No mundo em que vivemos a atualidade da Tragédia Grega.

Vivemos hoje em um mundo onde os valores herdados da história da civilização estão colocados em cheque. Os bens são objetos de consumo imediato numa sociedade excludente e brutal para com a maioria, superficial, mecanicista, em processo de perda acentuada da intelectualidade em suas elites.

Caminhamos, na verdade, em direção a uma bifurcação na estrada da vida, tal qual ocorre nas ambíguas escolhas dos Heróis das Tragédias Gregas: podemos seguir pelo lado da barbárie, que é o natural, inerente à dinâmica do capitalismo (aliás, recordemos Lacan que afirma ser o capitalismo uma espécie arquetípica do subconsciente), ou caminhar para um outro lado, tão complexo quanto novo e inseguro, uma trilha que conduza ao Renascer da Humanidade e de seus valores.

A Tragédia Grega coloca em cena uma montagem que visa, no fundo, esclarecer a existência humana e seu destino. Nesse sentido é importante revisita-la!

“À luz da dramaturgia, o homem não parece delineado como uma natureza estável, uma essência que poderia ser delimitada e definida, mas como um problema; ele adquire a forma de uma interrogação, de um questionamento”.

Criatura ambígua e enigmática, desconcertante: ao mesmo tempo agente e agido, culpado e inocente, livre e escravo, destinado por sua inteligência a dominar o universo e incapaz de governar a si mesmo e associando o melhor e o pior, o ser humano pode ser qualificado de “deimós”, nos dois sentidos do termo: maravilhoso e monstruoso”. (Vernant)

É uma tarefa ingrata qualquer tentativa de hierarquizarem-se as invenções do espírito grego. Afinal, um povo que criou a filosofia, as bases para a análise científica da natureza, o raciocínio abstrato, a matemática e o cálculo, o conhecimento aguçado do comportamento psíquico do homem, qual destas contribuições terá sido a mais importante?

Mas se identificarmos em toda a cultura helênica qual criação foi não necessariamente a mais decisiva, mas, sim, a mais ousada, tal qual Bonnard, não teremos dúvida de que tenha sido a Tragédia Grega.

A tragédia dita primitiva- “o Diritambo”- trazia o mundo dos deuses até o mundo dos homens, tornando o divino humanizado. Era um canto religioso dionisíaco, entoado por cantores que, em coro, utilizavam “personnas”- máscaras de animais, os Sátiros. Continha elementos dramáticos que se transmitiam à plateia participante, num acontecimento mítico.

A Tragédia Grega ampliará isto, primeiramente exigindo que os deuses sejam justos e imponham a justiça- a “dique”- ao mundo, e que, a partir do exemplo divino, estabeleça-se uma ordenação na comunidade dos homens.

Desde seu nascimento, que data do princípio do século V a.C. até seu declínio, nos anos 20 do século IV a.C., a Tragédia se desenvolveu dentro de condições históricas importantes de serem compreendidas para o entendimento desta “nova arte”.

A Tragédia surge no declínio dos aristocratas, durante a tirania de Pisístrato, que foi levado ao poder à força, pelos camponeses mais pobres.

Ele promoveu reformas sociais importantes, dentre elas uma melhor distribuição de terras e instituiu as Festas Dionisíacas, como um concurso de produções artísticas para o deleite dos cidadãos. Pisístrato constituiu uma ponte de passagem para Péricles e a para a Democracia Grega, assim como o “diritambo” o fizera com a Tragédia.

Aristóteles afirmou que “o historiador narra o que aconteceu e o poeta o que poderia ter acontecido”. Ao mesmo tempo afirma ser a poesia “mais filosófica que a história”, dado que esta última tende ao específico e a poesia, ao “universal”.

Os mitos formavam o conteúdo da poesia trágica, assumindo um valor de realidade. Logo, a poesia épica ao narrar o mito constrói dois patamares: um que é o divino e o outro, o humano, de tal modo que o desenrolar dos acontecimentos na esfera do divino determinará o desenrolar dos acontecimentos terrenos.

A máscara na Tragédia deixa de ser aquela máscara figurativa de demônios ou animais, mas surge como um elemento cênico importante, elemento esteticamente definido. Representa um sujeito “psicológico”, integrando a personagem trágica numa categoria social e religiosa bem definida: a dos Heróis.

Em contraponto com os atores estará o coro trágico, um ser anônimo e coletivo, cujo papel, de conformidade com Vernant, consiste em “exprimir seus temores, suas esperanças e julgamentos, os sentimentos dos expectadores que compõem a comunidade cívica”.

