Por muitos anos Nikolai Leskov foi ignorado tanto pela literatura ocidental quanto pela russa. De pouca serventia teve o espanto de Liev Tolstoi: “É estranho que Dostoievski seja tão lido…, não compreendo porque não se fale e não se leia Leskov. Ele é simplesmente um escritor fiel à verdade.”
Somente após trinta anos de sua morte e a partir de Máximo Gorki ele foi reconhecido em sua própria terra: “Leskov é o escritor mais profundamente enraizado no povo russo e o mais inteiramente livre de influências e modismos ocidentais.”
Ao trabalhar como representante de uma empresa inglesa, ele conheceu da Rússia até os confins, suas crenças e seitas populares e ao residir em Kiev, aprofundou-se em toda a vastidão da mística ucraniana. “Precisamos simplesmente conhecer o povo como a própria vida; não temos que estudá-lo, mas vivenciá-lo, amá-lo.”(Leskov).
Foi Walter Benjamin, no final dos anos 30, um dos primeiros pensadores ocidentais a reconhecer a enorme contribuição narrativa de um verdadeiro precursor do naturalismo e em sua homenagem escreveu o ensaio “O Narrador”. “Todo narrador é um homem que sabe dar conselhos e se nos dias de hoje os conselhos estão saindo de moda é porque as experiências pessoais ou de terceiros estão deixando de serem comunicáveis”. “Se a arte de narrar está definhando é devido que “a sabedoria- o lado épico da verdade- está em extinção”. Leskov é um contraponto a esta tendência, o que reveste o autor de “Lady Macbeth” de enorme atualidade.
Nikolai Leskov (1831/1895), foi contemporâneo de Dostoievski e Tolstoi; se de Dostoievski ele nos aportou a ortodoxia religiosa, a identificação com a natureza e a simpatia para com o camponês nos conduzem até o gênio de Yasnaia Polyana. Por outro lado, o genuíno interesse religioso deste “Narrador” tinha como contraponto a hostilidade recíproca para com a ortodoxia eclesiástica. Leskov também não tinha em grande conta os funcionários públicos. Seus personagens centrais são homens ativos, justos, que têm a capacidade de aceitarem o mundo sem se prenderem demasiadamente nele.
Talvez por isso, ao narrar, ele é fiel à vida sem esquecer o lugar da morte (simplesmente o desaparecimento das coisas), quer esta caminhe à frente do cortejo narrativo, “quer como retardatária miserável”, mas jamais como um escândalo e nem um impedimento. Pergunta-se Benjamin: “Seria este o motivo de sua proximidade aos contos de fada?”
Leskov tem a habilidade de narrar o extraordinário e o miraculoso com a maior exatidão, sem impor, ao contrário de escritores dramáticos como Dostoievski e épicos como Tolstoi, o contexto da ação psicológica. Logo, seu leitor é livre para interpretar a ação narrada como ele quiser. Enfatiza Benjamin: “Nada facilita mais a memorização de narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica.” Quem tiver o prazer de ler ‘Lady Macbeth do distrito de Mtzensk’, jamais esquecerá seu enredo e que, nas palavras de Leskov, “Já se foi a época em que o homem poderia sentir-se em harmonia com a natureza.”
A obra de Leskov é vasta, são contos e novelas da mais alta qualidade artística.
Em “Kotin, o Provedor” e em “Platônica” temos o conto inspirando a compaixão pelos rejeitados e excluídos, pela mulher que sofre constantes abusos e nunca pode se libertar e pelo garoto que não conhece sua identidade sexual e é privado da educação pelo escárnio social.
“Lady Macbeth do distrito de Mtzensk” foi escrito em 1864 e publicado em primeira mão pela revista Epoka, de propriedade dos irmãos Dostoievski. A luxúria desenfreada de uma mulher é o contraponto aos dois contos anteriores. Benjamin afirmou que as narrativas de Leskov podem ser tão demolidoras quanto a ira de um Aquiles! De todos os modos, retratam a amplidão do mundo e de suas criaturas.
