Nietzsche e Marx não possuem equivalentes na deturpação de seus pensares.

Na metade do século XIX, o alemão Schopenhauer usou uma metáfora para expressar seu entendimento do mundo moderno: imagine que se pudesse bater nas lápides dos cemitérios e perguntar às almas que lá descansam se desejavam voltar à vida, elas, com certeza, responderiam negativamente, pois encontraram um descanso eterno. Para ele, não vale à pena viver: as felicidades não pagam as dores, por isso os mortos preferem continuar onde e como estão. A este pensar se denominou filosoficamente NIHILISMO.

Na transição para o século XX, outro alemão, Nietzsche, realizou uma diferente leitura da negatividade. Com ele, o niilismo tornou-se consciente e ativo. E ao tornar-se ativo, às tormentas da alma shopenhaueriana, Nietzsche adicionou determinados valores fundamentais.

Tal qual um profeta, visualizou o apocalipse vindouro para o qual a humanidade caminhava. O apocalipse dos campos de concentração, dos genocídios, dos preconceitos raciais, dos gulags.

O que jamais Nietzsche fez foi exaltar o apocalipse que nos acompanha mais de um século após! Jamais! Ele adivinhara a face sórdida, calculista e assassina que o apocalipse terminaria assumindo. O que ele desejava com todas as suas forças era evitá-lo e transformá-lo num Renascimento do gênero humano!

No momento histórico em que Nietzsche vislumbrou o apocalipse, a humanidade já havia matado seu Deus, logo, a revolta de Nietzsche parte do Deus morto. E esta revolta se dirige a tudo aquilo que vise falsamente substituir a divindade desaparecida por eloquentes mercenários, que desonrem a espécie humana e o mundo.

Reconheceu o niilismo que impregnava o pensamento e as ações e o tratou como um caso clínico. Diagnosticou em si mesmo e nos outros a impotência de acreditar e o desaparecimento do fundamento primitivo de toda fé, ou seja, da crença na vida.

À pergunta de poder-se viver toda uma vida revoltado, ele respondeu com um questionamento: ”pode-se viver sem acreditar em nada”? E sua resposta é sim! Em vez da dúvida metódica, ele aplicou a negação metódica, a destruição de tudo aquilo que ainda escondia o niilismo de si próprio. E, tornando-o transparente, logrou torna-lo consciente.

O ateísmo de Nietzsche sempre foi radical, e construtivo!

O mundo anda ao acaso, logo Deus é inútil, já que nada quer. Privado do divino, entretanto, o mundo fica igualmente sem unidade e finalidade e por isso, não pode ser julgado. “As vantagens desse tempo: nada é proibido, tudo é permitido”.

A conduta moral cristã assume para Nietzsche o sinal de decadência. A verdadeira moral não se separa da lucidez, e ele é severo como ninguém com os caluniadores do mundo, pois a moral tradicional é imoralidade. “É o bem que, por motivos morais, terá que ser justificado”.

Para Nietzsche, Cristo não era um revoltado, pois o essencial de sua doutrina resume-se no total consentimento representado pela não resistência ao mal. Não é preciso matar, mesmo para impedir que se mate, pois é necessário aceitar o mundo como ele é, e assim fazendo, recusar-se em aumentar sua desventura. Não se trata de fé, mas de ações, pois uma disposição interior permitia aos primeiros cristãos colocar os atos de acordo com os princípios e levar à beatitude imediata.

Mas após este princípio primitivo, o cristianismo nada mais foi que uma longa traição de sua própria mensagem. O “Novo Testamento” é fruto da corrupção que vai de Paulo aos Concílios e foi a subserviência “à fé” que fez esquecer as obras de Cristo.

A principal corrupção da consciência humana Nietzsche a localiza no julgamento, no apocalipse de João de Patmos, nas noções de castigo eterno e recompensa. E desta corrupção nasceu a ideia da totalidade humana, pois ao final da história, ao final dos tempos, os homens serão separados em bons e maus. Logo, o cristianismo histórico, aquele que secularizou o sagrado, impede que a vida descubra o seu verdadeiro sentido.

Da mesma forma Nietzsche se insurge contra o socialismo e todas as formas de humanitarismo. O socialismo seria um subproduto do cristianismo degenerado, mais que tudo uma doutrina moral, e ele a combate.

O espírito livre destruirá tais valores ao denunciar as ilusões sobre as quais repousam. A inteligência lúcida deve realizar a sua missão: transformar o niilismo passivo em ativo!

