaria para toda a vida. Nele se estampavam a pureza, a essência humana da sinceridade, num corpo que mesmo alquebrado pela tortura de um dia e uma noite, denotava beleza e muita naturalidade.

Alexandrino viu nos olhos de Roberto Macarini, pois assim se chamava o nosso herói, que os verdadeiros terroristas, aqueles que se auto-denominavam “patriotas” não conseguiriam pegar o grande comandante Lamarca no “outro dia”, como já anunciavam.

Pela manhã, já o Marechal chega com seu grito idiota para despertar aqueles que talvez dormissem nas masmorras: “Arruda, dá-lhe milho!” E já tem suas ordens. “Alexandrino não come hoje, vai subir”.

Era o anúncio de nova sessão de torturas.

Quando sai da sua cela ele vê, também fora do isolamento, o combatente que o substituíra no dia anterior. Ao lado dele um médico ou enfermeiro, desses que juram por Hipócrates, mas rendem culto a Belzebu, aplicando-lhe emplastos na face machucada, enquanto ele mesmo faz, com esforço, a própria barba.

Marechal tem pressa para com Macarini e lhe diz: “A equipe do capitão Maurício está esperando para te levar pro ponto-de- encontro, o Lamarca cai hoje!”

No olhar que trocam, Alexandrino não sente nem desespero e nem dor, mas o orgulho, a pureza e a determinação de quem irá praticar um ato de tal grandeza e majestade que vale por toda uma humanidade. Serão momentos que valem por uma vida.

Enquanto Alexandrino é levado para a continuidade da tortura interrompida, Macarini é conduzido pelo então eufórico capitão Maurício e jogado no porta-malas de uma “perua” C-14, presente e colaboração da Chevrolet americana para a “patriótica” repressão política do Brasil.

E Lamarca não caiu.

O tempo passado em tortura não tem a dimensão daquele que transcorre em nosso dia a dia. Um preso torturado é incapaz de se lembrar dos detalhes do que lhe foi perguntado e, muitas vezes, mesmo do que falou, pois a correlação temporal quase que se defaz no processo. Pedro Alexandrino não sabe se foi após uma hora, duas ou talvez três horas quando ouviu o grito do bando de chacais que retornava do ponto- de- encontro ao qual haviam levado Macarini.

“O ponto era frio, não tinha nada de Lamarca!”.

De repente, todos os sequazes que o interrogavam deixaram-no a sós e desceram para o pátio onde as equipes de “busca”estacionavam seus carros.

Pelo vitrô da sala de tortura pode ver que tiravam do porta-malas da C-14 um corpo todo ensanguentado e disforme, corpo que já não podia sofrer e que, mesmo assim recebeu ponta-pés e cuspe daqueles verdadeiros terroristas, que se arvoravam o direito à vida e à morte e que nem mesmo aos mortos devotavam qualquer respeito.

Alexandrino ainda ouviu de um dos assassinos: “O desgraçado se jogou do Viaduto do Chá e quando tentei segurá-lo, quase me levou junto, filho-da-puta!”

Era o final da manhã do dia 28 de abril de 1970.

Para os arquivos da história a versão oficial é de que os assassinos teriam jogado Macarini vivo do viaduto, mas Alexandrino tem sua própria convicção de que Macarini ludibriou seus sequazes buscando gloriosamente a própria morte.

Se por um lado, custa-nos  acreditar até que ponto pode-se corromper a natureza humana, por outro lado, atitudes com as de Macarini, que teve sua vida ceifada aos dezenove anos, mostra-nos os píncaros do amor ao próximo e de entrega a que o mesmo homem pode chegar.

E o capitão torturador Maurício Lima não conseguiu assassinar seu desafeto, o comandante da resistência Carlos Lamarca.

Referências : extraído de “Memórias de um subversivo”, sétimo episódio, 2012, de autoria de Carlos Russo Jr.

4 respostas

  1. Relato contundente ! Sim, eu me lembro da rivalidade, ou melhor, da inveja do Cap. Maurício tinha de Lamarca e sua fama e destreza nas armas.

  2. Nossa história tem muitos relatos de violência desde a forma como se escravizou os povos indígenas nas missões e na exploração do período colonial como também os escravos da África negra …seguidos do tipo desse relato da época das ditadura varguista até os relatos da ditadura de 64 ..
    Não podemos esquecer nem uma nem outra ..
    Brasil e América livres no presente e no futuro são anseios de um povo unido pelo um mesmo sentimento. Vivi as duas ditaduras no Brasil Na primeira eu era criança mesmo assim me lembro das conversas em casa …Filinto Muller foi um algoz, tal esse narrado no texto…
    Nessa última vivi mais presente pois como professora e universitária convivia com as ideias da propaganda do governo, que os mais desavisados se deixavam levar Há pouco, parece que nos livramos de “alguém ” para quem a tortura é uma forma legítima de ganhar o jogo sujo e deprimente da covardia humana Desculpe o desabafo

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