A inspiração de Leskov ao escrever “Lady Macbeth” não veio apenas de Skakespeare (“Macbeth”). Sua releitura teve por pano de fundo um fato da vida real: “Certa vez um velhote vizinho de minha casa que ‘já vivera demais’, foi descansar embaixo de uma groselheira… sua nora, impaciente (por tardar tanto a apossar-se da herança), despejou lacre quente em seu ouvido… no enterro, a orelha se desprendeu. Depois um carrasco torturou a moça na praça e todos admiraram sua brancura.”
Em Shakespeare a mulher de lord Macbeth instiga o marido a assassinar o Rei Duncan, seu parente, e colocar em sua cabeça a coroa de rei. Mas sangue sempre atrai mais sangue. Em Shakespeare o líquido das artérias é abundante e corre ao lado da ira, da inveja e do medo. Após o assassinato do primo e de posse da coroa real, Macbeth vê inimigos em todos os lados e o sangue rola. O desejo pelo poder, instilado por lady, é paranoico. Quando uma oposição vinda do exterior consegue se articular para enfrentá-lo, a esposa tem a coragem de se suicidar, enquanto lord Macbeth morrerá pelas mãos de Macduff, “aquele que não nascera do ventre de uma mulher” .
No conto de Lescov temos um triângulo amoroso que poderia ser banal. Um rico comerciante, velho, mais voltado para os negócios que para a vida a dois, sabemos que infértil (embora o povo visse a mulher como responsável por tal); uma mulher muito mais jovem, Katarina Lvovna ,entediada com a vida, aspirando aventuras e um jovem empregado, bom de cama e por demais ambicioso. Leskov, fugindo à banalidade do tema, tem a habilidade de retrabalhá-la ao sabor de Shakespeare e fornecer o tempero russo.
O reino para Leskov não é a Escócia, mas o de uma classe abastada na Rússia da época, os comerciantes! Os grandes comerciantes russos, pequenos reis na mediocridade dos negócios.
Lady Macbeth, Katarina Lvovna ( leoa), escolhe seu amante e fará tudo para segurá-lo, garantindo-lhe o status de comerciante, a verdadeira ambição de Seguiei. Para tal, ela assassinará por envenenamento uma testemunha de seus amores extra-conjugais, o sogro de seu marido Boris, que a ameaçara de castigos públicos.
Posteriormente estimulará no marido Zinovi o ciúme e ao fazê-lo, “não se sente tomada de pena, mas de um riso perverso.” Quando este é forçado a ver a realidade da traição, os amantes o assassinarão e esconderão o cadáver.
Mas as mortes, tal quais em “Macbath” de Shakespeare nunca bastarão. Ao surgir uma criança, parente de Zinovi, que herdaria parte do que este deixara, ela será sufocada até a morte pelos amantes.
Para Hegel, “Nela não há nenhuma hesitação, incerteza, reflexão, nenhum retroceder. Nenhum arrependimento, mas pura abstração e dureza de caráter, até quebrar-se.”“Vive Katarina Lvovna, reina, e sob seu reinado Serioja será chamado Serguei Filipivich.”
Quando é descoberta com o cadáver da criança recém-sufocada pela turba de fiéis, que reternando da Igreja, tal qual a floresta de Shakespeare que se move e “caminha até o castelo do Rei”, os assassinos são finalmente presos.
Mas ela não se dobra. Quem tudo confessa é o amante, que quer a graça divina pelo arrependimento: “Os lábios de Serguei tremiam, só os de Katarina estavam frios.”
E ela não se quebrará nem ao látego do carrasco ou à condenação a trabalhos forçados. “O homem, na medida do possível, se habitua a qualquer situação abominável, e na medida do possível, mantém, em cada situação a capacidade de perseguir suas parcas alegrias.”
Somente quando é repetidamente repudiada pelo amante no caminho para a prisão, sua personalidade desaba. Reage ainda ao tornar a matar e morrer afogada, arrastando consigo a nova amante de Serguei.
Também lady Macbeth de Shakespeare não se quebra pelas visões dos crimes que cometera com o marido, apenas busca a morte pelas próprias mãos ao se encontrar perdida.
Obs.: Texto proferido em palestra no Quartier des Arts, em agosto 2016.