MEMÓRIAS DE UM SUBVERSIVO (segundo episódio)

“Sobrevivendo nas Sombras”

Um general patriota e um “gorila” com “cara de perro hambriento”

Passara-se quase um ano após o episódio do “compadre” da Policia Federal. A situação política argentina se definira. A democracia caíra apenas com um berro dado pelos comandantes militares de turno. Isabel de Peron foi por eles mesmos embarcada para Madri, para um exílio dourado, ao lado do assassino Lopes Rega. Os idos de março de 1976 foram tempos negros que seriam para sempre tingidos com o sangue do povo argentino e de tantos mais latinoamericanos que se encontravam naquelas terras. As Forças Armadas argentinas haviam, afinal, instaurado “a banalização do terror”.

A grande maioria dos brasileiros que tinham deixado o Chile de Pinochet rumo à Argentina já haviam, por sorte, partido para o exílio em outros países, principalmente para a Europa. Pedro Alexandrino, entretanto, ainda estava por lá e somente após os graves fatos que relataremos a seguir, tomou, com sua companheira, a decisão de preparar um esquema para a saída do país. No entanto, isto é motivo para um novo episódio que relataremos somente no futuro.

Foi após o golpe militar argentino que Alexandrino conheceu um personagem singular, superior, realmente um homem de coração puro e de índole inabalável. Conheceu-o como Jota Jota. Trazido por um companheiro em comum, Jota Jota já era um senhor, o que contrastava com a juventude da grande maioria dos militantes, em toda força física de seus cincoenta anos. De sua descendência indígena, herdara uma baixa estatura num corpo sólido e forte; sorriso franco e humilde de quem confraterniza com a vida e com os homens, mesmo nas mais difíceis situações. Este senhor era o General Juan José Torres, ex- presidente da Bolívia.

Para falarmos de Torres, precisamos visitar, mesmo que de passagem, os nossos conhecimentos sobre a Bolívia do princípio dos anos 70. Governava então nosso país vizinho o General Ovando, sendo Torres o Comandante em Chefe das Forças Armadas. Ovando alinhava-se, então, a uma geração de generais patriotas e anti-imperialistas como o do Peru, Alvarado e do Panamá, Omar Torrijos.

Sob a coordenação da CIA e dos interesses das companhias de mineração e petróleo, Ovando, após muitos confrontos sangrentos, foi deposto do poder; no entanto, o General Torres encabeçou uma heroica resistência contra a direita do Exército, venceu-a e assumiu o governo boliviano. Torres, que possuía uma posição à esquerda do próprio General Ovando, em suas primeiras determinações convocou uma Assembleia Popular, com representantes dos mineiros, camponeses, militares, professores e estudantes, para legislar em favor do paupérrimo e explorado povo andino. Também consolidou a nacionalização da Golf Oil, iniciada por Ovando.

Bem, nosso objetivo não é falarmos da história boliviana, mas antes de voltarmos a Alexandrino, ainda é preciso que se frise que todo o governo popular de Torres sobreviveu apenas dez meses. A direita, tendo à frente o facista corrupto e fantoche do imperialismo americano, o coronel Hugo Banzer, derrubou o governo de Torres e inaugurou uma ditadura terrorista que sobreviveu por nove longos anos.

Torres, com sua família, exilou-se na Argentina, mas ao contrário de tantos outros , jamais encarou o exílio como ponto final de militância ou de repouso d’armas. Desde 1971 trabalhou na organização da resistência boliviana, formando o Exército de Libertação Nacional, que colocou sob o comando de seu lugar-tenente Major Rubens Sanches, que operou nas selvas da Bolívia até a sua morte. Quando Jota Jota travou contato com Alexandrino, o incansável lutador trabalhava também na articulação de uma Junta Coordenadora Revolucionária, que deveria abrigar militantes desde o Uruguai até a Bolívia.

Mas as perspectivas desta Junta eram desesperadoras. A última reunião que tiveram Alexandrino e Jota Jota ocorreu no último dia do mês de maio. Pensavam, então, em retornar na clandestinidade a seus países: Alexandrino para o Brasil e o general, para a Bolívia. Havia uma alternativa de eludirem-se os bloqueios fronteiriços, seguindo a rota do contrabando. Enfim, agendaram novo encontro para o dia 3 de junho.

Alexandrino recorda-se como se hoje ainda fosse aquela manhã fria, quando, antes de ir para o trabalho, deveria tomar o café da manhã com Jota Jota. Próximo ao café, localizado na avenida Entre-Rios, comprou como todas as manhãs um “La Prensa”. Uma foto do general-ditador argentino encimava a primeira página. Abaixo, a foto de Juan José Torres, sequestrado, torturado e morto a tiros, no dia anterior. O assassinato do resistente era um favor prestado entre crápulas: do general argentino Videla para o coronel boliviano Banzer, no que viria a ser conhecida como uma ação da Operação Condor.

O café estava a dois passos. Alexandrino tinha absoluta certeza de que nada aconteceria se ele entrasse e tomasse seu café, engolindo o sabor amargo que o cálice do destino tantas vezes já lhe trouxera, a perda de mais um amigo, de mais um companheiro. Lembrou-se de do princípio de um verso de Neruda: “Perdemos um de nós neste mundo. Onde estavas?”.

Triste, com lágrimas nos olhos que insistiam em se despregar, caminhou até a parada de ônibus mais próxima. Atrás de si estavam dois operários e um deles possuia um “La Prensa” na primeira página e comentava com o amigo: “Mira, chê, no tiene este tal de Videla una cara de perro hambriento? ”. Seria um sorriso ou um rito facial que percorreu o rosto triste de Alexandrino? Nunca o saberemos, mas ainda hoje ele diz que naquele momento soube que a ditadura argentina jamais duraria tanto quanto a brasileira.

Nota do biógrafo: Em 1983, o corpo de Jota Jota foi transportado para a Bolívia e enterrado com honras de Chefe de Estado.

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