Desta forma, na Tragédia, a narrativa é realizada no presente e todo o lirismo do século V a.C. tende a dar valor à realidade terrena; o presente é apenas “iluminado” pelos mitos, pelo passado e pelos lugares em que os “fatos” teriam ocorrido.

A construção dos modelos, os Heróis, constitui os paradigmas éticos, que é o reconhecimento dos comportamentos referenciados pela melhor tradição cívica.

Para o espectador grego, o que se representa é verdade? Não. Então, é pura mentira? Também não, pois o critério da verdade e da mentira que se poderia utilizar na poesia épica perdera toda a serventia. A arte imita e interpreta a realidade, representando-a somente, tornando-se com isto uma nova e particular realidade.

Precisamente na Tragédia é onde o mito perde toda conecção com situações determinadas, concretas. Já não serve para representação de fatos da vida humana fixados no tempo e no lugar, como vitórias, conquistas, cultos religiosos, mas para a representação de fatos universais.

É deste modo que o interesse da Tragédia se desloca para a Filosofia e já estará próximo o momento em que a problemática da condição humana de que trata a Tragédia se transformará em um problema do conhecimento, do “logos”.

Ocorrerá o surgimento de Sócrates tentando equacionar a condição humana através do bem. Eurípides, o último dos grandes trágicos, ainda está longe disto, pois é poeta e não filósofo, apesar de influenciado pelos sofistas e por Sócrates. Talvez por isso mesmo ele ainda vê a realidade através de figuras vivas, não através de conceitos. Entretanto, é analisando suas poesias que entenderemos Aristóteles quando diz que “a poesia é mais filosofia que história”.

A verdadeira matéria que constitui a Tragédia é o pensamento social em efervescência nas cidades gregas, especialmente o pensamento jurídico em pleno trabalho de construção.

Todo um vocabulário que é técnico e que perfaz os dramas, assim como a condução de diversos Heróis à presença de Tribunais, recentemente introduzidos, possuíam a novidade dos valores que regulavam sua fundamentação.

No dizer de Vernant: “os poetas trágicos utilizam este vocabulário deliberadamente com as incertezas, com suas flutuações, com sua falta de acabamento,… traduzindo igualmente seu conflito com uma tradição religiosa, com uma reflexão moral de que o direito já se distinguira, mas cujos domínios não estão claramente delimitados.”

“O direito não é uma construção lógica: constituiu-se historicamente a partir de procedimentos “pré-jurídicos” de que se libertou e aos quais se opõe, embora em parte permaneça solidário com eles”.

Os gregos não têm a ideia de um direito absoluto, fundado sobre princípios, organizado num sistema coerente. Para eles há como que graus de direito. Num polo o direito apoia-se na autoridade de fato; no outro, coloca em jogo potências sagradas, assim como problemas éticos e morais que dizem respeito ao homem.

A Tragédia questiona essa realidade que é nova, coincidente com a formação dos cidadãos-livres, o sentido da cidade como Pátria, a responsabilidade coletiva vivenciada na democracia.

Por isso, a tragédia é questionadora da realidade vivida e de seus valores, ao invés de, simplesmente ser um “espelho” do real que assume os palcos. Ela foi mais do que tudo uma instituição social, ao lado dos órgãos públicos políticos e de justiça.

É a própria cidade que se faz teatro no momento das celebrações dionisíacas. E o teatro é tão importante que a presença do cidadão é subsidiada pelo poder público, sendo que o próprio Arconte responsabiliza-se por toda a sua realização.

Do “anthropos” ao “homus aner”.

A autêntica tragédia está ligada a um decurso de acontecimentos de alto dinamismo. O que sentimos como trágico deve significar a descida de um mundo de segurança e felicidade ilusória para um abismo de desgraças, na maioria das vezes irreversível.

A queda é tão grande e brutal que somente heróis poderiam suportá-la. E é ele, o Herói, o sujeito do ato trágico, consciente de sua condição miserável, que tudo suporta num processo de transformação de “anthropos”- homem comum- em “aner”- que é o homem consciente de si mesmo.

Nos dias de hoje, toda e qualquer vitória contra a barbárie enfrenta o mesmo desafio que a Tragédia Grega colocava há mais de vinte e cinco séculos: a transformação do homem com consciência de si mesmo, seu imbrincamento iniludível com a responsabilidade social e com a Natureza.

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