Num mundo liberto de Deus e da moral o homem se acha só e sem senhor. ”Ao colocar-me acima da lei sou o maior dos rechaçados.” Quem não consegue colocar-se acima da lei precisa encontrar outra lei, ou a demência.

O homem é responsável por tudo aquilo que vive, por tudo o que, nascido da dor, está fadado a sofrer na vida. Como espírito livre, Nietzsche sabia que esta liberdade não é um conforto, mas uma grandeza que se quer e obtém, fruto de uma luta extenuante. Todos os possíveis somados não permitem a liberdade, mas o impossível é a escravidão!

O essencial consiste em dizer que se a lei eterna não é a liberdade, a ausência de lei o é ainda menos. O próprio caos também é somente servidão. Só há liberdade em um mundo onde o que é possível e o que não é, encontram-se simultaneamente definidos. Se o destino não for orientado por um valor superior, se o acaso é o rei, eis aí a marcha para as trevas, a própria liberdade dos cegos.

“Quando não se encontra grandeza em Deus, ela não é encontrada em nenhum lugar; é preciso negá-la ou criá-la”. Desde que não se reconhece nenhum julgamento, todos os juízos de valor devem ser substituídos por um único sim e a adesão a este mundo deve ser exaltada. Negá-la era a tarefa no mundo em que ele vivia e que ele via correr rumo ao apocalipse, ao suicídio coletivo.

Criar alguma grandeza foi a tarefa sobre-humana pela qual Nietzsche se predispôs a morrer. A partir do desespero absoluto poderá brotar uma alegria infinita; da servidão cega, a liberdade sem piedade.

Como ser livre significa a abolição dos fins, a inocência do futuro representará o máximo de felicidade. O espírito livre ama o que é necessário. A questão “livre de que?” é substituída por “livre para que?”.

A liberdade coincide com o heroísmo. Ela é o asceticismo do grande homem, “o arco mais esticado que existe”. Nasce de uma vontade determinada de se ser o que se é, em um mundo que seja o que ele realmente é.

Nenhum julgamento explica o mundo, mas a arte pode nos ensinar a reproduzi-lo, assim como o mundo se reproduz, através dos eternos retornos. Partidário do gosto clássico, da ironia, da impertinência frugal, aristocrata que soube dizer que a “aristoi” consiste em praticar a virtude sem saber o porquê, que se deve duvidar de um homem que requer razões para ser honesto, Nietzsche foi inimigo mortal do fanatismo, um obcecado pela integridade!

“Há na verdade um Deus, que é o mundo. Para participar da divindade basta dizer sim”. Não rezar mais, mas dar a benção, e o mundo se cobrirá de homens-deuses. Dizer sim ao mundo e reproduzi-lo, é ao mesmo tempo recriar o mundo e a si próprio, tornar-se o grande artista, o grande criador. A transmutação de valores consiste em substituir o juiz pelo criador: o respeito e a paixão pelo que existe.

Marx e Nietzsche, na história da inteligência, não possuem equivalentes na deturpação de seus pensares.

Nietzsche clamava por um César romano com a alma de um Cristo. Isto era ao mesmo tempo dizer sim ao escravo e ao senhor. Prevendo Hiroshima, afirmou que: ”Quando os fins são grandes, a humanidade usa outra medida e não julga o crime como tal, mesmo recorrendo aos meios mais terríveis.”

“É fácil falarmos de todos os atos imorais, mas teremos a força de suportá-los? Por exemplo, eu não suportaria faltar com minha palavra ou matar; eu persistiria, mais ou menos tempo, mas morreria por isso, esse seria o meu destino.” A responsabilidade de Nietzsche está em ter legitimado, pelo pensamento, este direito à desonra.

Ele não se deu conta que as doutrinas de emancipação socialista, por uma lógica inevitável do niilismo, deviam tomar a cargo aquilo com que ele próprio sonhara: a super-humanidade! E com Marx, com a profecia da sociedade sem classes, ambos substituiriam o além pelo mais tarde.

Nietzsche enquanto esperava o super-homem dizia sim a tudo o que existe; Marx diria sim a tudo o que viria a ser. Para Marx, a natureza é o que se subjuga para obedecer à história, para Nietzsche a natureza é aquilo a que se obedece para subjugar a historia.

Referência: uma releitura de “O Homem Revoltado”, de Albert Camus.

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